Por Mauro Ferreira, G1
Desde que o samba é samba, na primeira década do século XX, as mulheres foram ganhando progressivamente voz e espaço no ofício da composição – território historicamente masculino pela constituição originalmente patriarcal da sociedade.
Nem todas as mulheres se contentaram ao papel reservado a elas de cantoras de músicas compostas por homens. A pioneira Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935) abriu alas e fez o Carnaval ainda no século XIX.
A partir dos anos 1930 e 1940, Ivone Lara (1922 – 2018) começou a driblar o machismo reinante no samba e, aos poucos, foi se impondo como compositora até ser consagrada nos anos 1970. Também excelentes intérpretes de obras alheias, Dolores Duran (1930 – 1959) e Maysa (1936 – 1977) deram importantes contribuições como compositoras na década de 1950.
Nos anos 1960, Joyce Moreno deu passo adiante e, sob protestos, ousou compor sob ótica mais explicitamente feminina. Ao permanecer na música sem Os Mutantes, a partir de 1973, Rita Lee seguiu a trilha e foi a ovelha negra do rock nacional de marca autoral.
Contudo, a explosão da mulher na música do Brasil aconteceu para valer em 1979. Nesse ano, os lançamentos coincidentes dos primeiros álbuns de Angela Ro Ro, Fátima Guedes e Marina Lima – entre outras cantoras que já se apresentaram como compositoras – provocaram uma revolução em que as armas foram a sensualidade e a sensibilidade feminina expostas em forma de música e letra.
Essa revolução ainda ecoa após 40 anos e, por conta da efeméride, será tema de uma série de textos do blog ao longo deste ano de 2019.
Para começar, Marina Lima, cujo primeiro álbum, Simples como fogo, gravado entre o outono de 1978 e o verão de 1979, foi lançado nesse ano musical vivido no Brasil sob o signo da mulher.
Marina Lima posa com a guitarra em foto da contracapa do primeiro álbum, 'Simples como fogo' — Foto: Antonio Guerreiro / Reprodução contracapa de disco
A VOZ DA MULHER EM 1979 (PARTE 1) – Artista de ascendência piauiense, criada entre as cidades do Rio de Janeiro (RJ) e Washington (EUA), Marina Lima deveria ter sido lançada como compositora em 1976 se a censura não tivesse impedido Maria Bethânia de incluir Alma caiada, parceria de Marina com o irmão poeta Antonio Cicero, no álbum Pássaro proibido.
Como impediu, coube a Gal Costa a primazia de lançar em disco no ano seguinte a primeira música de Marina, Meu doce amor, parceria com Duda Machado que foi literalmente um lado B do álbum Caras & bocas(1977), um dos títulos mais roqueiros da discografia de Gal.
Abertas as portas da indústria fonográfica, Marina Lima – que então se apresentava artisticamente sem o sobrenome – começou a gravar o primeiro álbum em 1978, ano em que debutou como cantora em compacto que antecipou as abordagens de Muito (Caetano Veloso, 1978) e Tão fácil (Marina Lima e Antonio Cicero, 1978), duas das 10 músicas do álbum que se chamaria Simples como fogo.
Produzido por Gastão Lamounier sob a direção artística de Marco Mazzola, produtor que ganhava força na então recente filial brasileira da gravadora WEA, o álbum Simples como fogo não é o disco que mais bem traduz as intenções autorais de Marina Lima. Mas já estavam ali as pistas da modernidade e da liberdade que ainda hoje pautam a carreira da artista.
Tudo pode soar simples e até banal sob a luz de 2019, mas uma foto de uma cantora empunhando uma guitarra fora do universo do rock – como a foto de Marina clicada por Antonio Guerreiro e exposta na contracapa do LP – era uma demonstração de atitude e de demarcação de território feminino.
A atitude foi reiterada com a decisão de abrir o álbum com música da antecessora Dolores Duran, Solidão (1958), lançada há 21 anos.
O álbum Simples como fogo fugiu da cartilha dos álbuns de MPB da época. Mas tampouco soou como disco de rock. Ou de pop radiofônico.
Como se comprovaria ao longo dos anos 1980, Simples como fogo soou simplesmente como um disco de Marina Lima, um álbum tão pessoal como a assinatura desta compositora que, como intérprete, ainda teve a primazia de lançar a primeira música de Angela Ro Ro em disco, Não há cabeça, em gravação primorosa feita com os toques do piano da própria Ro Ro e da guitarra do mutante Sérgio Dias.
Em 1979, mesmo com a forma da obra ainda em progresso, Marina Lima já era muito.
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