segunda-feira, 20 de junho de 2016

A MÚSICA DE 1966 – A TRILHA DO MUSICAL LIBERDADE LIBERDADE


Por José Teles

Capa do LP Liberdade Liberdade


“Muitos acharão que Liberdade, Liberdade é excessivamente circunstancial. O ato cultural muito submetido ao ato político. Para nós, essa é a sua principal qualidade. (…) Consciente de si, do seu mundo, [o artista brasileiro] marca a sua liberdade, inclusive, realizando obras que são necessárias só por um instante. E que, para serem boas, necessariamente terão que ser feitas para desaparecer; deixando na história não a obra, mas, a posição. (…) muitas vezes a circunstância é tão clara, tão imperiosa, que sobe à realidade (…). Afirmamos que nesse instante a realidade mais profunda é a própria circunstância – e nesse momento não ser circunstancial é não ser real

O Liberdade, Liberdade, citado no parágrafo acima se trata da peça com texto de Millor Fernandes, e dirigida por Flávio Rangel, que estreou em 1965, no Teatro Tereza Rachel, no Rio, e que foi lançada em disco em 1966. No texto acima, o autor comenta a possível crítica que peça receberia como uma obra circunstancial, que pouco tempo depois não seria mais lembrada, tampouco levada à cena. Meio século depois, infelizmente, embora boa parte dos que a fizeram já tenha morrido, a peça ainda continua atual, merecedora de voltar à cena, obviamente com uma atualização.

Representada por Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Vianna Filho e participação especial de Tereza Rachel, Liberdade Liberdade é um colcha de retalhos, de músicas, das mais variadas procedências, concatenadas com textos que evocam o país um ano depois da implantação da ditadura militar, com música de diversas procedências, e texto com o humor nervoso de quem cutucam a onça com a vara curta.

Em plena ressaca do golpe militar, um texto crivado de citações políticas, de acontecimentos históricos, pinçadas das mais variadas fontes, de Sócrates a Shakespeare, de Brecht a Groucho Marx, de Castro Alves a Ascenso Ferreira. Devidamente adaptadas à conjuntura da época. Ou conforme a explicou Millor Fernandes: “Fizemos, em suma, uma liberdade como podia concebê-la a modéstia e as limitações de nossas mentalidades – minha e de Flávio Rangel – sottosviluppatas (N- subdesenvolvido em italiano) Mas também vocês não iam querer um liberdadão enorme, feito aquela que está em Nova Iorque. A gente tem que começar por baixo. Como os Estados Unidos, por exemplo: começou com um país só”

O álbum foi lançado pele selo Forma, de Roberto Quartim, seguia uma tendência de então, a transposição para o vinil de musicais bem sucedidos como Opinião, (de Armando Costa, Vianninha e Paulo Pontes, dirigida por Augusto Boal) Arena Conta Zumbi, (Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, e Edu Lobo) , Pobre Menina Rica.(Carlos Lyra e Vinicius de Moraes). Não por acaso, os três de de oposição ao regime que se instalara no país em 1º de abril de1964.

A música pontuava e reforçava o texto, complementava a ação. A peça abre com o Hino da Proclamação da República (L.Miguez/O.D Estrada), que teve popularizado os versos “Liberdade, liberdade/abre as asas sobre nós”, e e é tão abrangente quanto as citações e fontes literárias e filosóficas que alimentam o roteiro. Quem não teve oportunidade de ver a peça ao vivo, curtia no disco, um resumo do texto, que daria um álbum duplo, no mínimo.

Millor passou o pente fino pela história, vai da antiguidade à Idade Média, Renascença, sem esquecer os episódios, mais ou menos recentes, da revolução espanhola, a Segunda Guerra Mundial, o nazismo, racismo, Revolução Francesa, poemas e canções brasileiras, americanas, espanholas, tudo que possa ser utilizado como resistência a ditadura.

Para ridicularizar o regime valia tudo, até uma piada velha de Groucho Marx. A peça insinua que os militares, atualmente, têm voz decisiva em muitos assuntos fora de sua competência profissional. Um militar afirma, falando de um problema civil: “Ora, isso pode ser resolvido por qualquer criança de três anos!” E depois de um momento de embaraço, acrescenta: “Tragam-me uma criança de três anos!”. Ou ainda a Revolução Francesa adaptada à “revolução verde e amarela: Numa cena, reconstruindo a invenção da guilhotina, comenta-se que a máquina só funciona eficientemente em pessoa com pescoço. O marechal Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar, era vítima de constante gozações por causa do pescoço diminuto.

As canções em sua maioria são cantadas por Nara Leão, a direção musical de Oscar Castro Neves e com a participação de Roberto Nascimento no violão, Ico Castro Neves no contrabaixo, Carlos Guimarães na flauta e Francisco Araújo na bateria. O coro é formado por Ângela Menezes, Maíza Sant‟Anna, Sônia Márcia Perrone e Roberto Quartim Pinto.

Não é um álbum que tenha marcado um ano tão cheio de conquistas e inovações para a música popular, mas mostra a indústria do disco também como trincheira da luta pela volta da democracia. Luta que, não se sabia ainda, estava apenas começando, e se desdobraria em capítulos que hoje se mexem no túmulo, feito assombração. e dividem a opinião nação sobre uma página infeliz da nossa história.

Liberdade, Liberdade o disco, merecia um relançamento para celebrar seu meio século (assim como o de outras peças semelhantes do mesmo período) Não apenas por isto. É certo que o país navega em outras águas, porém igualmente revoltas. Como escreveu então o crítico Décio de Almeida Prado, “ninguém clama por liberdade se não se sente ameaçado de perdê-la”. Liberdade Liberdade, em 1966, foi proibida de ser apresentada em todo o território nacional.

Confiram áudio de Paulo Autran em Liberdade, Liberdade:

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