Levei uma cópia da fita para Elis e ela também ficou besta com o que ouviu. Ouvimos dezenas de vezes, em êxtase. Para ela, uma cantora, mais do que tudo a impressionavam o timbre, o ritmo, o fraseado, a precisão, os vastos recursos daquela voz grave e imensa. Há muito tempo ela não ouvia nada parecido, nem tão bom. E repetia entusiasmadamente, bem ao seu estilo: “Puta que pariu! Que cantor!” Marquei um encontro com Tim na Philips e além de ficar completamente seduzido por sua simpatia e seu humor esfuziante, fiquei feliz em saber que ele tinha outras músicas, boas, ótimas. Disse para ele aparecer na gravação de Elis, que ela queria conhece-lo e ouvir suas músicas. Ele adorou. E apareceu.
“No estúdio, assim que Tim tocou “These Are The Songs”, Elis e eu dissemos em uníssono: “É esta!”. A primeira parte era em inglês, um soul romântico, bem negro, bem americano. A segunda parte era uma bossa-novazinha, bem ingênua e bem brasileira. O conjunto era meio
estranho, muito estranho, mas funcionava. Elis estava fascinada com Tim e convidou-o para gravar com ela, ali e agora. Ele topou no ato. Chamamos os músicos, a música era fácil de aprender, montou-se uma base de arranjo e com Tim tocando o violão gravou-se o play-back. Tim, malandramente, fez questão de cantar primeiro a parte boa, em inglês, que lhe possibilitava frases musicais e efeitos vocais sensacionais. A Elis coube a segunda, que era um sambinha ingênuo, quadradinho, que não dava espaço para grandes vôos. Depois trocaram. Mas quando os dois cantavam juntos é que a coisa pegava fogo. Mais que um dueto, a gravação virou um duelo, com Tim e Elis usando todas as suas armas e forças para fazer mais, mais forte, mais bonito. O estúdio tremia de excitação, Elis encontrava, metaforicamente, um cantor à sua altura, do seu peso.
No final da música, os dois improvisaram animadamente por quase dois minutos e — claro — decidimos deixar tudo na edição final. Todo mundo que ouviu teve certeza de que aquele era e seria um dos grandes duetos da música brasileira. E que Tim Maia faria história. O filho de Elis e Ronaldo, João Marcelo, nasceu durante a Copa e o novo disco estourou, puxado por um sambão de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, “Vou deitar e rolar”, também conhecido como “Quaqua-ra-qua-quá”, que Elis cantava às gargalhadas. A música fazia parte de uma nova safra que Baden, saindo de um turbulento caso de amor, chamava de “trator na margarida”. As músicas tinham o espírito revanchista, vingativo, de Lupicínio Rodrigues e Herivelto Martins mas, ao contrário da tradição amarga do samba-canção, eram sambas alegres, para cima e para fora, sarcásticos e debochados. Ronaldo achava que Elis estava cantando para ele: “Não venha querer se consolar que agora não dá mais pé nem nunca mais vai dar. Qua-qua-ra-quaquá, quem riu qua-qua-ra-qua-quá, fui eu.”
Ronaldo e Elis continuavam brigando intensa e incessantemente, com ou sem motivos, sem se importarem com as pessoas ou os lugares. Uma noite na boate Flag, com ciúmes de Ronaldo, Elis correu risco de vida quando jogou um balde de gelo em cima de Maysa, que era muito maior, mais forte e tão feroz quanto. Ronaldo adorou. Elis vivia um momento de transição musical, que havia começado com o novo disco e, além de suas turbulentas relações conjugais com Ronaldo, começava a ter com ele sérias divergências artísticas — um
campo em que, ainda que por contraste, tinham conseguido se harmonizar e crescer juntos e separados. Agora Elis queria, tinha que ir para a frente, e Ronaldo ficava cada vez mais conservador. Ela tinha 24 anos, ele 41, ela queria experimentar e mudar, ele queria que ela se estabelecesse e se comportasse como uma grande estrela. A carreira internacional de Elis ia de vento em popa, mas no Brasil as coisas estavam mais difíceis para ela. E para todo mundo — menos para Wilson Simonal e Roberto Carlos.
Roberto reina absoluto, seu filme O diamante cor-de-rosa é um grande sucesso, em parceria com Erasmo ele emplaca um hit atrás do outro, o Brasil canta “As curvas da estrada de Santos”, a romântica “Eu disse adeus” e até a paródica e nostálgica “Oh meu imenso amor”. Mas sua melhor criação, de maior impacto, é “Sua estupidez”, também gravada por Gal Costa, que sintetiza a agressividade e os desencontros do momento: “Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo...” Outro sucesso de Roberto — o sensacional funk “Não vou ficar” —
é saudado até por seus críticos como uma notável evolução musical. Com metais agressivos pontuando a música e vocais de resposta, à maneira da Motown, Roberto canta agressivamente, grita com grande ritmo e precisão, dá um passo adiante e consagra um novo e poderoso compositor: Tim Maia. “Há muito tempo eu vivi calado mas agora resolvi falar chegou a hora, tem que ser agora e com você não posso mais ficar, não vou ficar,não!...”
Simonal faz turnês vitoriosas por toda a América Latina e Europa e viaja triunfalmente por todo o Brasil. Vende discos como nunca e seus shows esgotam lotações de ginásios, estádios e feiras de moda e de gado. Parte para o México junto com a Seleção Brasileira de Pelé, Tostão, Rivelino e Jairzinho, para fazer shows nos melhores night clubs da Cidade do México e de Guadalajara, apoiando a Seleção e divulgando a música brasileira, patrocinado pela Shell. No México, Simonal era tão popular quanto a Seleção. Seus sucessos, alguns já em espanhol, tocavam no rádio o dia inteiro. Enquanto o time de Pelé brilhava nos gramados, Simonal iluminava as noites de Guadalajara, com seus shows superlotados no imenso e luxuoso Camino Real. E nas ruas dava mais autógrafos que Pelé. Fez um show especial para os jogadores na concentração, visitava frequentemente os craques reclusos para diverti-los e animá-los. Simonal era uma espécie de “Mug” vivo da Seleção. O “Mug”, o boneco, também era um sucesso no México, no meio da torcida via-se gente fantasiada de “Mug”. Com o Brasil tricampeão, explode de alegria o oprimido coração nacional, Simonal volta consagrado, oficializado como “pé-quente”. Um dos sucessos do ano é a sua gravação de um samba de Milton Nascimento e Fernando Brant para o filme Tostão, a fera de ouro.
“Brasil está vazio na tarde de domingo, né? olha o sambão, aqui é o país do futebol, pois é.” O Festival Universitário do Rio revela uma nova safra de compositores talentosos, entre eles Ivan Lins, Luiz Gonzaga Júnior e Aldyr Blanc. Gonzaguinha vence com “O trem” sob vaias. No Festival Internacional da Canção já decadente, eles competem na primeira divisão, desfalcada de seus principais nomes. Gonzaguinha fica em quarto com “Um abraço terno em você, viu mãe?” e Ivan em segundo com “O amor é o meu país”. O grande vencedor é Tony Tornado, um negão de dois metros de altura, que levantou o Maracanãzinho cantando “BR-3”, uma vigorosa balada soul de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. Tony era forte e bonito, dançava como um james-brown, cantava com voz rouca e fraseado soul como um negro americano; com as neguinhas afinadíssimas do Trio Esperança nos backing vocals e os metais de resposta à Motown, “BR-3” foi um sucesso absoluto.
Jurado do festival, não votei em “BR-3” para primeiro lugar, preferi “Eu também quero mocotó”, um gospel-do-crioulo-doido de Jorge Ben, um deboche festivo dentro da suposta seriedade do festival, com Erlon Chaves — que não era cantor — cantando acompanhado de farta percussão de samba e um coro gospel de quarenta negros, com suas batas vermelhas, que evoluíam pelo palco, respondendo às frases absurdas e de duplo-sentido de Erlon: “Sabe por que eu sou forte e sou macho? É porque eu como mocotó. Tá muito bom É isso aí Quero mocotó (quero mocotó) Quero mocotó (quero mocotó) Eu quero, eu quero (quero mocotó) Quero mocotó (quero mocotó) Eu cheguei e tô chegado Tô com fome, sou pobre-coitado, Me
ajude por favor, bote mocotó do meu lado.”
E o coro respondia: “Eu quero mocotó, eu quero mocotó, eu quero mocotó.” A música não era grande coisa, era mais uma brincadeira alegre e debochada, Erlon não era um cantor mas um maestro e arranjador de muito talento, um negro paulista cheio de malandragens e pilantragens, muito próximo do estilo de Simonal, de quem era amicíssimo. Mas toda a produção, com o coro gospel e a percussão de samba, era divertidíssima, um show que levantou e alegrou o público. Os amigos Rita Lee e Luiz Carlos Maciel, que se tornara o papa da contracultura com sua página “Underground” no Pasquim, também eram jurados. E também queriam mocotó. Formamos uma “frente mocotista”, mas não deu: os outros jurados, críticos e musicólogos mais conservadores, ainda acreditavam em procurar um equilíbrio entre a “boa música”, a “boa letra” e a receptividade popular, embora a essas alturas ninguém soubesse mais o que fosse “boa música”. A música nova que estava surgindo exigia novos critérios. O festival há muito tempo não era mais uma competição de excelência musical, era uma vitrine de ideias, uma janela de liberdade dentro do clima opressivo, uma oportunidade para os novos talentos e novas linguagens. E sobretudo não era para ser levado a sério. A música popular era muito mais do que apenas música e letra. Era um dos raros espaços que restaram para expressar, ainda que metaforicamente, alguma insatisfação com o regime e um mínimo de esperança em mudanças. Cantar nunca foi tão necessário nem tão perigoso no Brasil.
Mas Erlon exagerou. Entusiasmado com sua apresentação triunfal na eliminatória, na noite da grande final, sem que a produção do festival soubesse, resolveu apimentar o seu número. No meio da música, com o povo delirando e acompanhando com palmas, aos gritos, entram
de surpresa no palco duas louras com biquínis mínimos e botas de salto alto e fazem uma coreografia erótica de alta vulgaridade com Erlon, se esfregam nele, se ajoelham entre suas pernas, rebolam para ele. O público se choca, pasma, pára de aplaudir, silencia, ensaia uma vaia. Erlon sai do palco assustado e derrotado e é levado a uma delegacia policial, processado por atentado ao pudor.
Uns o consideravam uma vítima do racismo e do ressentimento; outros achavam que ele merecia pagar por sua cafajestice e seu mau gosto. Mas todos o invejavam: sua namorada era uma belíssima ex-Miss Brasil, uma loura do barulho: Vera Fischer. Logo depois da campanha vitoriosa no México, Simonal fez uma visita-surpresa aos escritórios da Simonal Produções, em Copacabana, onde 13 pessoas, entre produtores, assistentes, secretárias, boys e contadores, trabalhavam para ele. Para ele e seus sócios, seus muitos sócios em vários negócios, envolvendo diversos e às vezes conflitantes interesses de agências, patrocinadores e empresários. Simonal ganhava muito dinheiro, e muita gente ganhava muito dinheiro com ele. Mas quando Simonal sentou com o contador para ver o resultado de tanto sucesso e tanto dinheiro, ficou sabendo que as despesas e comissões eram enormes, que as multas e impostos eram altíssimos, que pesados investimentos tinham sido feitos e que não havia mais dinheiro algum. Ficou louco.
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