Por André Miranda
RIO — No último sábado, num show no Rio, o cantor Milton Nascimento voltou ao palco para o bis com uma camiseta cuja estampa fazia referência a um dos assuntos mais comentados das últimas semanas: “R$ 0,20”. A música escolhida para o momento, “Coração de estudante”, também não poderia ser mais apropriada. Milton, assim como já vem ocorrendo com muitos artistas Brasil afora, queria falar de uma coisa que “deve estar dentro do peito ou caminha pelo ar”. Queria, a seu modo, protestar.
Desde que eclodiram das redes sociais as manifestações contra o aumento da tarifa de R$ 0,20 nas passagens de ônibus, há duas semanas, vozes importantes das artes brasileiras começaram a se mexer para dar sua contribuição, não apenas em entrevistas e palavras de apoio, mas também incorporando o clamor das ruas em seus trabalhos. Da mesma maneira que a agenda dos protestos se alargou — hoje leem-se cartazes em favor da saúde e da educação, contra a PEC 37, pela reforma política e por qualquer ideia surgida na cabeça dos jovens —, o repertório de atividades artísticas ligadas ao tema já inclui shows, livros, música, filme e até novidades na programação da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
— Espero que toda essa movimentação não fique apenas em palavras. Acredito que agora temos que nos concentrar nos pontos mais fortes de nossas carências e exigir uma mudança radical no sistema. E a forma que vou usar para continuar participando de tudo isso vai ser a mesma coisa que faço há mais de 50 anos: os palcos — explica Milton, que, depois de iniciados os protestos, incluiu em sua turnê a canção “Credo”, a primeira do show de sábado, que fala sobre o povo em marcha nas ruas.
Também por conta das manifestações, o diretor Marcus Vinícius Faustini reuniu uma equipe de filmagem e alguns atores e foi para as ruas do Rio para narrar uma história em sua expressão política mais íntima: o amor. Ele está preparando um filme sobre um triângulo amoroso, dois rapazes e uma moça que se conhecem durante as passeatas. A ideia é que o projeto alterne as cenas de ficção com depoimentos reais coletados entre os manifestantes. Seu título provisório é “Sobre amor e política”.
— Cheguei de viagem na sexta-feira, e na segunda já estava na rua filmando — conta Faustini. — Eu quis abrir outra narrativa. Em geral, a gente só categoriza os manifestantes, mas o amor embaralha tudo isso. E não estou falando sobre o amor como um encantamento ingênuo. Eu falo de tensão, de brigas, de discordância. Vamos continuar filmando para fazer uma crônica dessas mudanças e disputas que estão acontecendo no Rio.
Antologia do vinagre
Em São Paulo, o poeta Fabiano Calixto foi outro que correu para aproveitar o momento e organizar uma coletânea de poemas, chamada “Vinagre, uma antologia de poetas neobarrocos” e distribuída gratuitamente pela internet. O trabalho foi feito a partir de uma convocação no Facebook, para quem quisesse participar, e em tempo recorde já ganhou uma segunda edição, com 170 páginas. “Esta antologia é dedicada a todas as pessoas que participam de alguma maneira desse movimento de mudança. Até a vitória!”, diz um pequeno texto introdutório do livro.
— Acredito que a poesia seja uma arte de pessoas inconformadas, elétricas, anárquicas, loucas, e, por isso, tem essa característica de urgência — explica Calixto. — Mas toda arte é engajada, por mais que possa não parecer. E, em momentos delicados e turbulentos como este, todos os cidadãos têm que se posicionar. É um momento histórico e um dos papéis da arte é justamente refletir seu momento histórico.
Os protestos também vão provocar mudanças na Flip, que começa já na próxima quarta-feira. Às pressas, a curadoria da Festa está ampliando sua programação com eventos específicos para tratar das manifestações pelo país. O anúncio deve ser feito na sexta-feira, mas já está confirmada uma nova mesa com o historiador britânico T.J. Clark, sobre esquerda e utopia; e participações do psicanalista Tales Ab’Saber e do filósofo Marcos Nobre.
Nobre, aliás, vai lançar um e-book sobre o tema por um selo novo criado pela Companhia das Letras, o Breve Companhia. A editora paulista já vinha planejando lançar o selo ainda neste ano, mas adiantou o cronograma para contemplar as manifestações. Encomendou, então, um livro para Nobre e outro para o jornalista Piero Locatelli, ambos acerca do tema.
— O momento nos forçou a correr — afirma Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras. — Devemos lançar um nesta semana e outro na semana que vem. E já estamos em negociação para mais um.
O músico Edu Krieger foi outro que se mexeu para lidar com os protestos em sua obra, compondo na última semana a canção “Gol da vitória”. Sua letra diz assim: “Pelas ruas vieram multidões/ Entre gritos de guerra e palavrões/ De quem sabe o que faz e o que diz/ Foi o gol da vitória de um país/ Com duzentos milhões de campeões”.
— Essas manifestações são muito inspiradoras em vários aspectos, não só politicamente, mas também artisticamente. Eu quis de alguma maneira transformar a imagem das ruas em arte. Meu trabalho de compositor consiste em observar o que acontece ao redor e traduzir isso poeticamente — revela Krieger.
Da mesma maneira que ainda é difícil prever qual será o futuro dos protestos, também é difícil listar todas as manifestações artísticas que podem surgir por inspiração deles. As ruas ficaram repletas de fotógrafos e videomakers, grafiteiros e artistas plásticos, atores e músicos. Muitos com o intuito de afirmar o caráter político da arte.
Por exemplo, a segunda temporada do projeto Palavras Cruzadas, que começa em 12 de julho, no Oi Futuro Ipanema, já deve trazer um espetáculo inspirado pelas manifestações. O evento reúne artistas de diferentes áreas para criações coletivas e terá uma primeira trinca formada pela cantora Karina Buhr, pela atriz Alessandra Colasanti e pelo músico Jarbas Jácome.
— Na semana que vem, vamos nos encontrar para definir como será a apresentação. Mas já conversei com os três e eles têm o mesmo interesse em lidar com os protestos — conta Márcio Debellian, diretor do Palavras Cruzadas. — Este momento é muito impactante, e todo mundo quer expressar isso de alguma forma. Não dá para ficar alheio. Uma coisa na qual já pensamos foi fazer uma instalação sonora chamada “Passe Livre”.
Coincidência na TV
As manifestações terão até mesmo uma versão televisiva na novela “Saramandaia”, que estreou na última segunda-feira e está sendo exibida pela TV Globo no horário das 23h. Com adaptação de Ricardo Linhares a partir da obra de Dias Gomes, a novela terá protestos, movimentos reformistas e um clima de “Occupy” que vai opor os “tradicionalistas” e os “mudancistas”, grupos rivais na trama. Mas, curiosamente, a ideia veio antes das ocupações no país.
— Eu entreguei os primeiros 33 capítulos, de um total de 57, há mais de um mês. A inspiração, é claro, foram os protestos que estavam ocorrendo pelo mundo e que, agora, chegaram ao Brasil — diz Linhares. — Mas, quando começaram a acontecer aqui, eu fiquei muito contente. A ficção não deve ser político-partidária, mas a maioria das pessoas que fazem ficção tem o interesse de incorporar o que está acontecendo no mundo.
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