sábado, 30 de novembro de 2019

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior 


Caymmi visita Tom (1964)




Existem coisas na vida que devem ser aproveitadas ao máximo, são prazeres, digamos, inenarráveis, que apesar de simples enchem de alegria nossa existência. Para muitas pessoas os momentos bons da vida devem ser vividos intensamente para serem eternamente lembrados. Porém, apesar de muitos considerarem fama, dinheiro, sucesso profissional, valores que adoçam a existência, são nos pequenos prazeres que encontramos a verdadeira felicidade, ou chegamos perto dela. Isso porque o que vale mesmo são aqueles instantes compartilhados com harmonia, paz de espírito, livres de superficialidades, espontâneos, pois, dessa forma eles acontecem mais serenamente e fluem com mais freqüência e intensidade. 

Se formos fazer um balanço de como anda a vida das pessoas no mundo atual verificaremos sem maiores dificuldades que vivemos em um planeta estressado, correndo sempre atrás de resultados que nos supram a sobrevivência e depois de algumas conquistas, gastamos todas as economias em coisas supérfluas, dominado que somos pelo mercado de consumo a fim de extravasarmos as nossas vaidades. É uma vida superficial que invariavelmente nos leva a uma perspectiva enganosa do que sejam os verdadeiros prazeres da existência, daí a constatação de que as frivolidades do mundo moderno nos consomem tão vorazmente que nem sequer não nos damos conta de as quantas andam nossa relação com o universo que nos cerca acarretando problemas existências presentes e futuros. 

Nessa conjetura devemos então ficar atentos para não nos deixarmos envolver com situações desnecessárias, aumentando a sua importância e somatizando seus resultados, deixemos, portanto, nos levar pelo nosso livre arbítrio com responsabilidade e vigilância necessária para que os acontecimentos importantes que vivenciarmos surjam de forma espontânea, pois serão mais verdadeiros e deixarão um legado de saudade e frescor muito agradáveis quando relembrados, pois serão muito especiais, assim, construiremos nossas biografias com mais segurança, tranqüilidade e certeza de que não nos deixamos seduzir pelas futilidades e valores pífios que a vida nos oferece, e teremos então sido plenamente felizes e realizados. 

Foi justamente pensando nos momentos de encantamento que podemos proporcionar a nos mesmos e aos nossos amigos e familiares que se deu uma reunião de músicos da mais alta linha da canção brasileira, resultando na perpetuação de um trabalho magnífico, atemporal, permanente. O ano era 1963 e o produtor Aloysio de Oliveira dono da gravadora Elenco resolveu unir a família Caymmi ao talentoso compositor bossanovista Tom Jobim para uma gravação onde predominaria a intimidade e a espontaneidade de um encontro de grandes músicos num clima de festa em família, mas, sem as artificialidades de uma típica gravação de estúdio. 

A idéia era justamente que na informalidade dos convidados surgissem momentos únicos, aqueles que só aconteceriam se fossem realizados sem nenhuma preparação prévia, naturalmente. Para esse encontro musical foram também chamados o baixista, Sergio Barroso e os bateristas Do Um Romão e Edson Machado, com o objetivo de fazerem o acompanhamento e darem também sua canja na reunião. As gravações ocorreram em um clima ameno e esse encontro musical definiu as vidas de alguns de seus personagens. Estavam presentes além de Tom Jobim e Dorival Caymmi os filhos e a esposa do compositor baiano, Nana, Dori, Danilo e Stela. Como em toda reunião de amigos fraternos houve trocas de gentilezas e Caymmi ofereceu a Tom Jobim a inédita canção...Das rosas e Tom devolveu com a também inédita, Só tinha de ser com você em parceria com Aloysio de Oliveira, duas musicas que brevemente se tornariam clássicas. Nana Caymmi que vinha de um casamento desgastado e morando na Venezuela, estava passando uma temporada no Brasil e ainda tinha dúvidas quanto as suas pretensões em ser cantora profissional, depois, portanto, de ter cantado nesse disco Inútil paisagem, de Tom e Aloysio de Oliveira, acompanhada do pai e num belíssimo vôo solo, Sem você, de Tom e Vinicius e Tristeza de nós dois, de Durval Ferreira, Bebeto e Maurício Einhorn, definiu de vez sua vocação resolvendo seguir carreira como intérprete. Dori Caymmi também sentiu-se estimulado e a partir de então profissionalizou-se como violonista, arranjador e depois cantor, um artista completo. 

De todos o mais jovem era Danilo Caymmi, que aos 16 anos estudante de flauta, não fez feio ao lado de músicos consagrados e tornou-se num dos mais talentosos instrumentistas e compositores de sua geração, chegando inclusive a participar da Nova Banda grupo musical que acompanhou Tom Jobim em seus últimos anos. 

O repertório do disco que foi lançado no suplemento de 1964 da gravadora inclui ainda Saudades da Bahia, samba clássico de Dorival Caymmi, interpretado num magistral dueto por Jobim e Caymmi, Vai de vez, de Roberto Menescal e Lula Freire e Berimbau, de Vinicius e Baden Powell, apresentadas de maneira instrumental pelos filhos de Caymmi acompanhados dos músicos convidados, por fim, Canção da noiva, de Dorival Caymmi, interpretada divinamente por sua esposa Stela, cantora de belos recursos vocais, mas que abandou precocemente a carreira por causa do casamento. 

Com uma capa idealizada como um recorte de jornal bem ao estilo moderno da produção gráfica da gravadora Elenco, este disco reafirma o conceito de que para serem grandes, os bons momentos da vida devem ser construídos espontaneamente, repletos de paz e felicidade entre seus participantes e protagonistas, deixando para a história a tarefa de perpetuá-los e transformá-los em saudade, a audição do desse LP, portanto, nos remete a isso, consagrando-o definitivamente como fundamental para a musica popular brasileira.


Músicas: 
01) ...Das rosas (Dorival Caymmi) 
02) Só tinha de ser com você (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira)
03) Inútil paisagem (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira) 
04) Vai de vez (Roberto Menescal/Lula Freire)
05) Saudades da Bahia (Dorival Caymmi)
06) Tristeza de nós dois (Durval Ferreira/Bebeto/Maurício Einhorn)
07) Sem você (Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
08) Canção da noiva (Dorival Caymmi)

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