Mestre Afonso Aguiar assume a organização grupo e as obrigações religiosas, além de abrir as portas para os simpatizantes não ligados ao candomblé
Por Camila Souza
Nem o aval dos orixás tranquilizou o oluô Luís de França na hora de passar o comando do maracatu Leão Coroado para as mãos do mestre Afonso Aguiar. No candomblé, nenhuma decisão é tomada antes de uma consulta às divindades. O nome do sucessor surgiu em um jogo de búzios, lançado após mobilização da Comissão Pernambucana de Folclore e dos sacerdotes do tradicional terreiro de Pai Adão, preocupados com o futuro do folguedo, que completa 150 anos no próximo dia 8 de dezembro. Homem difícil, Luís, já com 97 anos, preferia “acabar com tudo” a entregar a herança dos pais, ex-escravos, a quem julgasse incapaz de honrá-la.
“Foi uma ironia. Não entendia nada de maracatu ou de carnaval. Só tinha ligação com o candomblé”, lembra o babalorixá Afonso. Aquele ano, 1996, foi especialmente difícil para o Leão Coroado. Foi a segunda vez na história que a nação não desfilou no carnaval – a primeira foi em 1918. “A situação era bem precária. Quando eu assumi, só tinham poucas alfaias desgastadas, um estandarte de 1989 e duas calungas”, revela o mestre. Ainda assim, no ano seguinte, o maracatu saiu em cortejo pelas ruas.
Dois meses depois, estava o oluô de mala e cuia na porta de Afonso, em Águas Compridas, para passar uma temporada. Foi sem avisar nada. Como o dono na casa não estava, só a esposa, recusou-se a entrar. Ficou a manhã toda à beira da calçada, sob o sol. “E ainda resmungou quando eu cheguei: ‘isso é hora de homem casado ficar pelo meio do mundo, seu cabra?’”. Passou 19 dias por lá. Só saiu para morrer. Mas cumpriu o seu papel. Passou tudo o que sabia para o sucessor em conversas madrugada adentro.
“Por ser um folguedo de escravos, que eram analfabetos, não há registros documentais. A preservação da sua tradição deve-se, principalmente, à história oral”, pontuou Lúcia Gaspar, bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco, em depoimento ao site da instituição. Daí em diante, Afonso assumiu a organização, as obrigações religiosas e a direção da batucada de baque virado da nação nagô, além de abrir as portas para os simpatizantes do maracatu não ligados ao candomblé. “Antigamente, houve um enfraquecimento da nossa cultura por causa desse tipo de exigência”, analisa o mestre.
Em contrapartida, a coisa carnavalizou um pouco. Em setembro, quando começam os ensaios para os dias de Momo, a sede do Leão, em Águas Compridas, lota. Durante as cerimônias de sacrifício/purificação, essenciais antes de ganhar as ruas, esvazia-se. “Não há demérito nisso. Existindo um corpo religioso que cumpra as demandas do candomblé, é até bastante comum. Hoje cada maracatu está ligado a uma devoção religiosa. Mas a maneira com que as nações vão lidar com isso é distinta”, pondera a antropóloga Jailma Oliveira.
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