"Rei do Rádio", o cantor cujo centenário se completa nesta sexta-feira segue vivo na memória dos fãs e em projetos de outros músicos
Por Cristiano Bastos
O intérprete de "A Volta do Boêmio" em foto de 1988Dulce Helfer / Agencia RBS
Jornalista, autor de “Júpiter Maçã: a Efervescente Vida & Obra” e de uma biografia ainda inédita de Nelson Gonçalves, que tem previsão de publicação para este ano de 2019
Em confessional entrevista para os jornalistas Juarez Fonseca e Jussara Silva na edição da Revista ZH de 27 de março de 1977, o cantor Nelson Gonçalves afirmava: “Minha vida daria um romance”. Nascido em 21 de junho de 1919, em Santana do Livramento, a vida de Antônio Gonçalves (seu nome de batismo) na verdade rendeu um denso romance – farto em aventuras, desventuras, tragédias e, sobretudo, incontáveis sucessos. Seu impávido coração foi parado por um fulminante ataque cardíaco, em 18 de abril de 1998.
A permanência dos Gonçalves na fronteiriça Livramento durou poucos anos. Logo os pais, andarilhos, imigrantes portugueses de Vizeu, conseguiram juntar dinheiro para comprar um imóvel no bairro paulista do Brás. Foi lá que Nelson, ainda criança, soltou as primeiras notas de seu famoso ré-gravíssimo e ganhou o apelido, que muito lhe irritava, de “Carusinho do Brás”. Muitos outros apelidos viriam. Entre os mais famosos, “Metralha” (por causa da fala rápida e entrecortada) e “Rei do Rádio”, que, na realidade, aludia a sua consagração como maior cantor do Brasil, um título que amealhou inúmeras vezes nos anos 1950.
A discografia do Metralha assombra. De acordo com os cálculos do próprio cantor, da gravação de estreia – a valsaSe Eu Pudesse um Dia (outubro de 1941) – ao derradeiro CD Ainda É Cedo (uma compilação de versões de música pop dos anos 1980) são mais de 2 mil registros fonográficos. No Brasil, em vendagem, Nelson, até hoje, só fica atrás de Roberto Carlos. Um cancioneiro sulcado em 183 discos de 78 rotações, cem compactos, 200 fitas K-7 e 127 long-plays. Só o registro de A Volta do Boêmio vendeu 2 milhões de cópias.
Nelson gravou de tudo: sambas-canções, marchinhas de Carnaval, foxes, tangos, boleros, valsas, serestas, jazz, bossa nova, pop. Interpretou Wilson Batista, Herivelto Martins, Mario Lago, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Silvio Caldas, Cartola, Cole Porter e uma infinidade de outros compositores. Só com Adelino Moreira foram mais de 300 gravações.
Ele cativou muitos corações, porém, jamais foi santo. Antes de revelar-se cantor de sucesso, o Metralha andou perigosamente no meio da malandragem na Lapa. Por lá, fez lenda e história. Uma das contendas aconteceu por causa de uma tola desavença que acabou comprando com o temido bandido Miguelzinho Camisa Preta, no qual teria batido. Boxeur na juventude, Nelson acertou-lhe um jab de direita que levou o malandro carioca a nocaute. Arrependido da fria em que se metera, Nelson acabou acudido pelo lendário Madame Satã, que o levou a Miguelzinho, o qual o teria perdoado por ter sido “justo” na briga.
O episódio deu reputação a Nelson no submundo carioca. Sem ter ainda como sobreviver no Rio, ele foi, em suas palavras, ser “cafetão na zona”. Contou: “Na Lapa eu era leão de camisa de seda, lenço no pescoço, navalha no bolso e chinelo ‘charlão’. Elas (as prostitutas) pagavam 15 mil réis de pedágio por semana. Era com esse dinheiro que eu virava o mês”.
Mas seriam muitos anos depois, 1966, que Nelson atravessaria o período mais infernal de sua vida, enfrentando um pesado vício em cocaína. E, ainda por cima, tendo sua vida pessoal escrutinada – como nunca se vira antes – pela imprensa brasileira. Em 5 de maio de 1966, Nelson foi preso sob a acusação de tráfico e, assim, entrava para a história do show business nacional como o primeiro grande artista a ir para atrás das grades em razão de seu vício. O desenrolar foi dramático: “É mais fácil sustentar 10 crianças a um vício”, comparou. Em uma de suas declarações chegou a afirmar: “Cheirei mais de 50 quilos”. Dois meses depois, Nelson, que ficara preso na Casa de Detenção de São Paulo, foi absolvido. Sua recuperação, por sua vez, seria tão espetacular quanto sua queda.
Nelson Gonçalves achava o Brasil um país sem memória. Temia ser esquecido depois que morresse. Seu cancioneiro, porém, sempre estará no imaginário popular. E grandes artistas continuam reverenciando-o. Um exemplo é João de Almeida Neto, que gravou um disco inteiro cantando as músicas do Metralha e ainda montou um lindo espetáculo com suas canções. Mas o regalo mais marcante desse centenário de Nelson Gonçalves, sem dúvida, são os 35 álbuns do cantor – remasterizados a partir dos tapes originais – que a gravadora Sony Music (possuidora dos fonogramas da velha RCA) disponibilizou nas plataformas de streaming. Nelson continua o Último dos Moicanos, mas agora reabilitado para o futuro.
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