sábado, 18 de junho de 2016

PETISCOS DA MUSICARIA

QUANDO VEM O CALUNDU, SÓ RESTA O MARACATU


Dona Santa, do Maracatu Elefante


Hoje, acordei com gosto de pano de chão usado na boca. Quando vem esse sentimento-sensação o único pedaço de madeira que me adia o naufrágio é pensar no útero que me deu a luz: o Recife.

Abri os olhos, despertei depois de vários pensamentos ruins, preguiçosos e traiçoeiros como espantalho, cuja alma lhe foi tirada antes da figura do andrajoso fantástico. No âmago, um eco vazio de uma ‘vitória de Pirro’.

Foi um acordar embezerrado, melancólico, dengoso, amuado. Sinto-me sorumbático, estou de lundu, com calundu, macambúzio, arriado, arrufado.

As palavras, segundo o dicionário:

embezerrado adj (part de embezerrar) Amuado, zangado, macambúzio, emburrado.

melancólico adj (gr melagkholikós) 1 Que sofre de melancolia. 2 Abatido, desconsolado, triste. 3 Que infunde melancolia. Antôn: alegre, expansivo.

arriado adj (part de arriar) Diz-se do galo que, na ocasião da rinha, por ferido ou cansado, não mais podendo manter-se de pé, sustenta-se com a cabeça no solo.

Dengoso ô/adjetivo – 1.que age de forma sedutora e insinuante (diz-se esp. da mulher). 2. que pretende atrair as atenções por meio de gestos, roupas etc.

Lundu sm Folc 1 Espécie de batuque de origem africana. 2 Canto ou música dessa dança. 3 Canção solista, em geral de caráter cômico. 4 Reg (Norte) Zanga, amuo; calundu. Var: lundum.

macambúzio adj pop Carrancudo, embezerrado, sorumbático, tristonho. Antôn: alegre, prazenteiro.

amuado – adj (part de amuar) 1 Que tem amuo. 2 Guardado, entesourado (falando-se de dinheiro e riquezas). 3 Atrasado no produzir.

arrufado – adj (part de arrufar) 1 Arrugado, encrespado, eriçado. 2 Agastado, enfadado. sm Náut Embarcação que tem a proa muito elevada.

Não, não é a primeira vez que isso acontece e, tenho a impressão – pelo que a vida tem ensinado – que não será a última.


Peço que não me perguntem muitos detalhes desse estado de coisas. Estou há vários dias pensando na vida. Sempre que se pensa na vida, um dos lados traz um gosto amargo de fel na boca. É o que chamam por aí de ponderação.

Quando a ponderação se esgota, sobra a energia da sobrevivência de uma dor imensa dentro do peito, que há de ser vivenciada, sob a pena do cometimento de pecado capital: a covardia.

Quando assim estou, penso no útero que me pariu: o Recife. No seu terrível belo e no seu incrível pavor.

É nas referências mais profundas de lá que compadeço de meus lundus e calundus. Não há nenhuma objetividade. Não há escolha. Todas as imagens vêm de lá. Dos homens-lama e dos guabirus debaixo das pontes, respirando embaixo das entranhas nas alças de suas, dos manguezais – berço da natureza – escangalhados pela especulação imobiliária, e – que duro isso – de nossa arrogante superioridade vil, uma dicotomia histórica vista a olhos nus no Complexo de Salgadinho, na divisa do Recife, com Olinda, minha avó.


Então apelo para todos os santos e orixás, me redimo subindo o morro da Conceição, sublimo meus fedores com as ruas da Guia, baforadas de cheiro de mijo.


Busco o monte dos Guararapes (amanhã, 19 de abril – data de fundação das tropas nacionais), em Jaboatão (a “Moscou brasileira”), para sentir uma pátria que nunca se consolidou; visito Tejucupapo, para relembrar as guerreiras que, de forma quase non-sense, expulsaram algumas centenas de flamengos a golpes de paus e pedras e panelas com água fervente.

Procuro arrecifes em Boa Viagem para ficar aquém dos tubarões que, pela sanha gananciosa dos homens, deslocaram-se para ali.

Há uma resiliência ‘mulesta dos cachorros’ que só ali encontro – talvez por desconhecimento de outros mundos.

Quando estou macambúzio, melancólico e de calundu, procuro meu útero, quentinho, nem sei de qual procedência, nem estirpe, mas é quente e me serve.

É minha última reserva de energia.

Na ponderação, os carnavais; os são joãos; as semanas ‘santas’; a maresia, a prosódia, a música, as coisas do povo, a manifestação popular: o frevo, o coco, a marcha de bloco, os maracatus.

Não sei por que cargas d’água o maracatu é minha sublimação. Vem de longe, vem de África, canta a dor, canta a humilhação e se vinga dos seus antigos senhores, vestidos e reis e rainhas, como dona Santa.

Depois de meu banho de sal, a consulta ao tarô, outro banho de sol, o sal da praia e o pé no chão, só me recupero – se é que recuperação há – ouvindo o mais profundo som brasileiro-africano, “o meu maracatu é da coroa imperial, é de Pernambuco ele é, da casa real”



Foi cantando esse maracatu de Capiba – o primeiro que aprendi – que limpei meus pensamentos mais doídos de hoje. Só por hoje!

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