segunda-feira, 23 de outubro de 2017
MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*
38 - Solidão na Urca
Não é difícil imaginar como meu pai se sentiu quando o sucesso espontâneo deixou de existir, quando o “jabá” passou a dominar a consciência dos profissionais da mídia, que tomaram para si a incumbência de decidir o que o povo queria ou não ouvir e comprar. O tempo estava passando e as mudanças aconteciam de forma brusca e cruel. A indústria da música tomava o lugar do artes-anato e da espontaneidade, do lirismo e da beleza. Surgia o “paraquedista do sucesso”, verdadeira invenção do mercado, sem nenhuma preocupação de construir uma carreira, apenas correndo atrás do sucesso imediato. E, nessa inversão de valores que o mundo foi passando a viver, esses produtos da mídia, em decorrência de sua vendagem de discos, passaram a ser considerados gênios da música. Meu pai sofria com esse processo, com o distanciamento que passou a existir entre sua verdade e as mentiras do mercado musical que era obrigado a suportar. Resultado: a enorme solidão que lhe era imposta pelas mudanças do mundo e, como se não bastasse, também a solidão de sua vida particular. Embora cercado por muitas pessoas, em casa e no centro espírita, ele já não desenvolvia sua finalidade de vida: subir no palco e exercer sua arte. Com Fernando, teve a sua maior dor, a maior dor de um pai. Ele era o filho mais velho de seu casamento com Lurdes, uma união que meu pai desejava fosse definitiva. Não sabemos por que — se foi um problema de criação ou influência de uma juventude com valores contrários aos de meu pai e Lurdes —, mas o fato é que Fernando entrou para o mundo das drogas e, como sempre acontece, perdeu o contato com a família. No meu especial carinho pelo Fernando, tentei um canal de comunicação. Chegamos a conversar abertamente algumas vezes e senti naquele menino profunda solidão e tristeza. E certa mágoa. Mas nem meu pai nem Lurdes souberam como lidar com o problema. Acho que, na verdade, pais e mães nunca sabem o que fazer quando percebem que seu filho, aquela obra de Deus tão per-feita, e tão amada por eles, está se drogando… Tentou-se de tudo até ele ser internado. Acreditávamos que, com essa medida, parar-ia com as drogas, mas já era tarde. No decorrer daquele processo difícil, com seu organismo já debilitado, ele havia contraído uma doença grave — câncer de próstata. De acordo com o que observei e aprendi na vida, o câncer é a doença da mágoa, do ressenti-mento, o que se encaixava perfeitamente na história de Fernando. Ele não durou muito. Morreu prematuramente em 1984, aos 32 anos incompletos. Meu pai ficou abalado. Creio que foi essa dor que o levou a escrever uma frase boba e infeliz sobre filhos no livro sobre sua vida: “Filho, não sei pra que serve”. É uma afirmação que marca muito quem lê o livro. Talvez tenha sido sua forma de jogar fora uma dor guardada bem no fundo, por ter perdido um filho estupidamente para as drogas. Quando Fernando morreu, levei meu pai até Itaguaí, junto com minha amiga de infância Marilu. Fomos passear na Ilha de Itacuruçá, tentando fazê-lo espairecer e relaxar. Durante a travessia para a ilha num barquinho, pude sentir quanto seu coração es-tava machucado. As poucas palavras que disse, as expressões que usava, o vazio do seu olhar, tudo era muito forte e doloroso. Foi a primeira vez que vi seus olhos azuis tão vazios, e até com algumas lágrimas. Com a morte de Fernando, os outros filhos com a Lurdes, Yaçanã e Louro, ainda solteiros, passaram a receber da mãe uma dose ainda maior de proteção. Tudo se concentrava nos dois e nos filhos pequenos de Fernando, que continuaram a morar na casa do meu pai junto com a mãe, Martinha. Penso que a excessiva atenção de Lurdes aos filhos, somada à solicitação constante das pessoas por sua ajuda como mãe de santo, fez com que meu pai se sentisse muito só dentro de casa. Tudo isso foi deixando meu pai alheado de uma rotina à qual não pertencia, embora se desenrolasse em sua própria casa. Não fazia parte atuante daquela romaria e ficava de lado na maioria dos assuntos. Havia um clima de eterno segredo no ar e ele só era solicitado quando precisava fazer frente às obrigações de provedor do lar: a filha queria um carro novo, a esposa, uma viagem para Nova York, a neta precisava de um aparelho nos dentes. Resultado: mais solidão. Yaçanã, única filha mulher, com total apego à mãe, acabou se tornando a maior colaboradora de Lurdes (“cambona”, como se diz na umbanda), participando de todas as atividades. Assim, nem a mulher nem a filha tinham mais tempo para Herivelto. Lurdes, já comentei, não sabia fazer absolutamente nada em casa. Cozinhar, lavar ou administrar eram ciências impossíveis para ela. Vivia exclusivamente para as atividades de mãe de santo e Yaçanã seguiu essa cartilha. Por isso, cansei de ver meu pai ficar nervoso ao encontrar sua camisa sem botão ou amarrotada, quando se preparava para um show. Se Marta, a viúva de Fernando, ou Edith não estivessem por perto, ele tinha de sair daquele jeito. Não havia mais ninguém na casa com disposição para cuidar da roupa dele. Apenas o filho caçula, o Louro, procurava ficar perto de meu pai, oferecendo carinho e companhia. Foi o único filho de Lurdes que herdou a musicalidade de Herivelto. Conhecia todas as suas músicas e cantava com ele em dueto nas brincadeiras musicais da Urca. Também era o único interessado em sua carreira. Acompanhava-o aos shows e demonstrava real interesse pelo Herivelto artista. Mas Louro nunca foi levado muito a sério pela família. Sua personalidade delicada e dócil era confundida com algum distúrbio esquizofrênico, o que o fazia ser meio ridicularizado por todos. E meu pai, em vez de curtir seu carinho, acabava não dando a atenção que ele merecia. Infelizmente. Assim, meu pai foi ficando cada vez mais sozinho. Percebendo esse processo, os filhos mais velhos passaram a ir à Urca com mais frequência. Eu, morando em São Paulo, vinha ao Rio sempre que podia. Bily, Hélcio, Hélio e até Newton sempre estavam por lá. Procurávamos talvez uma intimidade, ainda que tardia, com nosso pai, um homem que já fora tão requisitado pela fama e pelas pessoas que a alimentam . Mas não era fácil. Havia muitos anos meu pai assumira uma postura dura e irascível com a própria família. Solitário dentro de casa, ele ligava para os amigos ou se agarrava a alguém do centro espírita para ter companhia para sair e conversar. Não era pessoa de conseguir ficar sozinha, nunca. Não conseguia ficar consigo mesmo por muito tempo. Para sair, tinha sempre um acompanhante — um amigo, um conhecido ou mesmo uma pessoa da família. Para o sítio de Bananal, então, só ia se fosse com alguém. Quem teve papel importante nessa fase da sua vida foi o dono do jornal Copacentro, João Bosco. Carregava meu pai para a rua com frequência, organizava festas, reuniões e às vezes até shows, em que ele podia brilhar, ser homenageado e receber um pouco da sua grande vitamina: o aplauso. Na verdade, tudo fazia parte da Grande Corte que um dia existira na vida de Herivelto e que ele fizera questão de manter. E por sorte, nessa fase da vida, do alto de seus quase 80 anos, reconquistava a admiração de um país, recebendo grandes homenagens. Era muito gratificante ver sua alegria ao ser homenageado. E mais feliz eu me sentia quando dividia com ele o palco nesses momentos. E um desses momentos inesquecíveis foi quando participei junto com Elizeth Cardoso, Zezé Motta e a última versão do Trio de Ouro (com Shirley Dom) de uma homenagem muito especial a ele: o importante Prêmio Shell da MPB (1987). No palco do Teatro Municipal pude saborear a sua felicidade ao ser ovacionado por uma plateia que o aplaudia de pé. Fizemos um emocionado show dirigido com muita sensibilidade por Hermínio Bello de Carvalho, e que se tornou um disco lançado pela Funarte com o título Que rei sou eu?. Digo reconquistava um país porque, depois da morte de minha mãe, a vida se encarregou de reincorporar a vida dela na dele. Era a grande e fantástica ironia — ao ficar cada dia mais velho, mais era obrigado a oferecer ao público a imagem de homem que tivera a sorte um dia de ter Dalva de Oliveira como esposa e companheira de trabalho. Isso aconteceu muito nos shows que fazíamos juntos. Talvez por respeito ao tempo transcorrido ou por estar junto comigo, dividindo os holofotes, o fato é que no início de nosso trabalho ele relutava em fazer referência ou falar sobre ela quando contava a história de suas músicas. Mas, como quase tudo dizia respeito ao tempo em que esteve casado com minha mãe, mesmo odiando ter de pronunciar seu nome, aos poucos a exigência do público falou mais alto. Passamos a terminar o show cantando as marchas-rancho criadas por ela, encerrando invariavelmente com Bandeira branca”. Com isso, Herivelto ganhou de volta do público que ia nos ver o carinho, a admiração e o reconhecimento. No meu íntimo, imaginava Dalva ali, assistindo a tudo, feliz por ter conseguido… “tanto riso, tanta alegria”.
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