terça-feira, 16 de maio de 2017

A FRUIÇÃO DE ALMÉRIO – UM GOSTO E UM GOZO

Por Gonzaga Leal


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A música é comprometida quando o músico, como cidadão, é um homem comprometido. Não é o produto saído do cantor que define esse compromisso, mas o conjunto de circunstâncias que o envolvem com o momento histórico e político que se vive e as pessoas com quem ele priva e com quem ele canta.

Como é magnífico um artista abrir uma carreira e aparece no mundo sábio, como um cometa inesperado que cintila no espaço! É assim como vejo Almério! Um artista que parecia que sempre tinha existido e havia ali estado, para ouvi-lo, na estreia do show de lançamento do seu novo trabalho, DESEMPENA.

Estava lá o palco, aberto... com semblante Brechtiano. Um devir abrasador! A estranheza da visão primeira daquele corpo ágil e viril. A ameaçar desmaiar... O corpo espectro. Um homem agitado irrompe. Passos rápidos, braços estendidos em frente. As mãos, levemente encurvadas em conchas viradas para cima, abrem-se timidamente ao mundo e reenviam sempre, nessa concavidade, os sentimentos para dentro do ser.

Almério é um artista incomum, um intérprete de rara sensibilidade – um trovador moderno da inquietação que já ocupa um lugar ímpar na estética da junção da palavra à música. Por essa razão, encanta e incomoda. Sua retina está fixada no chão, no solo. Ao que parece, escolheu semelhante território com tamanha ênfase até o ponto que o chão e os seres e coisas que o compõem assumem a mesma dimensão de um cosmo.

Os degradês na sua voz, são tão cheios de ternura e potência que se tornam irremediavelmente subversivos. Uma voz única, bem modulada e límpida, cujo timbre parece quebrar-se na emoção, embora seja contido e forte – STACCATO. É deslumbrante quando entoa “Trêmula Carne”! É um momento único, absolutamente orgânico de cristalina imponderabilidade, um medular sentido rítmico e uma intencionalidade expressiva da articulação, habilmente conjugada com a tessitura estabelecida nos diferentes trechos.

O que me parece é que durante todo o espetáculo o nosso artista está sempre a nos dizer: Amo expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito.

Quem é capaz de entender?

Em Almério, as palavras são tocadas por um sopro de instabilidade que as faz “cantar”. Não um sentido, mas uma DESEMPENAÇÃO para que elas se pronunciem numa voz inaugural. Um artista que tem no Agreste de Pernambuco a energia vital de sua criação. Sem ser propriamente telúrico e muito menos regional. Sua agramaticalidade e suas subversões linguísticas e musicais são de uma desconcertante beleza. Almério existe!!!

Ah! Vida de artista!... A primeira batalha é essa de recuperar a capacidade de visão. Visão que se instala no sentir. Ver – diz o poeta – e já é muito. Mais do que normalmente se pratica.

Almério desce até o fundo de si como um mergulho nas águas do mar, por entre os rituais de encontro e celebração entre as pessoas. Ele até pode não entrar na roda. Até pode não dançar. Mas os olhos focam a atenção nesse movimento que expressa o movimento interior e a pulsação do ser. Ele abandona o mundo em cada sorriso para os músicos, reclinando-se para eles com o olhar, para eles se deixarem conhecer. A arte é assim entendida como a forma de estar sensível e vulnerável ao exercício de viver, voltando assim ao elogio e à defesa da preservação da insegurança como força do viver e do criar...

A origem desse espetáculo, cuja direção cênica é creditada a André Brasileiro, a luz de Jathyles Miranda de Souza e uma banda sob a batuta de Juliano Holanda, alimenta a fantasia do artista, tornando-a em algo bem real, vivido e sentido. É nesse olhar atento aos outros, nessa escuta empenhada e generosa que se desenha o mundo de Almério. Um mundo que não é invenção, mas antes revelação.

Neste espetáculo, Almério dá sinais de que é único. E a experiência Almeriana, irrepetível. O que lhe é único e original, é a forma como combina múltiplas influências (mesmo que inconscientemente) como se apropria de múltiplos sinais de partilha e sintonia com um certo espírito do tempo e os combina de um modo que eles passam a ser dele, de forma que se diferencia totalmente de todos os outros, e com um tal impacto de clareza da sua identidade.

É o profundo desejo de conhecer, filtrado por uma genuína necessidade de exteriorizar e tornar visível algo que lhe era natural e que existia, mesmo de forma indizível, dentro de si.


“ ... no sé si eras un angel
 um rubí
O simplemente te
vi...”

- Fito Paez

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