quinta-feira, 14 de novembro de 2019

30 ANOS SEM RAUL SEIXAS: A ETERNA LIBERDADE DE UM MALUCO BELEZA


Por Tito Guedes


Aquilo parecia mentira, coisa inventada, chocante, na mesma medida em que era um acontecimento mais previsível que as promoções de Natal no fim do ano. Estamos falando da morte do roqueiro-mor do Brasil, Raul Seixas. Encontrado morto pela empregada em seu apartamento no centro de São Paulo há exatos 30 anos, no dia 21 de agosto de 1989, ele já era Raul Seixas, um mito da música nacional, consagrado pela loucura irreverente e pelas músicas geniais. Dois dias antes, havia chegado às lojas aquele que acabou se tornando seu último álbum: A panela do diabo, gravado em conjunto com Marcelo Nova, com quem já havia realizado uma turnê de 50 shows pelo país. 

O fato era chocante porque Raul já era um ídolo consagrado, e as pessoas costumam esquecer que ídolos consagrados também morrem. Mas era também óbvio, porque as frestas de humanidade que o ídolo deixava transparecer revelavam um homem cujo estilo de vida não poderia ser considerado “saudável”, sendo o vício das drogas o mais determinante nesse aspecto. 

No entanto, como é a sina de todos os artistas (em especial dos artistas geniais), quem entrou pra História foi o ídolo Raul Seixas, o Maluco Beleza, o homem que é até hoje chamado de “Pai do Rock” brasileiro. O que, ao lado daquela que é chamada de “mãe” da mesma criatura, Rita Lee, ajudou a conferir uma personalidade definitiva ao rock´n´roll tupiniquim, dando o passo que a Jovem Guarda não conseguiu dar.

Aliás, quem pensa na imagem do Raul Seixas que entrou para a posteridade, o guru anárquico obcecado por ocultismos e seguidor de Aleister Crowley, talvez não saiba (e nem imagine) que foi justamente na Jovem Guardaque ele teve seu berço musical e profissional. 

Apaixonado por Elvis Presley, Raul naturalmente se apaixonou pelo movimento que ajudou a traduzir (muitas vezes, literalmente), o rock americano dos anos 1950 para o Brasil. Foi assim que, em 1962, criou, ainda em Salvador, o grupo The Panthers, que depois virou Raulzito e os Panteras. A banda acabou ganhando renome na Bahia e chegou a excursionar com Jerry Adriani , sendo depois convidada por ele para gravar um LP no Rio de Janeiro, que se chamou também Raulzito e os Panteras (1967). 


Foi a ponte necessária para que, em 1970, Raulzito se tornasse o mais novo produtor da CBS (Columbia Broadcast System), habitat natural dos jovem guardistas. Lá, produziu discos do próprio Jerry Adriani e de outros roqueiros, como o “maldito” Sérgio Sampaio. Apesar de ter sido um exímio produtor, a carreira não se alongou muito porque, em 1971, ele decidiu gravar, sem autorização de ninguém da gravadora, o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernistaapresenta sessão das 10, que reuniu também Sérgio Sampaio, Míriam Batucada e Edy Star. O projeto vanguardista e anárquico se propunha a captar os desdobramentos da cultura hippie no Brasil. O disco, claro, foi completamente ignorado por público e crítica, mas serviu para transformar Raulzito em Raul Seixas, o Profeta. Aquele que, em 1972, subiu ao palco do VII Festival Internacional da Canção para cantar uma música que misturava inglês com português, rock com baião: 

Let me sing, let me sing
Let me sing my rock´n´roll
Let me sing, let me swing
Let me sing my blues and go!

Pouco depois, em 1973, lançou seu disco solo de estreia (considerado por muitos sua obra-prima), Krig-Ha, Bandolo!, que revelou clássicos definitivos de seu repertório (Mosca na sopa, Metamorfose ambulante, Al Capone, Ouro de tolo) e inaugurou a parceria com Paulo Coelho. Juntos, os dois se tornaram uma das mais icônicas (certamente a mais irreverente) duplas de compositores brasileiros. 


Ao longo da carreira relativamente curta, mas muito intensa, o compositor Raul Seixas deixou letras inquietantemente arrebatadoras. São letras irreverentes, muitas vezes irônicas ou debochadas - afinal, o humor sempre foi seu aliado. Mas em todas elas, repletas de metáforas poderosas e alegorias inteligentes, há sempre um subtexto, uma mensagem crítica que faz a gente querer escutar a música de novo, prestando atenção. Ou então, só faz a gente pensar: “o que é que ele quis dizer com isso?”.

Somado a essas letras, o músico Raul Seixas também passou longe de ser careta. Unindo seu interesse pela Jovem Guarda, o rock e seu lado baiano, brasileiro, Raul quase sempre optava por arranjos estranhos e iconoclastas. Sua grande atitude roqueira não veio por solos de guitarras sensacionais, mas por ter misturado sua música a outros gêneros, como o baião, o brega (Tu és o MDC da minha vida), o bolero (Sessão das 10) e até ritmos afro-religiosos (Mosca na sopa). Claro que na maioria das vezes essas “homenagens” tinham uma finalidade mais irônica do que verdadeiramente reverencial, mas isso só aumenta a sua faceta roqueiro-irreverente. 

O certo é que o grande mérito de Raul Seixas foi ter sido popular. Tomando a descrição de um roqueiro ligado a filosofias obscuras, letras metafóricas, com arranjos esquisitos e iconoclastas, o mais natural é que pensemos logo em um artista cult, de nicho, palatável apenas para ouvidos “privilegiados”. Raul, não. Ele conseguiu ser popular, tocar nas rádios, ter suas músicas cantadas por multidões até hoje. Talvez essa façanha (mais difícil do que parece), possa ser explicada por seu background de produtor (alguém que precisa necessariamente ter faro comercial), ou talvez só por sua genialidade mesmo. O fato é que ele soube, como ninguém, unir o cult ao pop, conseguindo ser popular sem limitações de público ou influências. 


Contudo, para além de todas as definições e categorizações que possam ser feitas em torno da obra de Raul Seixas, para além da imagem de “maluco beleza”, “excêntrico” ou “místico”, o mais apropriado talvez seja dizer que ele foi um libertário. Mais do que qualquer outra coisa, Raul Seixas cantou a liberdade. E a cantou em suas mais variadas formas: a liberdade individual (Metamorfose ambulante, Maluco beleza), a liberdade transcendental (Gita), a liberdade amorosa (A maçã, Medo da chuva) e a liberdade social, mandando às favas os preceitos burgueses em canções como Sociedade alternativa, Ouro de tolo e Novo aeon.

Hoje, passados 30 anos de sua morte, sua música permanece relevante e atual. E nós continuamos ouvindo embasbacados sua obra, tentando entender por que ele é tão fascinante e por que é tão difícil ser indiferente a ele. Mas se alguém está achando que vai encontrar uma resposta única, definitiva, científica, é melhor desistir logo e ficar com uma frase dita pelo próprio Raul que explica (sem explicar absolutamente nada) a força estranha de sua música:

“Na verdade, eu sou um ator. E sou tão bom ator, que finjo ser compositor e poeta e todo mundo acredita.”

Nada mais Raul Seixas. 

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