segunda-feira, 1 de maio de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




14 - Desse amor quase tragédia

Entre as artistas que frequentavam a Urca, uma delas foi o pivô de uma das mais feias brigas de meus pais que presenciei. Refiro me a Isaurinha Garcia. Quando ela chegava de São Paulo, ia direto para nossa casa na Urca, onde minha mãe a esperava com todo o carinho. Eram íntimas, lá ela se sentia em casa. À noite, os amigos iam chegando, o violão aparecia, Isaurinha (já com alguns conhaques na cabeça) começava a cantar. Meu pai a acompanhava no violão e tudo era uma festa. Isaurinha era uma grande cantora, uma das maiores. Essa era também a opinião de Dalva. Até que um dia, enquanto estava na rua, minha tia Nair, distraidamente, abriu a porta do quarto de minha mãe e, sem ser vista, flagrou meu pai com Isaurinha na cama. Minha tia ficou chocada e no maior dilema sobre qual atitude tomar. Quando viu minha mãe voltar e meu pai e Isaurinha fazendo festinha, na maior cara de pau, ficou revoltada. Chamou Dalva no quarto e contou tudo. A reação dela foi tremenda. Voltou para a sala e “rodou a baiana” pra valer: jogou pela janela toda a roupa e bagagem de Isaurinha, expulsou-a de casa e… não preciso dizer que meu pai foi parar no pronto-socorro. Minha mãe era uma pessoa doce, mas, como boa taurina, tinha um gênio terrível se “pisassem no seu calo”. Mais ainda quando estava coberta de razão. Não houve quem não escutasse o escarcéu que ela fez em nossa rua da Urca. Essa história deixou muitas marcas nela e demorou para o clima voltar ao normal lá em casa. Para os dias de hoje e, principalmente, para a mulher de hoje, sei que fica a questão: por que aguentar isso? Por que não acabar com tudo e se separar? Mas, como disse antes, esse raciocínio se faz hoje. Não em meados dos anos 40. Era uma sociedade completamente diferente, com conceitos diferentes. Era uma mulher diferente, também. Essa mulher, nascida no começo do século, 1917, vivia o paradigma de que o casamento era para toda a vida e que devia obediência ao marido. Jamais havia para a mulher da época a hipótese de deixar o marido. Seria um escândalo inadmissível! Daí haver um conformismo arraigado em sua cabeça. Se tivessem sorte no casamento, ótimo! Senão, teriam de suportá-lo, a qualquer preço, até o fim. Eu digo isso porque, ao mesmo tempo que me recordo, como criança, da grande festa que era nossa casa, também observo, como adulto, que não tínhamos privacidade. Meu pai nunca preservou sua intimidade com minha mãe. Quando mais eles precisavam estar a sós, desfrutar da casa e do sucesso que começava, da paz da família, dos filhos, mais meu pai entupia a casa de gente, para comer, dormir e invadir toda a nossa intimidade, que quase não existia. Ele chegava para minha mãe e dizia: “Dalva, prepara tudo, porque já estão vindo pra cá fulano e sicrano…”, e quantos mais ele pudesse arrastar pela rua e trazer para casa. Minha mãe, às vezes, ficava furiosa, porque nem sempre estava disposta a fazer comida e arrumar cama para tanta gente, depois de cantar no cassino. Havia momentos bastante agradáveis e felizes, mas com o tempo o exagero passou a tomar conta de meu pai. E, mesmo não querendo, ela era obrigada por ele a preparar as camas espalhadas pela casa inteira e a providenciar comida e bebida para todos. Hoje, vejo que essa total informalidade de meu pai, enchendo uma casa pequena de gente, deixava no ar um clima de excessiva intimidade. Era uma amiga deles andando de camisola ou robe pela casa, era outro amigo dormindo na sala, todos usando o único banheiro. Meus pais também de camisola e pijama… Era muita tentação no ar! Quando a situação se tornou insustentável e se separaram, meu pai foi para os jornais dizer que minha mãe tinha amantes e os escondia dentro dos armários. Imagino que alguns desses amigos devem ter assediado minha mãe. Ora, não era de imaginar outra coisa: ela era muito bonita, muito querida por todos. E, sendo tratada pelo marido desse jeito, deve ter atraído pretendentes acenando com outro tipo de convivência… Imagino que, aos poucos, o cansaço e o amor-próprio começaram a falar mais alto em minha mãe. Esse clima, alternando sérias brigas com tempos de bonança, durou muitos anos. Creio até que chegaram a pensar em se separar, enfrentando o preconceito da sociedade. Mas tenho certeza de que, quando pensavam no trabalho com o Trio de Ouro, na carreira, no sucesso que estavam fazendo juntos… desistiam da ideia e empurravam seu dia a dia mais um pouco. A situação, no entanto, foi ficando pior. Meu pai cada vez mais dava bandeira de seus casos. Minha mãe costumava dizer que seu carro era um “rendez-vous ambulante”, onde encontrava toalha molhada, absorventes, papel usado depois do sexo e afins. Em contrapartida, ela o atormentava cada vez mais. Era como se fosse sua única defesa… Minha tia Lila conta que era como se minha mãe, muito machucada por dentro e sem poder revidar à altura, tivesse ficado “viciada” nas brigas. Às vezes, quando tudo estava aparentemente calmo, começava a cutucar meu pai. Sua mãe, a avó Alice, brigava com ela nesses momentos: “Dalva, até parece que você não sabe viver sem uma briga, menina! Deixa o homem em  paz”. E assim iam levando a vida. Até que, numa de suas viagens, meu pai conheceu uma aeromoça num voo da Real. Naquele início da aviação comercial, as aeromoças, todas muito bonitas, eram escolhidas a dedo, passando por uma seleção rigorosa. Além das misses, as aeromoças eram um símbolo de beleza da época. Herivelto não tirou mais aquela gaúcha da cabeça — morena bonita de olhos verdes. Seu nome: Lurdes. Foi paixão à primeira vista! Procurando-a com frequência no Rio, ele soube que era recém-desquitada e tinha um filhinho de aproximadamente 2 anos. Usando todo o seu charme, tocando suas músicas ao violão e recitando poemas, Herivelto  batalhou o coração dessa morena. No começo, ela resistiu muito ao assédio, devido à sua condição de homem casado e pai de família. Mas, como todos que o conheceram sabem, meu pai era muito determinado quando queria conquistar algo ou alguém. E seus amigos me contaram que ele realmente se empenhou em conquistar Lurdes. Corria o ano de 1947 quando a vida de meu pai começou a ficar dividida entre Dalva e Lurdes. Cada vez mais, ele foi ficando à vontade com essa situação, voltando mais tarde de suas saídas — ou não voltando — e apresentando com naturalidade Lurdes aos amigos. Em casa, com esse comportamento, as brigas se tornaram mais frequentes. E as histórias da rua sempre vazam! Minha mãe cada vez mais desconfiava de algum romance, mas ele sempre negava. Dizia que era apenas boêmia na Lapa, tudo imaginação dela. E adulava-a, comprava presentes e maneirava por algum tempo. Até que um dia minha mãe, ao lavar um terno de linho de meu pai na banheira, encontrou no bolso do paletó uma fotografia dele com uma mulher e uma criança no colo. Imediatamente, imaginou ser a tal morena das fofocas que chegavam com insistência até ela. Mas o menino… nunca haviam falado de uma criança. Sua cabeça parecia que ia explodir! Pensava: “Herivelto sempre me deu trabalho por causa de mulher. Eu sei, ele adora uma novidade. Mas depois de um tempo, passa. Agora, uma criança… Meu Deus, o que significa isso?!”. E na cabeça de minha mãe não havia lugar para outra explicação a não ser que fosse filho de Herivelto. Quando meu pai chegou, armou-se uma tremenda confusão. Discutiram muito. Herivelto tentou negar tudo. Dizia que era apenas uma amiga (aqueles papos masculinos), jurava que o filho não era dele, mas minha mãe não acreditava. E mais brigas! A partir daí, a existência de uma vida extraconjugal de meu pai ficou bastante evidenciada na cabeça de minha mãe. As desculpas não a convenciam mais. Ele não conseguia aplacar suas desconfianças com presentes e carinhos. Começaram a falar na possibilidade de separação. Mas surgia a questão: e o Trio? E a carreira? Nesse clima, imagino que foi surgindo devagarzinho a ideia de manterem o casamento por causa dos compromissos profissionais e dos filhos. E assim, aos poucos, meu pai passou a forçar cada vez mais uma situação que só beneficiava a ele. Em seu egoísmo, procurava conciliar o sentimento que nutria por minha mãe, o trabalho com o Trio de Ouro e a paixão por Lurdes. Tudo isso acontecia sem meu pai sair da cama de casal que dividia com minha mãe. Devagar, meu pai ia criando uma nova realidade — Lurdes começava a fazer parte de sua vida. Não sei se minha mãe encarava isso realmente. Só sei que Lurdes, como qualquer mulher que entra na vida de um homem casado, pressionava meu pai para tornar realidade o que dissera a ela logo que se conheceram — que estava disposto a sair de casa e deixar minha mãe. Não foi o que aconteceu. Acredito que sempre com a desculpa (às vezes, verdadeira) do trabalho com Dalva no Trio de Ouro, o caso deles se arrastou por quase três anos sem meu pai deixar a nossa casa. Enquanto isso, ele misturava bastante os “departamentos”. Por exemplo: mesmo sem sair de casa, já visitava alguns amigos do casal, como Amália e Vicente Paiva e Nelson Gonçalves, ao lado de Lurdes, causando grande constrangimento aos que amavam minha mãe. Lembro-me de conhecer Newton, filho de Lurdes, ainda muito pequeno e bem antes de meu pai sair de casa e morar com ela. Imagino que tenha me apresentado o menino como filho de alguma amiga (naquele tempo, os adultos achavam que as crianças não entendiam o que se passava à volta delas). Toda essa situação foi dando muita moral a Lurdes, a ponto de ela, algumas vezes, ligar para casa atrás de meu pai. Numa dessas vezes, quando já estava realmente definido que iriam se separar, pouco antes da viagem à Venezuela, minha mãe atendeu o telefone. Lurdes, já se sentindo fortalecida pelo desenrolar dos acontecimentos, travou o seguinte diálogo com minha mãe: “Quero falar com o Herivelto”. “Quem quer falar?” “É a Lurdes!!” “Mas você não tem vergonha, não? Como é que se atreve?” “Ora, Dalva, deixa de bobagem. Você está cansada de saber de tudo. Nós duas precisamos resolver isto de uma vez por todas. Proponho que a gente se encontre e converse.” “Pra quê? Não temos nada pra conversar.” “Temos, sim, Dalva. Que tal na Leiteria Bol?” “Tá certo, acho que é uma boa ideia. Amanhã às cinco.” No dia seguinte, lá estavam as duas mulheres, frente a frente. Minha mãe matando a sua natural curiosidade em relação a Lurdes. Ela, como artista, já era conhecida por Lurdes. Mediram-se um pouco e começaram uma conversa de quase uma hora. Minha mãe, ao voltar para casa, encontrou minha tia Margarida toda curiosa e aflita com o encontro. Dalva, ironicamente, disse: “Ah, aquela boba está achando que com ela o Herivelto vai ser diferente. Vai ser fiel. Imagina só!”. “E o que você disse pra ela?”“Disse que ele vai continuar aprontando das suas. Não é flor que se cheire!” E minha mãe continuou contando sobre a conversa: “Ô, Lurdes, quero te prevenir de uma coisa muito importante. E não diga depois que não te avisei. O Herivelto não gosta de tomar banho. E cada vez que precisa, eu é que encho a banheira e obrigo ele a se banhar. Portanto, está avisada. Ele chegava cheirosinho na sua casa por minha causa. Agora, cuida pra ele não feder! ”.



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