Chico mudou? Nem tanto. Mas o Brasil, sim. Vencedor do Prêmio Camões suscita sentimentos opostos como nunca antes em sua carreira
Por Alexandre Luchesse
Novos horizontes, menos alcance
Além de Rodrigo Constantino, outra polêmica personalidade seguida pela extrema direita ajudou a levantar questionamentos a Chico Buarque. Diferentemente das palavras de Constantino, as críticas do músico Lobão não se restringem apenas à posição política do artista.
– O Lobão já tinha uma crítica com relação ao Chico antes da polarização política. Ele já o contestava na década de 1990. Lembro do Itamar Assumpção falar sobre isso, questionar o quanto a existência dos cancionistas dos anos 1960 e 1970 em certa medida bloqueava o surgimento de novos destaques. De fato, não sei o que no Lobão é apenas ataque político ou uma questão estética, se é apenas aquela coisa de um direitista raivoso ou se é inconformidade por conta do rock não passar mesmo pelo Chico Buarque – diz Guto Leite.
Em livros, entrevista e declarações em redes sociais, Lobão realmente já lamentou muitas vezes o fato de Chico não ter se sensibilizado pela simplicidade e o apelo visceral do rock. “Se Chico Buarque tivesse ouvido Chuck Berry, não seria a merda que é”, provocou pelo Twitter em março de 2017, logo após a morte do roqueiro norte-americano. Em uma entrevista recente para um canal do YouTube, criticou o “barroquismo pernóstico, chato, burocrático e inútil” da MPB:
"Não há transcendência alguma nas músicas do Chico Buarque. São todas muito burocráticas, parecidas com sua própria mímica corporal, que é nenhuma. Ele tem zero expressão quando vai cantar".
Sem demonstrar interesse pelo rock ou qualquer gênero musical que se popularizou a partir dos anos 1980, Chico Buarque se afastou das rádios e da televisão, além de ter passado longas temporadas longe de palcos e estúdios, dedicando-se à literatura – o que acabou levando sua obra a outro patamar.
Talvez o último destaque de consumo massivo que promoveu o compositor como influência central foi a banda Los Hermanos. Por conta disso, o artista tem uma renovação de público lenta, inserindo-se cada vez mais em um perfil de consumo seleto. Em um país com poucos leitores, seus premiados romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O Irmão Alemão (2014) também não chegam a configurar uma vasta porta de entrada para potenciais aficionados.
Um fenômeno intelectualizado
Chico Buarque pode não ser mais o fenômeno popular que conquistou o Brasil nos anos 1960 e 1970. Porém, vem ganhando cada vez mais espaço em pelo menos dois meios de prestígio: a academia e a opinião pública – de dentro e fora do Brasil. O recente reconhecimento do Prêmio Camões, considerado o mais importante da literatura em língua portuguesa, é uma prova disso. Trata-se de uma láurea concedida por um júri com intelectuais de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique, que se reúne a cada ano para eleger um autor que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da comunidade lusitana ao redor do mundo. Chico foi escolhido por unanimidade neste ano.
– A ideia de premiar Chico nasceu dos colegas portugueses – conta o jornalista, escritor e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Antonio Hohlfeldt, um dos jurados brasileiros desta edição do prêmio, juntamente com o poeta Antonio Cicero.
Hohlfeldt assegura que a escolha se baseou estritamente em critérios literários. Não houve debate sobre a postura política ou ideológica do autor.
– Chico tem, em primeiro lugar, uma contribuição de poeta, sobretudo por meio dos poemas da música popular que ele escreveu e escreve até hoje. Um segundo ponto é sua contribuição de dramaturgia. E a terceira contribuição é da prosa, por meio dos romances – analisa Hohlfeldt.
O professor observa que a canção popular pode ser um meio de difusão da poesia em países com baixo letramento, como Angola e Moçambique, ou com baixo consumo de livros, como Brasil e Portugal.
– A canção chega aonde um livro de poesia não alcança. A despeito das questões musicais, você pode pegar alguns poemas do Chico, como Construção, por exemplo, e percebe que são verdadeiras obras-primas.
Crítico de teatro, Hohlfeldt também defende o que considera ser a qualidade exemplar da dramaturgia do premiado:
– Chamei atenção sobretudo para um trabalho de Chico com Naum Alves de Sousa chamado Suburbano Coração. Embora não seja uma de suas peças mais populares, é marcada uma brasilidade singular.
Guto Leite observa que Chico tem características que o aproximam mais do ambiente acadêmico do que outros cancionistas:
– A dicção dele encara o presente muitas vezes, mas também tem um vetor interessante apontando para o passado, para a tradição. Além disso, é um cara que frequenta o mundo letrado, é filho de Sergio Buarque de Holanda, que era amigo de Mario de Andrade. A forma bem acabada de suas obras também é vista com simpatia. Tudo isso faz com que não seja encarado como uma estranho para a academia. Bastava reconhecer a canção como gênero literário para que ele fosse mais estudado.
Comunicação limitada com as massas
Aos 75 anos, Francisco Buarque de Hollanda dedica-se à música e à literatura em seu apartamento no Rio de Janeiro, onde mora, ou em Paris, onde costuma passar temporadas de no máximo um mês. Há vários anos não concede entrevistas. Entre as justificativas para as negativas à imprensa estão a preocupação em não se repetir e não promover sua carreira literária por meio da sua persona pública.
A única declaração do artista com respeito ao Prêmio Camões se restringiu a uma frase:
– Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar.
Em um vídeo de 2011, gravado nos bastidores da gravação do disco Chico, o artista faz um raro comentário sobre sua experiência com o ódio na internet. Bem-humorado, ele conta como foi a primeira vez em que leu comentários sobre ele em um portal de notícias.
– Não lembro em que notícia sobre mim eu entrei e vi “comentários”. Nunca tinha entrado nisso. Aí comecei a ler. “O que esse velho está fazendo aí?”. “O que o álcool não faz com as pessoas?” – lembra Chico, às gargalhadas. – O que é uma injustiça, já que eu nem bebo mais.
E conclui:
– Você vai fazer o que, né? As pessoas têm uma raiva... Mas você não vai ficar com raiva de quem tem raiva. Então deixa pra lá.
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