Homenageada por foliões, a obra do compositor capixaba é valorizada em projeto criado por seu filho para aproximar "sampaiófilos" pelo País
Por Miguel Martins
Organizado pelo filho de Sérgio, o projeto Viva Sampaio reúne entrevistas, vídeos e belas fotos
Há 28 anos, Sérgio Sampaio contou em entrevista a Zeca Baleiro como era comum alguém perguntá-lo “e aí, querendo botar o bloco na rua?”, em alusão a sua canção de maior sucesso. Ele costumava responder: “Não, já botei, agora falta vocês botarem”.
No ano em que o compositor capixaba, morto em 1994, comemoraria 70 anos, o conselho parece ter sido literalmente acolhido. O grande número de blocos registrados no País em 2017 confirma a vitalidade do carnaval de rua, especialmente em supostos “túmulos do samba”. Em São Paulo, estão programados quase 400 desfiles neste ano. No Distrito Federal, são perto de 200. Metáfora da angústia ante o silêncio imposto em tempos de repressão, o desejo de Sampaio parece tardiamente realizado: se não todo mundo, tem muita gente neste carnaval.
Coincidência ou não, diversas homenagens ao músico de Cachoeiro de Itapemirim (ES) marcam a folia deste ano. Na quarta-feira 22, o Bloco na Rua, uma reunião anual de "sampaiófilos", desfilou em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, pelo quarto ano consecutivo.
Integrado por nomes como Jards Macalé e Luiz Melodia, o cordão apresentou neste ano um enredo em homenagem a duas das principais composições do cantor cachoeirense."O samba enredo é na escola/ Poesia é na calçada/ Durango Kid me prendeu/ Continua a batucada", diz o refrão, ao misturar os versos de Cada Lugar na Sua Coisa, do álbum Tem que Acontecer, de 1976, e de sua canção mais famosa.
Criado em 2014, o Bloco na Rua volta a homenagear o compositor neste carnaval
Lançada como compacto em 1973, com 500 mil cópias vendidas, Eu quero é botar meu bloco na rua também foi repaginada e modernizada pelo grupo BaianaSystem e pela rapper Yzalú. Trilha de uma peça publicitária, a animada versão pouco lembra a interpretação melancólica e cortante de Sampaio.
Quando escreveu Eu quero é botar meu bloco na rua, o cantor vivia tempos de angústia. “Lembro que eu era muito sozinho, fiz a canção e sentia que ela tinha um poder”, relembrou na entrevista a Zeca Baleiro.
O compositor não negava, contudo, a força política daquele que seria um dos grandes hinos contra a censura e a perseguição do governo Médici, marcado pelo milagre econômico e pelo chamado “desbunde” da classe média. “A grande importância dessa canção é ter sido feita e lançada numa época em que as pessoas estavam muito amordaçadas e bastante medrosas de abrirem a boca para falar qualquer coisa”. O verso "(há quem diga) que eu morri de medo quando pau comeu" sintetiza o sentimento descrito.
A entrevista de 1989, concedida à revista Umdegrau, de Zeca Baleiro, é uma das preciosidades coletadas por João Sampaio, filho de Sérgio. Convencido da necessidade de preservar e divulgar a memória musical do pai, ele lançou o projeto Viva Sampaio, que reúne vídeos, documentários, entrevistas e belas fotos do compositor.
Três Rauls foram fundamentais em sua trajetória, a começar por seu pai, Raul Sampaio, maestro de banda em Cachoeiro de Itapemirim
A reverência aos antecessores é uma postura comum à família Sampaio. Sérgio formou-se musicalmente ao acompanhar o pai e o primo, ambos de mesmo nome: Raul Sampaio. O primeiro era maestro da banda da cidade, o segundo compositor de belas canções, entre elas “Meu pequeno Cachoeiro”, um grande sucesso na voz de Roberto Carlos, conterrâneo da família.
Músico frustrado, como ele próprio define, João Sampaio sempre foi estimulado por amigos e por Zeca Baleiro, um grande entusiasta de Sergio, a organizar um memorial sobre o pai. “A grande dificuldade de sua trajetória sempre foi a falta de divulgação”, comenta. “Até porque a taxa de retorno de quem escuta Sérgio Sampaio é muito alta. Muitos viram ‘sampaiófilos’ depois de conhecerem sua música.”
Um dos mais destacados “sampaiófilos” foi Raul Seixas, principal responsável por abrir portas para a carreira musical do cantor. Antes de conhecer o roqueiro baiano, Sérgio trabalhou em rádios em Cachoeiro e no Rio, onde apaixonou-se pelas composições de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa. A paixão por Beatles ganhou força no fim dos anos 1960. O movimento tropicalista, a bossa nova de João Gilberto e o samba de Paulinho da Viola também marcavam presença em seu toca-discos. Um ecletismo que atravessa a obra do compositor.
Em 1971, Sérgio foi convidado pelo amigo Odibar a acompanhá-lo no violão durante uma audição na gravadora CBS, onde Raul Seixas era produtor musical. Odibar apresentou algumas de suas composições, mas Raulzito não se impressionou. Foi a deixa para o violonista apresentar algumas canções de sua lavra. Sérgio foi contratado pelo roqueiro baiano no dia seguinte. “Meu pai e Raul se tornaram muito amigos”, diz João.
A amizade resultou na formação da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, um projeto musical anárquico inspirado nos Beatles e em Frank Zappa. Após gravar seu primeiro compacto pela CBS, Coco Verde, Sampaio juntou-se a Raul, Miriam Batucada e Edy Star e decidiram gravar um disco marcado pela liberdade criativa.
À época, o roqueiro baiano atravessava uma fase de ostracismo e compunha canções para outros intérpretes, mas Sérgio incentivava o amigo a ser protagonista. “Meu pai pedia para ele cantar, dizia 'você é artista', mas o Raul vinha com aquele papo de botar comida na mesa dos filhos”, diz João.
Assim como discos anárquicos contemporâneos como Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, o álbum foi um fiasco de vendas. Sofreu ainda sucessivos cortes da CBS, conta João. “Naquela época, o disco da Grã-Ordem Kavernista não seria bem aceito nem mais revolucionária das gravadoras. Ele quebrava com tudo.”
Após o fracasso do projeto, Sampaio e Raul despontariam com dois compactos de enorme sucesso: Eu quero é botar meu bloco na Rua e Ouro de Tolo, ambos de 1973. As canções resumiam com clareza e concisão poética o clima do milagre econômico, quando a classe média se acomodava com o enriquecimento pessoal e virava as costas para a repressão militar e a censura. “Meu pai nunca foi um cara politizado como o Chico Buarque ou o Gonzaguinha”, diz João. “mas ele acabou sendo político no desbunde.”
Apesar do sucesso de “Bloco na Rua”, Sérgio não conseguiu deslanchar comercialmente, ao contrário do amigo Raulzito. Não faltavam grandes canções e discos: Lançado em 1976, tem que Acontecer é uma obra-prima, na qual se destacam as faixas Que Loucura, Cada Lugar na Sua Coisa, Ninguém vive por mim e tantas outros clássicos obscuros da música popular brasileira.
“Ele era um cara mais preocupado em fazer do que em se promover”, diz João “Era também impulsivo. Após a gravação de Tem que acontecer, Roberto Moura, produtor do álbum, avisou que seria importante fazer ações para ‘colocar o disco na rua’. O Sergio simplesmente pegou o carro e se trancou em Cachoeiro. Um diretor de gravadora disse uma vez: 'Você pode me trazer tudo o que vier desse cara, só não quero ele na minha gravadora'."
Avesso à autopromoção, Sergio morreu em relativo esquecimento, mas o crescente número de “sampaiófilos” atesta a atemporalidade de suas composições. O Viva Sampaio tem funcionado como um ponto de encontro para iniciativas relacionadas à música do cachoeirense. Para comemorar os 70 anos de Sérgio, Aline Dias organizou, com apoio do projeto de João, o concurso literário “Sem a Loucura Não Dá”, que reúne uma série de crônicas e textos inspirados em canções do compositor.
Em tempos em que o povo brasileiro parece anestesiado frente aos desmandos na política, a poesia do desbunde de Sampaio volta a ser atual. “Quando você fala sobre o ser humano, a obra torna-se atemporal. O contexto muda, mas as angústias são as mesmas”, analisa João. Sérgio parecia buscar uma saída ao silencio de sua época. Com a promessa de ser barulhento, o carnaval de 2017 confirma uma das máximas de Cada Lugar na Sua Coisa: “lugar de samba-enredo é no asfalto”.
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