sábado, 23 de novembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


ARAÇÁ AZUL

As gravações para São Bernardo foram feitas no Rio, em dois ou três dias. Voltei para Salvador com a ânsia de entrar num estúdio e começar a trabalhar em método semelhante. Cria que num estúdio de gravação de discos, com muito mais recursos, eu geraria prodígios. Araçã azul foi gravado em São Paulo, em apenas uma semana, sem que nem uma composição estivesse pronta (ou mesmo esboçada) antes de se iniciarem as sessões. Hospedei-me num hotel colado ao estúdio Eldorado - o único do Brasil que, então, tinha oito canais - e comecei a improvisar peças muito livremente concebidas. André Midani, o presidente da Poly Gram Brasil, sempre inacreditavelmente inteligente (e chique) para um homem na sua função, concordara em deixar-me sozinho com o técnico e seu assistente, sem nem sequer receber visitas de quem quer que fosse da gravadora. A primeira faixa que gravamos - e que abre o disco - é uma peça vocal sem letra e sem melodia. Nascida da experiência com São Bernardo, ela consiste em gemidos e grunhidos superpostos, sons de vozes brasileiras em conversa (o título "De conversa" vem do fato de João Gilberto - sempre ele! - ter, pouco antes, gravado o samba de Lúcio Alves "De conversa em conversa"), em que se mantêm os sotaques mas se abstraem as palavras. A isso se somava percussão tocada por mim mesmo sobre meu corpo. O que surge como revelação melódica e semântica no final da peça é a canção "Cravo e canela" de Milton Nascimento, numa saudação a esse grande colega
que realizara um trabalho tão notável e tão diferente do nosso (mesmo oposto ao nosso, sob certos aspectos) e a quem não festejáramos de público na nossa volta com a ênfase que ele parece ter esperado (e não o fizemos por senso das diferenças e horror à demagogia), sendo que a frase final, "eu quero ver você alegre", dita a princípio por uma voz que logo se une a outras num acorde simples, também se dirige a Milton, aqui tanto no plano pessoal quanto no artístico, numa espécie de oração para que ele superasse aquela tristeza imensa que o prostrava - oração que, hoje vejo com orgulho, mostrou-se eficaz. (Não se veja nisto uma fantasia de onipotência: o que quis dizer com a frase final de "De conversa" é que havia no culto ao estilo de Milton, na própria admiração pelo seu trabalho, uma valorização mórbida dessa tristeza, e que existia em mim - mas é claro que não só em mim: em muitos, mas, antes de todos, no próprio Milton - o desejo de salvaguardar sua capacidade de vida e alegria, sem o que não haveria suas canções, mesmo as de beleza mais triste.)
As outras faixas de Araçá Azul seguiam nesse grau de inconvencionalidade. Até mesmo o bolero "Tu me acostumbraste" ganhava uma interpretação em duas oitavas, com a segunda rodada cantada em falsete, como Ray Charles em "People", só que com uma precária distorção eletrônica adicionada - e naturalmente sem a voz e a musicalidade do "Gênio". Chamei Perinho Albuquerque, o irmão mais novo de Moacir, um garoto de grande capacidade musical, um autodidata caprichoso, para fazer alguns arranjos.
Depois de quase tudo gravado, ele foi para São Paulo e escreveu as partes orquestrais de uma peça longa chamada Sugar cane fields forever. Essa peça consistia numa série de sambas-de-roda do recôncavo alinhavada por intervenções minhas e da orquestra. Embora escritas com a ingenuidade de um autodidata talentosíssimo mas ainda pouco culto, as partes orquestrais pretendiam soar como música "moderna". O resultado lembrava a trilha sonora de um curta-metragem amador pretensamente artístico.
Além de tudo isso, mandei estampar na parte interior da capa dupla a frase "um disco para entendidos", jogando com a dubiedade do termo entendido, que também designava o que hoje se chama de "gay ". A reação do público foi veemente: o disco bateu recordes de devolução. Transa tinha tido boa acolhida (sobretudo por causa da regravação do velho samba de Monsueto Menezes "Mora na filosofia") e o fato de eu estar de volta ao Brasil ainda era notícia. Além disso, eu fizera um show ao lado de Chico Buarque no Teatro Castro Alves, em Salvador, com imenso sucesso, e esse show (uma comoção resultante do esforço amadorístico de um conhecido comum a nós dois, ampliada pela suposta rivalidade) foi transformado num disco ao vivo que vendeu muito. Tudo isso levava as pessoas a procurarem meu disco novo nas lojas. Ao chegar em casa, a maioria nem sequer aguentava ouvir a primeira faixa até o fim: voltava correndo ao vendedor para tentar devolver o disco. Eu me orgulhava desse tipo de fracasso. Mas o fato é que não estava satisfeito com o disco em si. Tanto Augusto de Campos quanto Rogério Duprat (que atendeu docemente meu convite para orquestrar uma faixa - o que fez com o grande brilho habitual) se mostraram entusiasmados com o que ouviram. Nunca tive - nem antes nem depois - de nenhum desses dois artistas elogios tão apaixonados. E dei (dou) uma imensa importância a isso. O que fez com que eu me recolhesse em relação ao Araçá azul foi a constatação de que, apesar de minha entrega, eu não conseguira nada comparável, por um lado, ao disco novo de Jorge Ben (chamado Ben e um dos momentos altos da música popular no Brasil).
Marcus Vinícius, o técnico do Eldorado que fez o disco comigo, era um bom profissional e uma excelente pessoa, mas minha atuação como "produtor" só serviu para confundi-lo.
O disco de Ben saiu praticamente ao mesmo tempo que o meu. Creio que o Amazonas de Naná Vasconcelos foi lançado por essa época - e me pareceu infinitamente superior, do ponto de vista sonoro, ao que eu tinha feito. Também o lp de estreia de Walter Franco me soava (e ainda soa) mais radical e muitíssimo mais bem-acabado do que o Araçá azul. Finalmente, houve a reação muito realista de Zé Agrippino, que voltava com Maria Esther da África, onde tinham vivido por mais de um ano depois de uma passagem pela Europa e pelos Estados Unidos: ele se mostrou frio ao ouvir o disco e observou justamente os defeitos que mais me incomodavam, a falta de profundidade e o emplastramento do som. É que, por outro lado, ele desprezava o cerebralismo fácil da decisão de soar experimental. Para ele, o Araçã azul era um disco subdesenvolvido técnica e artisticamente que, no entanto, poderia angariar estima justamente por tampouco ater-se à graça simples das canções - e por ser, por isso mesmo, rejeitado pelo público comum. A princípio Agrippino apenas disse: "Gosto das canções", destacando "Júlia/Moreno", que eu fizera para o futuro neném cujo sexo desconhecíamos (Dedé estava grávida quando gravei o disco e ainda não existia - pelo menos na Bahia - o exame de ultra-som), e exibindo indiferença pelas faixas mais vanguardistas. Finalmente opinou com lucidez técnica sobre estas últimas, completando com uma observação geral sobre a situação da música pop e do cinema no Brasil que encontrava em seu retorno, sem deixar de mencionar Jorge Ben e Naná. Sua pontaria certeira, indo direto aos mesmíssimos pontos que já me haviam ocorrido, fortaleceu minha atitude algo pessimista em face do Araçá azul. Não que a reação otimista de Augusto e Duprat tivesse menos peso para mim. Apenas a de Agrippino era mais útil. Afinal, eu tinha feito o Araçá azul como um movimento brusco de auto libertação dentro da profissão: precisava me desembaraçar no estúdio, testar meus limites e forçar meus horizontes.
Necessariamente sairia modificado dali - e necessariamente faria coisas diferentes em seguida. Não podia simplesmente pensar em perpetuar uma atitude experimentalista nascida do que me parecia ser um abuso de oportunidades: então eu regressava glorificado do exílio e, cheio de regalias, criava uma reputação de artista refinado, com um produto tecnicamente abaixo do nível atingido no mercado do próprio país subdesenvolvido a que voltava? Augusto e Duprat certamente viam as coisas de outro lugar. Para eles as questões sociais e as sutis diferenças entre os produtos de diversão popular não contavam muito quando estava em jogo a criação livre de formas artísticas relevantes. A crítica especializada tendeu mais para a posição deles do que para a de Agrippino. Para mim era a descoberta de que chegara a uma posição de menino mimado e de que devia ter a coragem de sair dela. Minhas tarefas agora seriam readquirir humildade dentro do estúdio, atentar para aspectos específicos da feitura de música popular, contribuir para as conquistas técnicas e mercadológicas da minha classe. Raramente consegui algo de tudo isso nos anos subseqüentes, mas o pouco que atingi me é valiosíssimo. Naturalmente eu queria cumprir essas tarefas sem deixar de lado as motivações que me tinham levado ao tropicalismo e ao experimentalismo desabrido do Araçá azul. A rigor, eram essas mesmas motivações que me levavam a não deitar na sopa do Araçá. Alguns anos depois, comentando com Augusto a desaprovação desse disco por parte dos músicos eruditos da Universidade da Bahia, ouvi dele a declaração de que meu disco era "música lírica" de grande beleza. Sempre vi na firmeza da aprovação ao Araçá azul por parte de Augusto a decisão de marcar uma posição diametralmente oposta àquelas que - por mais que venham envoltas em elucubrações complicadas - desembocam sempre no convencionalismo comercial. Vi isso com clareza, pois afinal o Araçá azul era, de certa forma, a realização tardia do projeto de disco que estava em embrião quando fui preso - e que teria sido um disco muito mais próximo dos concretistas. Muitas vezes penso em quanto o primeiro disco de Walter Franco (assim como o trabalho de Arnaldo Antunes nos anos 90) se parece com o que eu tinha em mente então. De volta ao lar em 72, eu tentava retomar o arrojo inventivo de 68. Mas fatalmente acabaria chegando a algo muito diferente. Basta lembrar que o disco que não fiz em 68-9 tinha sido imaginado como uma intervenção radical que possibilitaria minha iminente saída do mundo da música pop. É importante saber que, na altura do Araçáa azul, minha decisão (mesmo que fantasiosa) de abandonar a profissão tinha sido desconstruída pela prisão e pelo exílio. Assim, o Araçá azul surge como o disco experimental que na realidade me foi possível fazer. E isso era uma versão irreconhecível do disco concretista-paulista que eu não fizera. Não totalmente irreconhecível, porém, uma vez que Augusto sentiu com ele maior identificação do que com qualquer outro disco que eu tenha feito antes ou – principalmente – depois. De todo modo, há uma faixa do Araçá azul que se inspirou num comentário de Augusto sobre o nome - Amaralina - do bairro em que eu morava na Bahia.
Explorando as possibilidades formais da palavra, ele revelou o "anil" espelhado nas sílabas finais, fazendo-as circular em "anilina". A partir disso, inventei uma palavra longa que era legível nos dois sentidos (palindrômica) e que, para surpresa do próprio Augusto, se fazia igualmente reversível na gravação: amaranilanilinalinarama (amar anil anilina li na rama). Eu a pronunciei de modo que ela soasse como um trecho de oração hindu. E justapus à gravação normal uma sua cópia com a fita rodando ao contrário que soava quase indistinguível da outra, num espelhamento perfeito. É uma das coisas de que mais gosto no disco. Hoje penso que Augusto de Campos (como Rogério Duprat) destaca o Araçá azul entre os meus discos porque defende, por princípio, as atitudes de vanguarda, mas que ele o destaca acima dos demais trabalhos pioneiros feitos na mesma época na minha área justamente porque percebe nesse meu disco um impulso que, afinal, é o mesmo que me levou para longe dele. Se digo que a opinião de Agrippino me foi mais útil no momento de saída do Araçá azul, repito que ela não era superior, aos meus olhos, à de Augusto e Duprat. Afinal, numa mirada mais abrangente, vê-se logo que minha identificação com as posições e com a sensibilidade de Augusto, quanto a essas questões, é mais resistente do que a que eu pudesse ter com Agrippino. Basta dizer que, tal como Augusto, eu me aproximara do rock e do pop depois - e por causa - de uma inicial adesão a João Gilberto que Agrippino desconhecera. Embora o concretismo tivesse sido chamado de "o rock'n'roll da poesia" pela imprensa nos anos 50, Augusto e seus companheiros "formalistas" (um grupo de mesma faixa etária dos antiformalistas beat americanos) logo elegeram a bossa nova, enquanto - na esteira de Mautner, que, identificado com os beats, hostilizara a limpeza cool da bossa nova em seu primeiro livro, louvando o rock e os sambas-canções derramados - Agrippino nunca fora um bossanovista. A máscara antibossanovista que nós, os tropicalistas, usamos incluía uma aproximação com Agrippino, Mautner, o rock e o bolerão, mas, como os concretistas, eu tinha sido - e seria sempre - antes de tudo um amante da arte de João Gilberto e de João Cabral de Melo Neto. 
Nós matamos o tropicalismo várias vezes - e desde o início. Várias vezes falamos em "movimento para acabar com todos os movimentos". O especial de tv concebido por Zé Celso e que nunca foi ao ar era uma espécie de suicídio cultural do tropicalismo. E finalmente no Divino, Maravilhoso encenamos um enterro do tropicalismo. Nossa prisão e nosso exílio representaram um corte real na continuidade do nosso trabalho. Mas a aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca. Não me causa demasiada estranheza, no entanto, quando ouço dizer que o Araçá azul marcou o final de uma etapa.




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