segunda-feira, 8 de maio de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




15 - Dercy Gonçalves, Venezuela e outras histórias

O marco da separação de Dalva e Herivelto se deu numa excursão à Venezuela, iniciada por volta de 1949. Foi o desfecho de uma agonia. Ele havia recebido um convite de Dercy Gonçalves para integrar o Trio de Ouro à sua companhia teatral, que se apresentaria na Venezuela. Nessa fase da vida, meus pais já estavam praticamente separados. Herivelto tentava administrar uma situação insustentável — viver em casa com Dalva apenas pelo trabalho com o Trio, enquanto o namoro com Lurdes se aprofundava. Na marra, meu pai ia impondo novas regras para o casamento, não permitindo que minha mãe interferisse na sua vida pessoal, enquanto mantinham uma vida de fachada para darem continuidade aos compromissos do Trio de Ouro. Quando digo que a situação era insustentável, faço minha análise sob uma ótica masculina, no contexto moral vigente nos anos 40. Explico: essa situação funcionava, na prática, apenas para meu pai. Lá em casa, continuavam a dividir o mesmo quarto, a mesma cama. Sei que um casamento não acaba realmente enquanto um homem e uma mulher estão dividindo a mesma cama. Meu pai, egoisticamente, se liberara para viver o romance com Lurdes. Permitia-se dormir fora de casa e muitas coisas mais. Mas seu sentimento machista de posse em relação à minha mãe permanecia — ele nunca lhe deu nenhuma liberdade; ao contrário, morria de ciúme. Daí, mais motivos para brigas. Imagino que muitas delas foram provocadas por minha mãe. Apaixonada e ferida no amor próprio e mesmo sabendo ser impossível continuar com aquele casamento, não se conformava em perder seu homem para outra mulher. E assim, estimulada pelas novas regras de liberdade de meu pai, ela devia provocar muito o ciúme dele. Bonita, doce, alegre, destacando-se no Trio, Dalva era muito assediada. Meu pai, porém, não admitia, absolutamente, a hipótese de minha mãe ser cortejada por alguém. Antes do embarque para a Venezuela, já haviam iniciado o processo do desquite — viajaram sob regime de separação consensual. Por exigência do juiz da Vara de Família, que não considerava meus pais aptos a nos darem a atenção necessária devido às características do seu trabalho, Bily e eu fomos enviados para o colégio interno. Incrível, não? Na consideração desse juiz, a um casal de artistas não era permitido procriar, pois não haveria tempo em suas vidas para a educação dos filhos. Alguns aspectos da viagem à Venezuela são ainda meio nebulosos, e precisei perseguir muito a verdade. Mas tive a sorte de conversar com três pessoas que participaram da excursão: Amália Maia (esposa do maestro Vicente Paiva), Suzy Souza (corista da companhia) e a própria Dercy. Herivelto, ao receber o convite de Dercy Gonçalves, dona da companhia, exigiu que se contratasse também o grande maestro e compositor Vicente Paiva como diretor musical do show. Além de amigo dos meus pais, principalmente de Dalva, Vicente é autor de grandes sucessos de Carmen Miranda, como “ Disseram que voltei americanizada”,
“Mamãe eu quero!”, e de uma das mais lindas canções brasileiras, “Ave Maria”, que se transformou num dos carros-chefes de Dalva quando a gravou em 1951. Vicente foi acompanhado de sua esposa, Amália, amiga de minha mãe, e que se iniciava como cantora no grupo, incentivada por Dalva. Há controvérsias sobre a forma como foi armada essa produção. Meu pai sempre nos contou que Dercy havia abandonado o grupo em Caracas, sem pagar o cachê, sem as passagens de volta e deixando os figurinos como parte do pagamento. Ficou até de relações cortadas com Dercy por causa desse trabalho. Alegava que chegara a penhorar nossa casa na Ilha do Governador para contribuir como coprodutor desse show e fora abandonado por ela. Numa rápida entrevista com Dercy, durante a festa de aniversário dos 90 anos do Braguinha, ela me disse que a produção do show tinha sido somente dela. Contou que fora contratada pelo governo venezuelano, de quem havia levado o maior cano. Mas não quis se aprofundar muito no assunto. Ao me encontrar com Amália Paiva e Suzy, pude ouvir uma história mais lúcida e desapaixonada sobre esse episódio. Segundo elas, o show, montado no formato das revistas da praça Tiradentes, estreou em noite de gala no Teatro Municipal. Mas foi um fiasco. O usual palavreado e gestos obscenos de Dercy, mesmo no idioma português, chocou o público de Caracas, bem mais tradicional. O espetáculo recebeu muitas vaias, provocando a retirada do público em cena aberta. Foi um susto para o elenco — estavam acostumados a fazer o maior sucesso no Brasil. Ficou claro nos dois primeiros dias que somente os números musicais e de dança estavam agradando. Era necessário conter Dercy nos seus gestos e textos muito apelativos ou cortar a sua participação para o show poder continuar. Impossível! Qualquer brasileiro sabe que ninguém segura a irreverente e genial Dercy Gonçalves. E o pior: ela era a patroa. Como é que se corta a participação da patroa? O show parou no terceiro dia. Nesse clima, Dercy optou por voltar ao Brasil. Por intermédio da embaixada brasileira, havia conseguido com o governador de São Paulo, Ademar de Barros, as passagens de volta. O elenco se reuniu para resolver o que fazer. Alguns queriam voltar logo. Outros, como Vicente Paiva, não quiseram voltar desenxabidos e sem dinheiro para o Brasil. Decidiram então ficar: Herivelto, Dalva, Vicente, Amália, Suzy e Nilo (que, nesta altura, já viviam um romance) e mais três coristas. No entanto, a passagem de volta não era o único problema da equipe; havia a conta do hotel também. Dercy, irreverente e moleca, como sempre, deu a sugestão de saírem “à francesa”, isto é, pulando a janela do hotel. Novamente, o grupo ficou dividido. A maioria (quinze pessoas) aceitou a sugestão. No dia e hora combinados, eles “saíram” do hotel com Dercy. Um a um, jogaram a mala na rua e pularam a janela do hotel! O grupo divergente — Herivelto, Dalva, Nilo, Vicente, Amália, Suzy e três coristas — resolveu enfrentar a situação.  Foram à gerência, contaram a história do teatro e explicaram que iriam procurar trabalho para pagar a hospedagem e a passagem de volta. Pela atitude corajosa, o grupo ganhou o apoio do gerente e começou a procurar trabalho em Caracas. Conta Amália que era mais difícil encontrar trabalho para fazerem juntos. Combinaram de tentar separadamente até conseguir reunir dinheiro para a volta. Encararam os mais diversos tipos de espaços de shows. Algumas vezes, o Trio conseguia se reunir, mas quem encontrou mais facilidade para trabalhar foi Dalva, acompanhada do maestro Vicente Paiva. Muito amigos, Dalva, Vicente e Amália estavam sempre juntos. Dalvinha (como Amália carinhosamente a chama) e Herivelto já não dividiam o mesmo quarto nessa viagem à Venezuela. Nesse momento tão difícil, iniciando uma nova etapa de vida com Herivelto (perto no trabalho, mas com o casamento desfeito), foi Amália a sua fiel confidente. No colo da amiga, Dalvinha chorava a perda do seu amor. Reclamava da saudade dos filhos. Ria dos pretendentes que a assediavam. Falando em pretendentes, Amália contou também que meu pai curtia a sua nova liberdade, mas estava sempre de olho em Dalva. Morria de ciúme. Principalmente de um belo rapaz venezuelano, sempre em volta de minha mãe, fazendo uma corte insistente. Um dia, no camarim, depois dos cumprimentos dos admiradores e, é claro, do entusiasmado fã de Dalva, Herivelto começou uma cena de ciúme das grandes. Acabou apelando e partindo para a agressão física. Foi um rebu. Vicente teve de entrar no camarim para apartar a briga. Em sua biografia, meu pai conta ter ido para a Venezuela já separado de Dalva e afirma displicentemente que ela teve um caso lá todo o tempo. Mas não faz nenhum comentário sobre sua postura possessiva e ainda agressiva com minha mãe. Amália não con-firma esse romance, dizendo que Dalva estava sempre com ela e Vicente. E me diz: “E se Dalva estivesse namorando alguém, qual seria o pecado? Se eu soubesse, diria pra você. Ela não estava livre?”. Amália diz que nunca entendeu essa atitude e Herivelto, já que era de conhecimento de todos no meio musical seu romance com Lurdes. Lembra que, para desagrado dela e de Vicente, que amavam Dalvinha, Herivelto já havia estado com Lurdes em sua casa no Rio, no ano anterior, 1948. Após três meses em Caracas, conseguiram dinheiro suficiente para chegar ao aeroporto brasileiro mais próximo, o de Belém. Saudosos de suas famílias no Rio, sentiam que agora, em solo brasileiro, seria mais fácil ganhar dinheiro para voltar para casa. Realmente foi. Ou melhor, foi além de suas expectativas. Fizeram um sucesso estrondoso. Depois da dificuldade que amargaram em Caracas, o sucesso em Belém era um bálsamo para suas feridas. Conta Suzy que alugaram uma grande
casa, com mangueiras no quintal, e viviam como uma família. Minha mãe estava sempre alegre e bem-humorada, mas às vezes chorosa, por alguma estupidez de meu pai. Todos ajudavam na casa. Dalva, ótima cozinheira, estava sempre pela cozinha. Vicente, o maestro, também tinha muito jeito para os pequenos consertos de que os figurinos do show necessitavam. Herivelto, grande contador de causos, alegrava todos com o violão, cantando suas músicas e recitando poemas sertanejos. Suzy lembra que o grupo normalmente se dividia nas atividades sociais: com Dalva, saíam Vicente e Amália; com Herivelto, ela e Nilo. Nessas saídas pela noite de Belém, Herivelto algumas vezes abriu o coração para Suzy, contando sobre a sinuca de bico em que se encontrava: no Rio, Lurdes esperava por ele, num clima de romance novo; em Belém, estava próximo fisicamente de Dalva, mas, ao mesmo tempo, muito distante. Nesses momentos de confidências, regados às vezes por um drinque, Herivelto falava da falta que sentia de Dalva, de sua cumplicidade como companheira, de sua alegria e dedicação. Eles foram muito bem recebidos pela sociedade de Belém, principalmente pelos mais boêmios, Dalva e Herivelto sempre muito paparicados. Minha mãe contava que essa “temporada” em Belém durou por volta de três meses. Lembrava-se também de uma história pitoresca sobre o samba “Amigo”, escrito por Herivelto na capital paraense. Meu pai frequentava a casa de um amigo, casado com uma mulher muito bonita, e as visitas foram se tornando cada vez mais frequentes. Então, pintou um romance. Mas Herivelto, sentindo a situação se complicar muito, saltou fora. E fez o samba:

Meu amigo
Teu amigo vai-se embora
Teu amigo parte agora
Para não mais regressar
Não quero ser o culpado
Da tragédia
Que por enquanto é comédia
No cenário do teu lar
Há mulheres
Que nasceram com o destino
De não ter o dom divino
De viverem só pra um
Meu amigo
Me despeço aqui por fim
Esta mulher que te beija
Te beija pensando em mim
O teu lar
Era o meu lar também
Pra quem vive sem ninguém
Um lar ajuda a viver
Mas vou-me embora
Pode a carne enfraquecer
Por favor, não me censure
Estou cumprindo o meu dever

Era um relato genial, num momento altamente inspirado. Quando estourou a polêmica musical e Nelson Gonçalves gravou o samba, em 1951, o público pensou que era mais um dos recados de Herivelto para Dalva, mas não era verdade. Com a sinuca aumentando (Lurdes esperando-o no Rio, a saudade da ex-esposa, tão perto e tão longe, e o romance com a mulher de um amigo em Belém), meu pai viu que era hora de retornar ao Rio e dar um rumo à sua vida. Chamou todos e disse que ia embora. Minha mãe, acho que pressentindo o desfecho dessa volta, não quis acompanhá-lo. Preferiu tentar ainda fazer Algum dinheiro em Belém e ficou com os amigos Vicente e Amália Paiva. Com o maestro ao piano, começaram a faturar juntos. Foi então que, trabalhando pela primeira vez por conta própria, minha mãe se deparou com uma situação nunca vivida. Como já contei, meu pai era quem fazia os contratos e \recebia os cachês do Trio de Ouro. Dava a Nilo sua parte, mas nunca entregava a de Dalva. Era ele quem provia a casa e as despesas pessoais de minha mãe. Assim, Dalva trabalhava, mas não tinha acesso ao dinheiro. Conta Amália que, depois do primeiro show que Dalva e o maestro fizeram sozinhos em Belém, ele entregou o dinheiro do cachê para minha mãe. Ela arregalou os olhos muito verdes e desatou a chorar. Assustado, sem entender o porquê daquele pranto repentino, Vicente procurava consolá-la. E ficou ainda mais surpreendido ao ouvir a explicação dela: “Não estou triste, não, Cabeção, estou emocionada. É a primeira vez que vejo tanto dinheiro junto. É todo meu, tem certeza?”. Comovido com aquela criatura tão frágil, ele confirmou que já havia pego a sua parte e que aquele dinheiro era todo dela. Vicente Paiva era um ser humano maravilhoso, um mulato boa-pinta, de sorriso contagiante. Nossas famílias estavam sempre juntas — Bily e eu tínhamos mais ou menos a mesma idade de seus filhos, Deisy e Décio. Brincamos muito juntos. Deisy herdou sua beleza morena e o sorriso muito branco. Ótima cantora, chegamos a trabalhar juntos em São Paulo, no início de nossas carreiras, e somos amigos até hoje. Dalva escutava muito o amigo Vicente e sempre lhe pedia orientação. Amália conta que, quando minha mãe morava em Vila Isabel, na rua Barão de Cotejipe, e lhe ofereceram a casa de Jacarepaguá para comprar, ela só fez o negócio depois de levá-los até lá e ouvir a aprovação de Vicente. Ele precisou incentivá-la muito, pois ela estava receosa de assumir um compromisso tão grande. Os três se divertiam muito juntos e trocavam apelidos. Dalva chamava Vicente de Cabeção e Amália, de Pinguinho. E Vicente chamava Dalva de Olívia Palito. Como maestro e compositor, ele tinha adoração pelo canto de Dalva. Numa bela homenagem a seus olhos, compôs o samba-exaltação “ Olhos verdes”, um estilo muito em voga na era de Getúlio, dominado à perfeição por ele. A música tornou-se um clássico da MPB e carro-chefe no repertório de Dalva:

Vem de uma remota batucada
Na cadência bem marcada
Que uma baiana tem no andar
E nos seus requebros e maneiras
Na graça toda das palmeiras
Esguias e altaneiras
A balançar
São da cor do mar, da cor da mata
Os olhos verdes da mulata
Tão cismadores e fatais, fatais
E num beijo ardente e perfumado
Conserva o travo do pecado
Em saborosos cambucais

Em meados de outubro de 1949, o grupo voltou de Belém. No Rio, minha mãe foi obrigada a enfrentar a realidade: o fim de seu casamento com Herivelto. Ao chegar em casa, ficou sabendo pela família que meu pai havia ido embora definitivamente. O romance com Lurdes, a bela aeromoça de olhos verdes, continuava e se transformava em algo mais sério. Aí então o circo começou a pegar fogo. Rasgada no seu amor, mordida de ciúme, ferida no amor-próprio e tendo de enfrentar a realidade com o fim das “férias”, Dalva retomou a carreira. E fez muito sucesso em sua primeira gravação sem o Trio de Ouro, “Tudo acabado”. Sem conseguir encarar seu sucesso, meu pai apelou e rompeu o clima de desquite amigável. Bate-bocas, insultos, jornais, advogados, tribunais, gente que não tinha nada com a história, gente que tinha culpa no cartório. Gente que queria lucrar com tudo aquilo. Gente que nos feriu muito. A separação se transformou num inferno, sob todos os aspectos.



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