segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A MÚSICA POPULAR NA REPÚBLICA - O ÚLTIMO VARGAS

Por André Diniz



Quem conhece um pouco de história do Brasil não se surpreende com o DNA das nossas elites: odeiam cheiro de povo. Qualquer governo que flerte um pouco com o povo, que pense em diminuir as desigualdades sociais do país, atiça as garras predadoras das nossas elites. Foi assim em 2016, em 1964 e não foi diferente nos anos 50, com Getúlio Vargas. 

Em 1951, Getúlio assumiu a Presidência num contexto social e econômico diferente daquele em que fora o mandatário por quinze anos. O Brasil tinha mais de 50 milhões de habitantes, 40% dos quais moravam em cidades. Com o crescimento e a expansão das indústrias, cerca de 1,5 milhão de operários trabalhava em fábricas, minas, portos e ferrovias. O Estado passava a ter mais embaraço para controlar os diversos interesses de partidos, corporações e movimentos sociais. A letra da música “Falta um zero no meu ordenado”, de Ary Barroso e Benedito Lacerda, dava o tom das dificuldades que Getúlio herdou do governo Dutra:

Trabalho como louco,
Mas ganho muito pouco,
Por isso eu vivo sempre atrapalhado,
Fazendo faxina,
Comendo no China.
Tá faltando um zero
No meu ordenado.

“Ministério da Economia”, de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, botava fé no governo varguista:

Seu presidente,
Sua Excelência mostrou que é de fato,
Agora tudo vai ficar barato,
Agora o pobre já pode comer.
Seu presidente...

A campanha “O petróleo é nosso” foi a grande bandeira nacionalista de Getúlio. O samba “Falso patriota”, composto por David Raw e Victor Simon, batia nessa tecla:

Você diz que é patriota,
Sua bebida é de marca escocesa. 
Não bebe nossa cachaça
E ergue a taça
Com a champanhe francesa.

Tendo em vista os sucessos musicais da época, “Maria Candelária” (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti) e “Lata d’água” (Luís Antônio e Jota Júnior), o governo Vargas não andava bem das pernas:

Maria Candelária
É alta funcionaria.
...
Começa ao meio-dia, 
Coitada da Maria, 
Trabalha, trabalha, 
Trabalha de fazer dó-ó-ó-ó.

E:

Lata d’água na cabeça,
Lá vai Maria,
Lá vai Maria.
Sobe o morro e não se cansa, 
Pela mão leva a criança,
Lá vai Maria.

Em 1953, as “Marias” de lata d’água na cabeça deram uma demonstração de que não aguentavam mais as “Marias Candelárias”. Resultado? A chamada greve dos 300 mil em São Paulo. Para jogar um balde de água fria nos grevistas, Getúlio Vargas nomeou para o Ministério do Trabalho João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

João Goulart, o Jango, era visto pelos udenistas e por parte dos militares como um “vermelho”, um comunista. O novo ministro sugeriu ao presidente dobrar o salário mínimo, o que não era grande coisa, pois o salário não aumentava havia quase dez anos. Como já dizia o compositor Alvarenga, em “Salário mínimo”:

Cansei de tanto trabalhar
Na ilusão de melhorar.
Cinco filhos, mulher e sogra pra sustentar. 
Setecentos e cinquenta cruzeiros? 
Não dá.

Pressionado, Getúlio demitiu Jango, mas o inflamado Carlos Lacerda voltou a atacar o governo como nunca. Começou a afirmar que o país vivia num “mar de lama”. O tiro de misericórdia em Getúlio não veio da oposição, mas do próprio palácio do Catete. O chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, resolveu contratar um pistoleiro profissional para matar Carlos Lacerda.

No dia 5 de agosto de 1954, na rua Tonelero, em Copacabana, o tal pistoleiro errou o alvo e acertou em cheio o major da aeronáutica Rubens Vaz. Todas as pistas levavam ao “Anjo Negro do Catete”, Gregório Fortunato. O vice, Café Filho, conspirava à luz do dia, ao lado de Carlos Lacerda e do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra.

Na madrugada de 23 para 24 de agosto, em reunião de emergência, ficou definido que Getúlio pediria licença do cargo. Às 8h da manhã, ouviu-se no Catete o tiro do colt 32, disparado por Getúlio no próprio peito. A seu lado, na mesinha de cabeceira, a carta-testamento que mudaria o rumo da História. As hostilidades endereçadas ao presidente mudaram de lado. O tiro dado por Getúlio atingiu em cheio a oposição. Seus inimigos foram perseguidos e a sede da UDN foi destruída. Lacerda deu no pé por uns tempos, pois o próximo pistoleiro contratado poderia ter tiro mais certeiro.

O corpo de Getúlio ficou exposto no Palácio do Catete provocando cenas emocionantes de mulheres desmaiadas, homens chorando abraçados ao caixão. Filas gigantescas iam do Catete até Botafogo e o Centro: todos queriam dar o último adeus a Seu Gegê.

Em 1956, Moreira da Silva gravou “A carta”, samba de Silas de Oliveira e Marcelino Ramos, em homenagem a Vargas:

Mais uma vez
As forças e interesses contra o povo
Coordenaram-se novamente
E se desencadeiam sobre mim. 
Não me acusam,
Insultam-me de novo.
Vejo de perto aproximar meu fim.

E agora? Depois de “Vinte e quatro de agosto” (de Teixeirinha), como ficaria o país:

Vinte e quatro de agosto a terra estremeceu.
Os rádios anunciavam o fato que aconteceu.
As nuvens cobriam o céu, 
O povo em geral sofreu. 
O Brasil cobriu de luto, 
Getúlio Vargas morreu.

O vice Café Filho flertava com a UDN e a eleição presidencial estava prestes a acontecer. Que retrato entraria na parede? O violão daria o tom dos novos tempos, e surgiria no centro do país a nova capital federal. Tudo cheio de bossa, dando um chega para lá na “saudade” e um fim ao “Complexo de vira-lata”.

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