sábado, 16 de novembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Pelo meio dos anos 70, havia um bar gay em Santo Amaro, no largo do mercado. Não um antro clandestino, mas um modesto arremedo do que se supunha haver nas grandes cidades do mundo. Era visto pela população com humor mas sem escândalo. Durou relativamente pouco. Foi um momento em que se harmonizou nossa versão (para Paulo Prado tristemente) mestiça e permissiva de tradições mediterrâneas com as notícias sobre direitos de minorias vindas da América "branca" e anglófona. Um amigo meu americano me disse que, nos Estados Unidos, um pai de família liberal lutará pelo direito de o homossexual viver com plenitude, mas será sempre incapaz de imaginar com alguma identificação um ato homossexual; enquanto, no Brasil, até um agressor verbal de veados é capaz de admitir a realidade dessas cenas em sua imaginação. Não se pode medir a liberdade dos homossexuais no Brasil pelo número de participantes em passeatas gay. Andrew Sullivan anota, em outra passagem, que, tendo trazido a consciência da "homossexualidade" a todo ato entre macho e macho, o movimento gay fez mais pela queda da incidência das relações entre homem e homem nos Estados Unidos do que qualquer outra instituição.
Quando voltei de Londres, em 72, a sutil imitação de Carmen Miranda que eu inseria na apresentação de "O que é que a baiana tem?" valia por um duplo comentário: sobre o sentido da arte popular brasileira no exílio e sobre a originalidade da possível contribuição brasileira à causa da liberação sexual. Não abandonarei nunca o tema, embora já não tenha a inocência daqueles anos. Outro dia, vendo uma moça reproduzindo em si mesma, com perfeita espontaneidade, os modos mais arraigadamente sentidos como masculinos, entendi o ceticismo hostil que algumas bichas amigas minhas devotam a qualquer sugestão de um mundo pansexual polimorfo: o sentido da vida, para elas, como para o sapatão a que me referi, depende de uma nitidez muito grande nos sinais indicativos dos gêneros. Eles se opõem ao mundo que Christopher Larsh descreveu como "narcisista": o mundo, para ele auto-anulador, da indiferenciação. Não tenho argumentos contra as bichas e os sapatões conservadores nem contra Larsh. Andrew Sullivan reafirma a centralidade do modelo heterossexual, propondo que consideremos a homossexualidade como uma variante que ressalta, ao invés de negar, sua beleza: como os ruivos, os albinos e os gênios, os homossexuais seriam uma exceção que não apenas confirma mas honra a regra heterossexual. Achei bonito mas muito perto da analogia com, por exemplo, o canhoto. Edmund White prefere identificar a figura do homossexual com a figura do rebelde.
Todos temos a consciência de que os direitos civis de um indivíduo não podem ser ignorados pelo fato de ele ser um homossexual. Mas sei também que muitas vezes o ódio, o medo e a repulsa que a homossexualidade inspira dizem mais sobre sua grandeza do que uma sua aceitação em termos meramente liberais. Essa tensão esteve sempre presente no clima em que abordo o tema em meu trabalho. No momento da minha volta ao Brasil, minha vida de casado entrava num período glorioso - e o tema do homoerotismo atingia seu ápice de clareza no mundo da música pop, antes de decair para desdobrar-se nos movimentos a um tempo salutares e redutores da década que começava. Tenho lembranças muito doces desse período. E o nascimento de Moreno foi o maior (às vezes considero o único) acontecimento da minha vida adulta. Através de Nando Barros (meu ex-colega do colegial em cuja casa de Itapuã Dedé e eu começáramos, em 64, a namorar para valer), entramos em contato com um grupo de garotos muito interessantes da Bahia pós-tropicalista. Antônio Risério, Paulo César de Souza, os irmãos Mônica e Pedro Costa e Ana Amélia (Anamelinha) de Carvalho eram as figuras principais desse grupo de adolescentes. Risério era um intelecto ativíssimo conquistado para a poesia concreta pelo tropicalismo. Paulo César, uma grande inteligência sensível, admirava os tropicalistas tanto quanto Risério, mas defendia com golpes de ironia sua liberdade das novas ortodoxias eleitas por este último.
Paulo era também mais tocado pelo charme das idéias contraculturais de Luís Carlos Maciel - e pelas idéias já então um tanto anti-contraculturais de Paulo Francis - do que Risério. Mônica e Anamelinha faziam um par deslumbrante pelo contraste de cores: as duas muito bonitas, a primeira era loura e de pele clara, a outra, de pele marrom e cabelos muito pretos. Incluo Anamelinha entre as mulheres mais lindas que já conheci em toda a minha vida. A amizade com esses novos baianos mostrou-se tão firme quanto a que tínhamos cultivado com Waly, Duda, Alvinho, Roberto Pinho ou Rogério: em linhas gerais, dura até hoje. Tenho
mais proximidade com Risério e Paulo do que com os outros, mas revejo Mônica toda vez que vou a São Paulo, onde ela mora, e via Anamelinha com frequência até que ela morreu de um derrame, ainda jovem e bonita, deixando duas filhas (tinha se casado com Tony Costa, um guitarrista carioca que tocou comigo nos anos 80). Augusto de Campos veio à Bahia concluir as pesquisas para o livro que escrevia sobre Pedro Kilkerry, o poeta simbolista baiano cuja força e originalidade nunca tinha sido reconhecida pelas histórias da literatura brasileira. Risério ficou muito feliz de poder conhecê-lo pessoalmente. Ainda hoje os dois são amigos e Risério é um grande conhecedor da obra poética e ensaística de Augusto e dos seus companheiros concretistas, além de ter se tornado ele mesmo um poeta visivelmente influenciado por eles e um ensaísta vigoroso que herdou - além da disposição para o estudo constante e responsável - o tom agressivo dos momentos polêmicos do início do movimento. Paulo César, além de realizar estudos acadêmicos em historiografia, tornou-se um excelente tradutor de Nietzsche (fez traduções geniais de Além do Bem e do Mal, Ecce homo e A genealogia da moral), Freud e outros grandes autores de língua alemã. Mônica - que casou-se com Risério e, depois, com o poeta paulista Regis Bonvicino - também escreve poesia e tem já alguns livros publicados. Vinte e quatro anos atrás, esses futuros intelectuais eram adolescentes visivelmente talentosos comflue a Bahia me surpreendia em meu retorno - e que enfeitavam nossa casa com sua beleza e sua vivacidade.
Leon Hirzman terminara de rodar a adaptação para o cinema do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, e me pediu que fizesse a trilha sonora. Na nossa primeira conversa, mencionei o fato de Graciliano (como João Cabral) não gostar de música, e relembrei entusiasmado o quanto era maravilhosa a solução encontrada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas secas: apenas o ranger da roda de madeira do carro de boi servia de música para o filme. E Leon logo concordou, acrescentando que fora justamente com isso em mente que me procurara, pois via semelhanças entre o carro de boi de Nelson e meus grunhidos na gravação de "Asa-Branca" em meu primeiro disco de Londres. Foi uma iluminação. Ele queria de fato que eu compusesse algo para o filme usando apenas minha voz da maneira mais próxima possível do que eu fizera em "Asa-Branca", e imediatamente imaginei formas sonoras organizadas a partir dessa matéria-prima. Ele queria mais: que eu improvisasse à medida que ia vendo as imagens projetadas na tela. E assim fizemos. Fiquei maravilhado com o resultado - e mais ainda com o método. Tínhamos apenas quatro canais para superpor as vozes, e os recursos para mixar eram mínimos, mas experimentar compor a partir de "gemedeiras'', e gemedeiras improvisadas!, era uma aventura grandiosa. Achei o filme de Leon muito bonito - como são todos os filmes que fez - e acima de tudo encontrei na colaboração com ele um novo começo para meu próprio trabalho. Não é nada desprezível o fato de, mais uma vez, a indicação de caminhos me ter vindo do cinema - e do Cinema Novo brasileiro, essa experiência tão congenial ao próprio Brasil, por ser sempre uma aventura ao mesmo tempo frustra e grandiosa.




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