terça-feira, 19 de novembro de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*


Manhãs de Setembro

"De tão azul, o céu parecerá pintado. (...) Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul. Respirei fundo. (...) Setembro estava chegando, enfim". Penso nestes trechos da crônica "Quando setembro vier", de Caio Fernando Abreu, enquanto ouço Vanusa cantar "Manhãs de setembro, de Vanusa e Mário Campanha.
As duas peças - a crônica e a canção - falam das pequenas epifanias que o mês de setembro oferece: a primavera e sua profusão de cores e possibilidades de belezas. Aliás, setembro deixa de ser um período de calendário e passa a ser um "estado de espírito": cheio de promessas de felicidade.
Setembro despoleta as metamorfoses necessárias à realização das personagens, que, de fato, são as responsáveis por engendrar vigor às próprias vidas. Apresentados na primeira pessoa, por alguém que narra lembranças, com um pé no futuro, os textos registram afirmativas: posturas assumidas diante dos apelos da existência.
As novidades e as mudanças, como a vida, começam com a respiração (chave mestre: o sopro primordial do verbo): processo pelo qual o indivíduo roça o mundo ao redor e é por ele sustentado.
Guardada no disco Vanusa, de 1973, a canção "Manhãs de setembro" celebra uma alegria que vem não se sabe de onde, mas, com certeza, de algum lugar de dentro do sujeito. Talvez a alegria (figurativizada no empenho vocal potente com que a cantora interpreta a canção) venha da afirmação "fui eu". Afinal, a capacidade de equacionar atitudes (dores e sorrisos) já é um passo para a iluminação interior, dizem os almanaques e os filósofos.
O sujeito vê e mira para além do horizonte: cria o cenário (colorido pela incidência do sol) para viver sua vida (real). O sujeito pinta (e canta a pintura) seu céu, carrega nos tons de azul, onde, estrela, ele pode brilhar; se torna sujeito e objeto de si.
A letra é um libelo de esperança que toca os corações, especialmente, femininos, pelo poder ativo (de dono da voz e da vida) que carrega. Vanusa, que, entre outras curiosidades, lançou sucessos como "Paralelas", de Belchior, e interpretrou uma simpática versão em português de "I will survive", de Paulo Coelho, em "Manhãs de setembro", personifica, na voz, o desejo da "nova mulher": dona da própria voz, sem medo de assumir erros e acertos, e, com olhos felinos felizes e mãos de cetim, ansiosa para cantar, falar e ensinar.


***
Manhãs de setembro
(Vanusa / Mário Campanha)

Fui eu quem se fechou no muro
E se guardou lá fora
Fui eu quem num esforço
Se guardou na indiferença
Fui eu que numa tarde
Se fez tarde de tristezas
Fui eu que consegui
Ficar e ir embora

E fui esquecida
Fui eu
Fui eu que em noite fria
Se sentia bem
E na solidão
Sem ter ninguém
Fui eu
Fui eu que em primavera
Só não viu as flores
E o sol
Nas manhãs de setembro

Eu quero sair
Eu quero falar
Eu quero ensinar
O vizinho a cantar
Nas manhãs de setembro





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

0 comentários:

LinkWithin