segunda-feira, 29 de maio de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




18 - Que será da minha vida sem o teu amor

O Hotel Quitandinha, em Petrópolis, foi cenário das mais saborosas lembranças da minha infância. Ao sabermos que nossos pais iam se apresentar lá, Bily e eu pulávamos de alegria, com a certeza de dias muito divertidos. No hotel, desfrutávamos do que havia de melhor em acomodações. Como qualquer criança, a nossa paixão eram as piscinas, especialmente a de água quente, dentro do hotel. Até hoje soa em meus ouvidos o eco do som da água e das pessoas gritando e falando alto, em volta da piscina quente. Além do restaurante principal, havia outro só para as crianças, todo colorido. A comida era farta e gostosa e um clima de alegria dominava tudo. Os shows aconteciam no Grill, ambiente chique, onde as mulheres iam de vestido longo e os homens de smoking. Havia uma espécie de mezanino onde eu gostava de ficar para assistir às apresentações de meus pais e outros artistas no palco. Na hora do show do Trio de Ouro ou de alguma atração inter-nacional, eu tinha de arranjar um cantinho, pois ficava tudo lotado. Os shows no Grill eram muito variados. O palco giratório era uma atração à parte. Assim que um número estava terminando, o palco começava a rodar e do outro lado ia surgindo a atração seguinte. Nossos pais, assim como os outros artistas e músicos, iam dormir muito tarde. Mas a gente, normalmente cansado de tanto brincar, dormia cedo. E acordávamos cedo também . Portanto, logo pela manhã, Bily e eu estávamos acesos. Achávamos chiquérrimo pedir o café no quarto. Fazíamos o garçom entrar naquela penumbra, com o carrinho cheio de delícias, e tomávamos nosso café iluminados apenas por um fiozinho de luz da cortina entreaberta, aos cochichos, para não acordar nossos pais. Depois, íamos brincar de bola nos corredores. Normalmente, a equipe do show ficava em quartos ao lado do nosso. Podem imaginar o resultado: a bola acabava batendo na porta de algum deles. Estava sempre conosco um vibrafonista muito querido por nossa família, chamado Xuca-Xuca. Recentemente, eu o vi — inteiraço — numa reportagem da TV Globo. Xuca teria mais ou menos a idade do meu pai, se ainda fosse vivo. Pois Xuca-Xuca correu muito atrás de nós, quando a bola batia na porta dele, acordando-o. O Quitandinha foi um dos lugares mais bonitos e chiques que conheci. Pena que, sem uma política cultural mais efetiva e sem a necessária reabertura dos cassinos no Brasil, espaços como esse ficaram tão abandonados. Foi no Quitandinha que assisti a um momento marcante da carreira de minha mãe: sua volta aos palcos sem meu pai. Sozinha naquele palco, onde tantas vezes entrara ao lado do marido, minha mãe re-começava tudo. Imagino que a sensação era terrível. Não tinha mais Nilo, não tinha mais Herivelto. Não havia mais a certeza do resultado, os arranjos conhecidos. Nem a certeza do aplauso. A insegurança tomava conta dela. Essa primeira vez, após a temporada sozinha em Belém, aconteceu graças aos incentivos de Luís Bonfá, Xuca-Xuca e Francisco Pacheco, o Chicão. Ela e Chicão estavam de namorico. Chicão era um sujeito alto, moreno, bonito e participava ao lado de Luís Bonfá do conjunto Quitandinha Serenaders. O grupo abria o espetáculo no palco giratório com uma bonita apresentação, to-dos muito bem -vestidos. Chicão tinha uma postura séria, mas simpática. Eles deram à minha mãe uma força especial num momento decisivo. Sem o empurrão, talvez ela não conseguisse encarar aquele palco, com a lembrança de meu pai e do sucesso do Trio de Ouro tão recentes. Mas encarou. Com medo, tremendo, entrou no palco e cantou. Cantou bonito. Triste, machucada até o fundo da alma, minha mãe cantou. Com seu mundo caído, a única saída era erguer um novo. Era tudo ou… tudo. E, a partir daí, minha mãe não parou mais. Foi contratada pela Rádio Nacional, começou a gravar sozinha na Odeon e a fazer muitos shows. Em meio ao conflito que se estabeleceu entre meus pais, houve um momento em que a praça Tiradentes, no Rio, se tornou uma verdadeira arena de guerra. Por uma infeliz coincidência, estavam em cartaz, ao mesmo tempo, Dalva e Herivelto. Meu pai apresentava-se num show de revista no Teatro João Caetano e minha mãe, no vizinho Teatro Recreio, na rua Dom Pedro I. A praça Tiradentes virou um conflito só. Com o novo Trio (Raul Sampaio e Noemi Cavalcanti), meu pai amargava uma solidão artística muito grande. Por mais que o respeitassem como um compositor genial, as pessoas não aceitavam a forma como ele se portava na vida pessoal. Minha mãe, explodindo na carreira-solo, era produzida e dirigida pelo maior empresário teatral da época, Walter Pinto. O nome do espetáculo, É rei, sim, era um jogo de palavras com o sucesso de Dalva “Errei, sim” e o sucesso de Carnaval de Herivelto “Que rei sou seu?”. Walter deu à minha mãe a posição de estrela do teatro de revista e ainda chamou Vicente Paiva, seu amigo e maestro preferido, para acompanhá-la. Vicente deitou e rolou. Compôs especialmente para ela cantar no show “Olhos verdes”, que logo minha mãe gravaria. Outra canção de Vicente, com Jaime Redondo, que fazia a plateia vir abaixo com a interpretação de Dalva era “Ave Maria”: 

Ave Maria
Nos seus andores
Rogai por nós, os pecadores
Abençoai essas terras morenas
Seus rios, seus campos
E as noites serenas
Abençoai as cascatas
E as borboletas que enfeitam as matas
Ave Maria
Cremos em vós 
Virgem Maria, rogai por nós
Ouvi as preces, murmúrios de luz
Que aos céus ascendem
E o vento conduz
Conduz a vós
Virgem Maria, rogai por nós

O show no Recreio fez um sucesso descomunal. Trânsito interrompido, escolta policial para ela poder chegar com o carro aos fundos do teatro, saída do show também sob proteção policial. Era algo nunca visto e, acredito, que jamais veremos igual. Não é difícil imaginar o auge que ela vivenciava. Tinha seu próprio horário na Rádio Nacional, dentro do programa César de Alencar, aos sábados. Os discos nas paradas, com cinco ou seis músicas estouradas… O país inteiro pendia muito mais para o seu lado do que para o de meu pai. O mundo feminino estava todo a favor dela, numa projeção de seus próprios dramas pessoais. Minha tia Edith, que sempre assessorou Dalva nos camarins, lembra-se de um incidente envolvendo David Nasser no show do Recreio. Ainda era muito recente a baixaria promovida por ele e meu pai no Diário da Noite, e, mesmo assim, ele foi assistir ao espetáculo que ela estreava. Com uma tremenda cara de pau, bateu à porta do camarim . Edith espantou-se ao vê-lo e ficou muda. Lá de dentro, minha mãe perguntou quem era. Ainda muda, Edith entreabriu a porta, enquanto ele dizia: “Dalva, você está maravilhosa! Vim cumprimentá-la”. Minha mãe pensou não ter escutado direito. Quando viu quem era de verdade, Edith conta que ela parecia “cachorro que ar-repia o dorso”. E soltou: “Sai daqui, seu cretino maldito!”. Levantou e chutou a porta do camarim nas costas de David. Esse foi o único confronto entre os dois. Só voltaram a se encontrar na Rádio Tupi, tempos depois. As razões de minha mãe agir assim, quem leu os capítulos do Diário da Noite pode aquilatar. Quando meus pais se separaram, nenhum deles continuou no apartamento da rua João Luís Alves, na Urca. A mobília toda foi parar num guarda-móveis. Meu pai, de mulher nova, não quis nada. Comprou tudo novo. Minha mãe não queria deixar a Urca, onde havia atingido um estágio melhor de vida e as primeiras grandes realizações artísticas aconteceram . E foi morar numa quitinete , um lugar minúsculo em que mal cabia uma cama de casal. Quando íamos visitá-la, dormíamos todos juntos. Depois, mudou-se para a rua Barão de Cotegipe, na Vila Isabel, um bairro agradável, onde já podia receber melhor Bily e eu. Ali ficou pouco mais de um ano, e, finalmente, com o sucesso, comprou a casa de Jacarepaguá. Isso só aconteceu graças à insistência de sua irmã, Margarida, pois minha mãe temia pelo que pudesse acontecer com sua carreira. Tinha muito medo, não estava acostumada a tomar decisões e relutou em assumir um compromisso tão longo e expressivo. Minha tia insistiu, o amigo Vicente Paiva apoiou e ela comprou a casa. Por pouco não perdeu um belo negócio, por pura falta de autoconfiança. Tempos depois, minha mãe iria demolir o que era apenas uma casinha de subúrbio, pequena e modesta, e construir uma bela residência para receber os filhos, a família, os amigos e os fãs. Seria o seu refúgio, o seu Shangri-lá, como gostava de se referir à casa de Jacarepaguá. 



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