terça-feira, 31 de dezembro de 2013

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 27



CAPÍTULO 27 

Ao fim de um dia anormalmente tumultuado, tendo ouvido múltiplas queixas por parte de Guilherme Araújo (empresário de Caetano, Gil e Gal Costa ) e de Marcos Lázaro (empresário da Elis Regina), todas relacionadas à nossa incapacidade de enxergar e enfocar as suas carreiras de maneira adequada, compreendi que eu tinha uma só cabeça, e que essa cabeça não tinha capacidade e cultura para entender e interpretar as demandas de artistas tão diferenciados. A maioria deles era de uma inteligência extrema e complexa, de um talento excepcional, de uma sensibilidade invulgar, todos ambiciosos e dotados de um narcisismo privilegiado. 

Eu precisava da colaboração de pessoas inteligentes para me ajudar naquela empreitada. Intuía que isso só poderia, talvez, acontecer num ambiente fora dos contatos sociais e profissionais habituais. Eu não estava querendo achar a chave do sucesso. “Só queria achar o caminho das pedras" a chave da compreensão do artista com a natureza do seu talento, do artista e de sua relação com o palco, do artista e da expressão de seu disco, e de sua interação com o público que compraria seu trabalho e assistiria a seus concertos. 

Minha ideia inicial era levar para essas pessoas problemas e dúvidas que assolavam as áreas criativas e promocionais, a fim de que elas, que não tinham absolutamente coisa alguma a ver com a empresa, sem a menor responsabilidade quanto a suas opiniões, pudessem analisar as questões e nos dar conselhos. Estabeleci duas regras importantes para o possível sucesso da iniciativa: que as pessoas pudessem falar, com toda a liberdade, as coisas que lhes passavam pela cabeça, independentemente de eu gostar ou não; e que nada que ali se discutisse iria transpirar, nem na própria gravadora. Em suma, de maneira honesta, eu queria sugar a cabeça deles. Mas pagaria bem por isso. E avisaria que iria sugar. 

As reuniões seriam semanais, em uma suíte de algum hotel, das cinco da tarde até as nove ou dez da noite. Meu papel seria o de moderador. Portanto, no início de cada reunião, eu introduziria o assunto a ser debatido, esclarecendo nossas dúvidas ou incertezas, e ali se encerrava minha participação, intervindo somente quando todos falavam ao mesmo tempo e/ou quando se perdia o foco do assunto. Encarreguei o Armando Pittigliani de formar um grupo que fosse o mais heterogêneo possível, com jornalistas, psicólogos e escritores, para compor o “grupo de trabalho” da Phonogram, grupo que seguramente foi o precursor das empresas de consultoria de hoje. João Luiz Albuquerque foi o primeiro convidado, e acabou tendo uma influência capital na curadoria dos convidados: Dorrit Harazin, Zé Rubem Fonseca, Artur da Távola, Nelson Motta, Zuenir Ventura, Homero Icaza Sanches, as duas Maria Clara — Pellegrino e Mariani —, e convidados eventuais, como Nilse da Silveira ou Tarso de Castro. 

O primeiro assunto que levei foi certamente o mais escabroso: Simonal vivia marginalizado e odiado sob a suspeita de ter denunciado seus colegas “de esquerda” para o DOPS, sofrendo um boicote implacável e sendo perseguido sem trégua pela imprensa como o dedo-duro mais hediondo do país. De qualquer maneira teria sido indispensável contar com o testemunho do Magaldi , sócio do Simonal, para saber por que este último se sentia lesado e roubado. Marcos Lázaro, poderoso empresário de Roberto Carlos e de Elis Regina, tinha sido requisitado pelos militares para comunicar à nossa empresa que seria um gesto muito apreciado contratarmos o Simonal naquele momento difícil de sua carreira. 

Entendi que, politicamente, seria conveniente contratar Simonal — não só por ser um belo artista, mas também porque a sua contratação daria uma certa paz para o João Carlos, nos seus intermináveis tratos com a censura. Porém, o delicado era anunciar aquela contratação para certos artistas engajados, como Chico Buarque, por exemplo, que poderia simplesmente sair da companhia em sinal de protesto. O grupo de trabalho, inicialmente muito relutante em abordar esse assunto, acabou me dando subsídios importantes para eu levar adiante essa situação delicada. 

Pouco a pouco, e semanas após semanas, fui colocando o grupo de trabalho dentro da gravadora, sem eles estarem propriamente nela. E quando senti que o grupo tinha se adaptado ao convívio com a diversidade de opiniões e encontrado seu ritmo de ouvir, analisar, dissecar e contribuir, decidi que havia chegado o momento de colocar o plano em marcha: convidar os artistas para conversarem com o grupo e, a partir dos bate-papos, enriquecer minha capacidade empresarial. 

Estabelecemos que haveria três reuniões dedicadas a cada artista. Durante o primeiro encontro, o grupo trocaria suas impressões a priori sobre o artista, sem a presença dele. No segundo, o artista participaria de uma longa conversa informal. E na terceira reunião, mais uma vez sem o artista, cada membro do grupo comentaria as conversas, elaborando suas ideias e opiniões. 

A princípio, a maioria dos artistas achou essa iniciativa muito positiva. Chico, na época ainda muito tímido, passou horas contando de sua infância e juventude, e sua participação foi das mais deliciosas. Caetano, com sua inteligência fulgurante, deu uma enquadrada superinteressante no grupo de trabalho, que teve repercussão essencial no comportamento futuro do próprio grupo. Erasmo já antecipava o sábio que hoje é. Rita , após um momento de desconfiança, acabou se abrindo, e todos riram muito com seu senso de humor e suas tiradas caricaturais. Elis, sempre aplicada, séria e dedicada, nos emocionou com o retrato de sua vida pessoal desde a infância. E nos brindou com esta frase memorável: 

— Divido tudo na minha vida. Divido comida, divido cama, divido meus amigos… Só não divido o palco. 

O Raul, pensando que a gente tinha escondido uns militares para prendê-lo, não quis comparecer. 


E, graças à sua paranóia, descobrimos o brilhante talento de seu parceiro, até então em segundo plano: 

Paulo Coelho explicou, durante quatro reuniões, a “sociedade alternativa” que eles inventaram, sob os aplausos da turma... 

Conta Hérica Marmo, no livro A canção do mago: Vestindo uma roupa cáqui que mais parecia 
uniforme de guerrilheiro, botas pretas e óculos escuros, Paulo foi direto ao quadro-negro escrever frases de efeito e desenhar símbolos. Com facilidade verbal e organização mental lógica, ele deixou todos fascinados pela idéia de uma sociedade cuja lei era fazer tudo o que se tivesse vontade... ele queria mudar o mundo... 

Mas na sociedade vocês usam escravos? — perguntou alguém. 

Claro que usamos escravos — respondeu o letrista. 

Mas a sociedade, que é uma alternativa para a que vivemos, escraviza como a nossa... 

Não, nós não escravizamos ninguém... Só usamos as pessoas que querem ser escravas. 


Jorge Ben se estendeu sobre sua descendência do imperador da Etiópia Haile Selassie, elaborando sobre as consequências disso no seu tocar e no seu compor. Gal, em pleno sucesso de Fatal, contou, com grande doçura e exuberância, sua recente explosão de comportamento em palco e disco. Gil, com seu verbo generoso, viajou sobre inúmeros aspectos do comportamento da sociedade e sobre a responsabilidade política do artista perante a sociedade; da mesma maneira, recomendava que a companhia tivesse essa mesma atitude ou uma compreensão do seu papel de transmissora de ideias e tendências. 

Durante o encontro com Odair José, compositor de muito talento, a conversa rolou de tal maneira que o João Luiz sugeriu ao Odair fazer uma música, que acabou tendo enorme sucesso: “Vou tirar você desse lugar”. 

O aspecto que mais me fascinava era assistir àquela mistura do inconsciente coletivo do Jung, que pairava constantemente nas conversas, e às observações concretas do Homero Sanches, o poderoso diretor de pesquisas de mercado da TV Globo, chamado carinhosamente de “O Bruxo”. Dizia-se ironicamente que, se um dia ele chegasse para o Walter Clark ou o Boni e dissesse ser necessário colocar “Tom & Jerry” no lugar do “Jornal Nacional”, eles não hesitariam em fazê-lo! Artur da Távola , com uma linguagem mais erudita, porém com os pés sempre no chão, contrastava com a informalidade do Nelson Motta, com seu conhecimento musical e artístico que nenhum outro membro do grupo possuía, e que às vezes desestabilizava a ordem intelectual. 

Eu gostava muito da mordacidade, da perspicácia e da ironia do Zé Rubem se defrontando, às vezes, com a sutileza feminina e a tranquila inteligência da Dorrit; do sempre apaziguador Zuenir, que era uma fera para sacar e detectar o consenso possível entre as opiniões. 

Foi uma das mais ricas experiências de minha vida profissional e — por que não dizer? — de minha vida pessoal, tal foi o reflexo que todas aquelas conversas entre “gente de boa cabeça” e “gente de grande talento” tiveram sobre mim. E até hoje tenho uma imensa gratidão para com todos os que se envolveram com tanta paixão naquele exercício que, graças a eles, tornou-se de uma eficácia impressionante.

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