CAPÍTULO 24
Por estranho ciúme, ou talvez até por complexo de inferioridade, ou por pura arrogância por parte dos executivos, as gravadoras consideravam, em geral, os managers ou empresários dos artistas como parasitas incapazes de contribuir positivamente para o desenvolvimento da carreira dos contratados. A tendência era afastá-los do centro das decisões da empresa. Os empresários, por sua vez, consideravam as gravadoras como um mal necessário, que, em última análise, só prejudicavam o bom andamento de seu trabalho. As duas entidades disputavam a responsabilidade na escolha de repertório, desentendiam-se na política de relações públicas, e não decidiam em conjunto as datas de programação dos concertos e as participações de seus artistas em programas de TV.
Essas atitudes, evidentemente, geravam inúmeros conflitos, além de afetar a venda de discos e a artistas. Convoquei, então, cada empresário dos artistas mais importantes e estabeleci uma relação de trabalho: eles cuidavam conosco dos lançamentos dos discos e a empresa se ocupava também da programação dos concertos das temporadas. Também os certifiquei de que suas sugestões seriam tomadas em consideração e, se possível, aceitas. A CBD, que naquele momento adotava uma nova razão social, sob o nome de Phonogram, transformou-se, como O Pasquim e seus formidáveis jornalistas, numa entidade que congregava a inteligência musical e contestatória do país. A relação da companhia com o Departamento de Censura se tornava cada dia mais exaustiva. Primeiro se tratava de mandar censurar somente as letras em português. Porém, a aberração dos militares era tão grande que cogitaram censurar, também, as letras em línguas estrangeiras, projeto que abandonaram. Mas, depois, a censura exigiu ouvir também as gravações antes de serem lançadas no mercado, o que era uma arma financeira e uma chantagem perigosa, caso a gravadora tivesse que assumir o prejuízo do investimento já feito. Por fim, a censura quis formalmente transferir a responsabilidade de censurar diretamente para as gravadoras.
João Carlos Müller, responsável pelo departamento jurídico da empresa, vivia sob uma pressão tensa e constante, pois a nossa atitude formal era de que nós éramos pagos para gravar discos, o que continuaríamos fazendo, ao mesmo tempo em que a censura era paga para censurar, e teria que continuar fazendo o seu trabalho.
Durante esses embates, o governo, em represália à nossa resistência, vivia nos ameaçando de cancelar o registro da companhia no Departamento de Censura, o que significava, em poucas palavras, que teríamos que fechar as portas se não cooperássemos com os “princípios patrióticos da revolução”.
Desconsideramos essas pressões da censura por razões simplistas — se havíamos convencido um artista a trabalhar conosco, estávamos ao lado dele, de seu trabalho e de suas posições políticas. Por outro lado, o fato de sermos filiais de importantes conglomerados estrangeiros certamente nos ajudou enormemente a seguir com essa postura.
Um dos casos mais emblemáticos foi o projeto “Calabar, o elogio da traição”. Chico Buarque e Ruy Guerra me apresentaram a ambiciosa ideia, que consistia em lançar um disco, um livro e produzir uma peça. Concordei em financiar parte da peça, da qual Fernando Torres era o maior investidor, e gravar a trilha sonora do espetáculo. A pedido dos dois, entrei em contato com o embaixador da Holanda, solicitando a sua interferência para que os documentos relacionados a Calabar, arquivados naquele país, fossem postos.
Meses depois, João Carlos levou os textos e as músicas da peça para a censura, em Brasília. Depois de constantes idas e vindas, e inúmeros e humilhantes cortes exigidos pela censura, conseguiu-se que peça e músicas fossem liberadas. Começaram os ensaios, que levaram meses. Quando tudo estava pronto, a censura foi chamada para dar seu acordo final. Porém, sem nunca ter tido a real intenção de autorizar o espetáculo, os censores nunca apareciam para cumprir com sua tarefa. E a peça nunca pôde ser estreada.
Sobrava o projeto do disco, que levou cerca de oito meses para ser gravado. A capa foi inteiramente censurada: era uma magnífica capa dupla, cuja frente era um muro pichado de sangue onde estava escrito “Chico canta Calabar, o elogio da traição”. O fato de elogiar a traição era, para os militares, um anátema inaceitável. Por sua vez, na capa interna dupla, havia uma foto de um banquete de mendigos de verdade, que simbolizava, talvez, o escracho de nossa sociedade. Produzimos, então, uma capa branca com os simples dizeres “Chico canta”, que lembrava as páginas censuradas deixadas em branco pelo Pasquim.
Houve um caso cômico, até por ser ridículo, com a música “Je t’aime, moi non plus”, de Serge Gainsbourg, gravada por ele e Jane Birkin. Lançamos a canção no mesmo dia que a Phonogram francesa, dona do master da gravação. E aqui, como lá, o sucesso de rádio foi imediato e arrebatador. Não havia estação que não tocasse a voz sedutora de Jane Birkin cantando a erótica canção de Serge Gainsbourg — 12, 15 vezes por dia. A venda inicial do disco foi estrondosa, umas quatrocentas mil cópias em pouquíssimos dias, quando, de repente, nada menos que o Vaticano, em Roma, ficou ultrajado com o sucesso da música — que considerava pornográfica — na Itália, e pressionou, com êxito, o presidente mundial da Philips eletrônica holandesa para que cessasse, em nome da decência, a divulgação e a venda do trabalho no mundo inteiro.
Naquela época, as comunicações telefônicas com o estrangeiro eram muito precárias — não existiam telex, fax etc. Assim, apesar de ter sido informado pelos jornais sobre a proibição, só fui notificado oficialmente seis ou sete dias depois, ao receber uma carta de um assistente do presidente da Philips com a decisão da matriz.
O disco já estava com mais de quinhentas mil cópias vendidas. No afã de ganhar tempo, respondi com outra carta, dizendo que a proibição estava em conflito com os interesses financeiros da empresa, que já tinha de aguentar a censura do governo brasileiro, e que, para atender ao seu pedido, eu necessitava de carta de próprio punho do presidente diretor-geral da Philips holandesa. Pensei em ganhar mais uns dez dias até chegar a carta fatídica. Enquanto isso, as prensas fabricavam, 24 horas por dia, o Je t’aime, moi non plus, que as lojas estavam encomendando.
No sábado seguinte, pela manhã, levei meus filhos Philippe e Antoine para passear no Jardim Botânico e, enquanto lia pacificamente o Jornal do Brasil, defrontei-me com a notícia impressa em primeira página de que a minha fábrica estava cercada pelo Exército desde a madrugada de sábado.
Não dei muita atenção à notícia, que me parecia absurda, até que apareceu um jornalista me pedindo a confirmação do que estava no jornal.
— Imagine se eu estaria aqui se o Exército estivesse lá... — respondi.
E por alguns segundos continuei a ler o jornal, até que, considerando que naqueles tempos de ditadura tudo podia acontecer, voltei para casa e encontrei o telefone chamando da minha própria fábrica, onde o pessoal tinha conseguido autorização para me informar que, de fato, estavam cercados pelo Exército. Imploravam para alguém chegar lá o mais depressa possível, uma vez que ninguém entrava ou saía.
Se me lembro bem, fui acompanhado por João Carlos Müller, Menescal , Armando Pittigliani e Umberto Contardi; e, sim, era verdade: a fábrica estava cercada por soldados com fuzis, esperando a ordem para entrar e destruir todos os discos que pudessem encontrar de Je t’aime, moi non plus!
Dessa vez, o chefe da censura simplesmente cancelou o registro da gravadora. O que os militares não haviam feito, a Igreja, sim, conseguiu. João Carlos correu para Brasília e, somente após dois dias de negociações, o cancelamento do registro foi revogado; porém não o ato da censura.
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