Amizade entre o Poetinha e o cronista e compositor recifense está eternizada em crônicas, cartas e muitos mitos
Por Luiza Maia
Quando criança, Vinicius de Moraes era Marcus Vinitius. Aos nove anos, escolheu mudar o nome em cartório. Mas foi como Poetinha que morreu, em 1980, aos 66 anos. O apelido foi criado por um grande amigo, o cronista e compositor pernambucano Antônio Maria (1921-1964), “parente de uma linha de Moraes de Pernambuco que vai assim, faz assim e volta e da qual participa também o poeta João Cabral de Melo Neto”, segundo o carioca. O Poeta, de Maria, logo foi para o diminutivo, como tudo com Vinicius, cujo centenário de nascimento será comemorado em 19 de outubro.
A retribuição nunca pegou. Vinicius dizia que Maria era pernambaioca - junção bonitinha, mas inverídica, de pernambucano, baiano e carioca. Expliquemos: recifense, Maria declarava saudades das águas daqui nas crônicas diárias nos principais jornais da época, como O Jornal, Diário da Noite, Última Hora, O Globo, apesar do mar de Copacabana. Carioca, porque ser leitor das ácidas colunas Jornal de Antônio Maria (JAM) ou Romance policial de Copacabana era quase requisito para um boêmio da gema. Mas baiano era uma clara e ineficaz tentativa de aproximação: Vinicius se declarava o carioca mais baiano e o branco mais preto do Brasil. Maria morou na Bahia, na década de 1940, por tão pouco tempo quanto em Fortaleza: menos de dois anos.
Quando se dirigia ao pernambucano, usava Meu Maria ou Meu Bom Maria. Pessoalmente ou em cartas, como o tocante texto da derradeira despedida, em 15 de outubro de 1964. Com a morte precoce do Menino Grande (apelido inspirado em música homônima), após um infarto na calçada de um bar carioca, a amizade virou mito. Com poucas testemunhas vivas, histórias não confirmadas e passagens desencontradas.
Os companheiros de noitadas - Fernando Lobo, Ivan Lessa, Dolores Duran, Aracy de Almeida, Ary Barroso - já se foram. Os filhos não têm muitas lembranças: eram novinhos demais para acompanhar os programas alcoólicos e amorosos. “Vinicius não falava muito, mas eram sempre histórias boêmias, bem ao estilo deles”, conta o parceiro musical Toquinho.
Os registros dos encontros, iluminados mais pela luz lilás da boêmia Copacabana das décadas de 1950 e 1960 do que pelo Sol, ficaram entre uma dose e outra. Um verso e outro. Uma conquista e outra. Vinicius casou nove vezes, foi largado tantas outras e partiu muitos corações. Antônio - não que fosse feliz - viveu com a esposa Maria Gonçalves Ferreira, teve amantes, morou com Yolanda Cardoso e Ligia Andrade e protagonizou o escândalo de roubar Danuza Leão de Samuel Wainer, dono do Última hora, de onde foi demitido, obviamente.
A dupla conquistava pelos galanteios, apesar dos questionáveis atributos físicos. Ambos grandes e acima do peso, exprimiam orgulho de serem sedentários e desfrutavam de quitutes pesados. Feijoada, vatapá e cozido surpreendiam os convidados do Poetinha em jantares pós-meia-noite. Já o recifense, figura fácil nos restaurantes cariocas, dava indicações dos melhores pratos no seu Jornal de Antônio Maria, nas seções Comer e depois viver ou Não morra pela boca.
Vinicius calvo. Maria idem. E ainda famoso por sudorese constante. Mas, na lábia, eram insuperáveis. Maria dizia que precisava de três horas para fazer uma mulher esquecer sua cara. E conquistá-la. O amigo Carlos Heitor Cony brinca que, se visitasse o papa, voltaria cardeal. Vinicius, das paixões eternas enquanto duravam, ainda nutria fama de charmoso.
Nas colunas de Maria, declarações ao amigo e compadre (era padrinho de batismo de Luciana, filha de Lila Bôscoli), com um descarado protecionismo. A admiração por Vinicius o livrou das constantes críticas contra a bossa nova feitas por Maria - que foi diretor artístico da Rádio Tupi, locutor, apresentador de televisão e escrevia sobre arte, além de tudo, nos jornais. Mas, na década de 1960, próximo à morte precoce, aos 43 anos, ele já se rendia ao balanço da bossa. “Maria estava amicíssimo de Vinicius de Moraes e logo passaria a elogiar Tom Jobim, recebendo afagos de volta”, acredita Joaquim Ferreira dos Santos, autor de Um homem chamado Maria, embora o colunista já o tivesse feito. “Com Tom Jobim, (Vinicius), fez algumas das nossas melhores canções”, escrevia, em 29 de junho de 1961.
Drummond disse que Vinicius “foi o único de nós que teve vida de poeta”. Vinicius afirmava que o poeta Maria foi o melhor personagem de si mesmo - e, nos diários escritos entre 12 de março e 19 de abril de 1957 (publicados em Os diários de Antônio Maria), é latente a solidão real do autor de Ninguém me ama (1952). Ele escrevia com o peso da desilusão. Vinicius, com a esperança de quem insistiu em nove casamentos.
Vítimas do exagero de bebidas, mulheres, amores e decepções, morreram como viveram. O Maria de Vinicius, cardisplicente (cardíaco e displicente), após uma noitada, num desabafo fatal da doença. O Vinicius de Maria, na banheira, após noite acordado, compondo com Toquinho, sob queixas de Gilda Mattoso. Sempre intensos, tornaram-se imortais.
Leia íntegra da carta escrita por Vinicius de Moraes no dia da morte de Antônio Maria:
Morrer num bar
Aí está, meu Maria... Acabou. Acabou o seu eterno sofrimento e acabou o meu sofrimento por sua causa. Na madrugada de 15 de outubro em que, em frente aos pinheirais destas montanhas queridas, eu me sento à máquina para lhe dar este até-sempre, seu imenso coração, que a vida e a incontinência já haviam uma vez rompido de dentro, como uma flor de sangue, não resistiu mais à sua grande e suicida vocação para morrer.
Acabou, meu Maria. Você pode descansar em sua terra, sem mais amores e sem mais saudades, despojado do fardo de sua carne e bem aconchegado no seu sono. Acabou o desespero com que você tomava conta de tudo o que amava demais: o crescimento harmonioso de seus filhos, o bem-estar de suas mulheres e a terrível sobrevivência de um poeta que foi o seu melhor personagem e o seu maior amigo. Acabou a sua sede, a sua fome, a sua cólera. Acabou a sua dieta. Aqui, parado em frente a estas montanhas onde, há trinta anos atrás, descobri maravilhado que eu tinha uma voz para o canto mais alto da poesia, e para onde, neste mesmo hoje, você deveria chamar porque (dizia o recado) não agüentava mais de saudades - aprendo, sem galicismo e sem espanto, a sua morte. Quando a caseira subiu a alegre ladeirinha que traz ao meu chalé para me chamar ao telefone - eram nove da manhã - eu me vesti rápido dizendo comigo mesmo: "É o Maria!" E ao descer correndo para a pensão fazia planos : " Porei o Maria no quarto de solteiro ao lado, de modo a podermos bater grandes papos e rir muito, como gostamos…" E ainda a caminho fiquei pensando: "Será que Itatiaia não é muito alto para o coração dele?..." Mas você, há uma semana - quando pela primeira e última vez estivemos juntos depois de minha chegada da Europa, numa noitada de alma aberta - me tinha tranqüilizado tanto que eu achei melhor não me preocupar. Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria, pois por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia.
Outra noite, pelo telefone, ao perguntar eu se você estava cuidando de sua saúde, você me interpelou: "Você tem medo de morrer, Poesia?" "Medo normal, meu Maria", respondi. " Pois olhe: eu não tenho nenhum" retorquiu você sem qualquer bravata na voz. "Só queria que não doesse demais, como na primeira crise. Aquela dor, Poesia, desmoraliza."
Mas como eu descesse - dizia - para atender à sua chamada, e atravessasse o salão da casa-grande, e entrando na cabine ouvisse (como há 14 anos atrás ouvi a voz materna) a voz paternal de meu sogro que me falava, preparando-me: "Você sabe, Antônio Maria está muito mal...": e eu instantaneamente soubesse... - justo como naquela época soube também, quando a voz materna, em sinistras espirais metálicas, me disse do Rio para Los Angeles: "Sabe, meu filho, seu pai está muito mal…", o nosso encontro marcado deu-se numa dimensão nova, entre o mundo e a eternidade: eu aqui; você... onde, meu Maria? - onde?
Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas, e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras que nem sei o que querem dizer…
Há uma semana apenas conversamos tanto, não é, meu Maria? Você ainda não conhecia minha mulher, foi tão carinhoso com ela... Tomamos uma garrafa de Five Stars no Château, depois fomos até o Jirau e terminamos no Bossa Nova. Eu ainda disse: "Você pode estar bebendo e comendo desse jeito?" "Por que, Poesia? Não há de ser nada... Qualquer dia eu vou morrer é assim mesmo, num bar..."
Eu só espero que não tenha doído muito, meu Maria. Que tenha sido como eu sempre desejei que fosse: rápído e sem som. Mas é uma pena enorme. Você tinha prometido à minha mulher, a pedido dela, que recomeçaria hoje, nesta quinta-feira do seu recesso, no seu "Jornal de Antônio Maria" o seu "Romance dos pequenos anúncios", que foi uma de suas melhores invenções jornalísticas e onde eu era personagem cotidiano: você sempre a querer fazer de mim, meu pobre Maria, o herói que eu não sou...
Mas por outro lado, sei lá... Você disse nessa noite, à minha mulher e a mim, que nem podia pensar na idéia de sobreviver às pessoas que mais amava no mundo: sua mãe, seus dois filhos, suas irmãs e este seu poeta. "E Rubem Braga…", acrescentou você depois, brincando com ternura, "Eu não queria estar aí para ler quanta besteira se ia escrever sobre o Braguinha..."
Não irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito (porque ela dorrne ainda, meu Maria...) e de me deixar assim sozinho, sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de mim.
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