segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 23



CAPÍTULO 23 

Eu tinha um calcanhar-de-aquiles no departamento de relações públicas, que o Fernando Lobo chefiava. Ele era um exímio jornalista, às vezes bom compositor, dotado de uma inteligência brilhante, que, como Mario Gil no México, funcionava muito bem até a hora do almoço, do qual voltava frequentemente com muita birita na cabeça. Além do mais, era pai de um extraordinário compositor e intérprete, Edu Lobo, contratado da gravadora. Essa situação gerou um conflito de interesses quando Fernando percebeu que o sucesso dos tropicalistas poderia significar um perigo para a carreira do Edu. A partir desse momento, e na volta desses almoços, Fernando começou a protestar violentamente comigo contra a existência dos tropicalistas no elenco. 

Como todos os dias de manhã, a caminho do escritório eu lia o “Caderno B” do Jornal do Brasil. E, para minha surpresa, lá estava na primeira página, com destaque, o diretor da gravadora Companhia Brasileira de Discos, Fernando Lobo, declarando que os diretores das sociedades de autores eram todos uns ladrões que roubavam os compositores. 

Mal cheguei ao escritório, já havia várias ligações de jornalistas e, sobretudo, dos diretores das diversas sociedades, que me perguntavam se o Fernando tinha falado em seu próprio nome ou em nome da companhia. Eu, por concordar fundamentalmente com a declaração do Fernando, mesmo que tivesse sido feita sob a influência da bebida na tarde do dia anterior, e pensando ingenuamente que era uma ocasião de se abrir o debate sobre o direito autoral no país, respondi que sim, que ele tinha falado em nome da companhia. Humberto Teixeira , diretor de uma dessas sociedades, que eu conhecia muito bem, veio aconselhar que fosse prudente nas minhas declarações porque, em tempos passados, pessoas haviam sido assassinadas por desafiar essas mesmas sociedades. Nesse ambiente tumultuado, fui convocado para uma reunião com a diretoria das sociedades, com Jessen representando as companhias de discos. Levei meu advogado, João Carlos Müller, ouvi as lamúrias e saí, deixando o hábil João Carlos resolver o problema que, como muitos outros em nosso país, infelizmente não deu em coisa alguma. 

Essa era a oportunidade para despedir o Fernando, pois não lhe reconhecia o direito de falar em nome da companhia sobre um assunto tão sério sem ter me consultado previamente. Transferi o Armando Pittigliani da direção artística para o posto do Fernando e contratei meu velho amigo Menescal para o lugar do Armando. Heleno saiu do seu posto de contador da empresa e passou a responsável pela gerência de vendas e pela coordenação da importante divulgação de discos nas emissoras de rádio. Era essencial estabelecer a harmonia entre o trabalho dos vendedores e o dos divulgadores de rádio, pois era frequente os divulgadores trabalharem um disco e os vendedores, outro. Jairo Pires, produtor musical de muito sucesso na área de música popular na CBS, veio espontaneamente se juntar a nós, de modo que pude dar o toque final, dividir em dois setores as áreas artísticas, promocionais e comerciais da gravadora, com suas marcas distintas e com personalidades próprias: a Philips, a marca de prestígio, e a Polydor, a marca popular, que por anos nos deu os lucros necessários para manter nossa política quase deficitária na MPB. Elis , Gil , Caetano, Gal e Os Mutantes vendiam, em 1968 e 1969, apenas entre cinco mil e dez mil cópias de cada um de seuslançamentos. Caetano e Gil estavam em prisão domiciliar na Bahia, fazendo tristemente as malas para ir para a Inglaterra. Deram um último concerto de despedida no Teatro Castro Alves — que originou um extraordinário LP (Barra 69: Caetano e Gil ao vivo na Bahia, no Teatro Castro Alves (Polygram), que viria a ser lançado em 1972), cuja capa, produzida pelo Rogério Duarte, é até hoje um dos pontos altos da arte gráfica brasileira — e voaram para o Rio pouco antes de embarcarem, no sábado, para o exílio em Londres. 

Guilherme Araújo havia me telefonado, solicitando que eu deixasse o estúdio de gravação à disposição dos meninos na sexta-feira para gravarem uma música de despedida composta por Gil para a ocasião. Ficou acertado que ninguém, além deles e do técnico de gravação, fi caria no estúdio, e que nenhuma notícia seria dada à imprensa. Eu me comprometi a lançar a música o mais rápido possível nas rádios. Nosso gerente de estúdio, Umberto Contardi, companheiro de muitas odisseias, tomou as providências necessárias para o completo sigilo. Os baianos finalizaram a gravação na noite de sexta para sábado. Sábado de manhã, produzimos muitas cópias em fita para as rádios do Rio e de São Paulo tocarem a música no exato momento em que o avião fosse decolar na noite de sábado. 

Manoel foi para São Paulo com as fitas debaixo do braço; às 22h, Manoel e Armando estavam nas estações de rádio do Rio e de São Paulo. Lá pelas 21h, fui acompanhar os meninos até o Aeroporto do Galeão, hoje Aeroporto Internacional Tom Jobim, onde muita gente tinha ido deles se despedir. Voltei para casa com o rádio ligado e “Aquele abraço” estava tocando em muitas estações antes mesmo de o avião decolar e de os meninos perderem de vista a terra brasileira. 

Considero até hoje “Aquele abraço” uma obra-prima ardente, enérgica, condensada, calorosa e trágica. Ao mesmo tempo, é até hoje um ponto de ligação muito forte na minha relação com Gil . 

— Sua companhia mais parece um jardim de infância do que uma companhia de discos! — observava o presidente mundial da Polydor/Deutsche Grammophon em visita ao Brasil, espantado com a juventude da equipe e o nosso incrível ambiente de trabalho. Creio poder afirmar que a idade média da companhia era de 25 anos. 

Éramos todos tão jovens, tão entusiasmados com nosso trabalho, tão orgulhosos com nosso sucesso, que queríamos gritar aos quatro cantos do mundo. Decidimos, então, comprar a página dupla do centro da revista Manchete, fotografando ao vivo todo o nosso cast, reunido especialmente para essa ocasião nos imensos estúdios de fotografia da revista. Todo o cast infelizmente era impossível, porque não estavam aqui os exilados, que, no entanto, marcaram presença através de grandes painéis fotográficos em preto-e-branco, colocados entre os demais artistas.A foto era hollywoodiana, mas necessitava de um título provocativo, que, num brainstorm, encontramos: “Só nos falta Roberto Carlos ... Mas também ninguém é perfeito.”A gente não conseguiu contratar o Roberto, porém o efeito da bravata no meio do music business tupiniquim foi tremendo, e passamos a ser considerados uma grande companhia que vendia qualidade com grande sucesso. 

No entanto, quando eu vi o anúncio já impresso, desapareceu minha alegria ao perceber que eram várias as fotografias em preto-e-branco dos artistas do selo Philips que estavam exilados. Pois, além de Caetano e Gil, a Nara também já tinha ido se refugiar em Paris com o marido Cacá Diegues . “E se os militares exilassem também a Elis ?” Essa pergunta me fez perceber que eu dirigia uma empresa de muitos artistas que podiam desaparecer do cenário musical local por estarem ausentes; que a ditadura militar poderia durar a vida toda; e que eu tinha uma responsabilidade moral, artística e financeira para com eles e para com a gravadora. 

Fazia-se necessário inventar um novo modus vivendi, em que a empresa se comportaria como a multinacional que de fato era e utilizaria todos os meios à sua disposição em outros países para esses artistas seguirem suas carreiras, de uma maneira ou de outra. 

Sendo a Philips holandesa, fui a Brasília para conversar com o embaixador holandês, que eu conhecia bastante bem, e cuja repulsa aos métodos ditatoriais me era familiar. Expus que eu precisava de seu apoio para informar formalmente à direção da Philips eletrônica, em Amsterdã, e à da Siemens, em Hamburgo, que a situação criada pelos militares para com o meio artístico era mais do que constrangedora e merecia uma atenção toda especial. 

O embaixador falou imediatamente com seu colega alemão e, com algumas chamadas telefônicas, cumpriram sua tarefa com sucesso. 

Peguei o avião para Amsterdã e para Hamburgo, expus meu plano, pedindo que as matrizes financiassem algumas despesas a “fundo perdido”, entre as quais o custo das gravações que eu pretendia fazer na Europa e que não podia pagar pelas restrições impostas às remessas de dinheiro do Brasil para o exterior. Feito o acordo, fui até Londres para acertar a gravação dos discos de Caetano e Gil. Por sorte, encontrei dentro de uma editora afiliada um produtor chamado Ralph Mace, pessoa muito doce que conhecia e apreciava o trabalho dos meninos, e que se prontificou a produzir as sessões de gravação. Em pouco tempo, os LPs estavam em nossas mãos para lançamento no Brasil.

Desde a época da bossa nova, dez ou doze anos antes, eu tinha uma relação muito carinhosa com Nara. Era uma pessoa muito suave, tímida e, para meu gosto, muito bonita. Por um longo tempo, 

ara namorou Ronaldo Bôscoli, que, como dizia Nelson Motta, era muito liberal em tudo — menos com a mãe, a irmã e menos ainda com a namorada. Ronaldo sempre ironizava o pequeno fio de voz que Nara emitia ao cantar, assim como seu desejo de cantar profissionalmente. Eu, porém, adorava ouvir o seu som delicado, nem sempre afinado, porém tão expressivo, a maneira tão inteligente de dizer as letras das canções, e, na minha cabeça, pensava que, se Juliette Greco era um grande sucesso na França, Nara o poderia ser no Brasil — e tinha sido. 

Pedi ao Menescal que planejasse a gravação de um disco duplo de antologia das grandes canções da bossa nova, material que Nara nunca tinha gravado, apesar de ser a musa do movimento. Pierre Sbero, produtor francês da Polydor em Paris, foi encarregado de levar o projeto adiante. Nara gravou somente a voz e o violão em Paris, e Menescal finalizou a gravação colocando as cordas no Rio. 

A companhia em peso queria a contratação do Chico Buarque. Então, eu fui atrás do Chico ! Ele era contratado da RGE, gravadora independente se diada em São Paulo,






//proibido a publicação por ordem judicial //







Foi no Antonio’s, um restaurante carioca já extinto, localizado no Leblon, que era assiduamentte frequentado por pessoas do meio cultural e artístico, que encontrei o simpático advogado do Chico, Osvaldo Assef. Expliquei-lhe longamente a estratégia para que Chico estivesse presente musicalmente no Brasil, apesar de tão longe fisicamente. Acertamos um importante adiantamento, para a época, sobre os direitos artísticos do Chico, e, devido às circunstâncias, em poucos dias a contratação foi acertada. 

Na semana seguinte, pedi a Manoel Barenbeim que viajasse para Roma e verificasse se o Chico Buarque tinha material pronto para gravar um LP. O Manoel voltou com as músicas debaixo do braço, gravou os arranjos de orquestra sob a regência do Rogério Duprat em São Paulo, voltou para Roma, onde o Chico gravou as vozes, e o disco Chico Buarque de Hollanda nº 4  (Phonogram, 1970) estava pronto. 

Contando assim, tão simplesmente, pode parecer fácil viajar de cá para lá, gravar aqui, gravar lá; porém, colocando-se na perspectiva do Brasil em 1970, quando as distâncias entre os continentes pareciam maiores, quando as comunicações telefônicas internacionais eram incipientes, num momento em que o país estagnava intelectual e mentalmente, isolado pelo regime militar, a gravação desses discos foi um ato moderno e um fato novo no comportamento da indústria fonográfica brasileira. O lançamento teve um efeito fulminante, ainda mais pelo excesso de timidez das outras gravadoras nas relações com Brasília. 

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