sábado, 14 de setembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


As coisas realmente melhoravam. Creio que já na segunda semana foi permitido que Dedé me visitasse. Eles abriam a porta de grade, deixavam-na entrar. Tudo se transformou. Não ficávamos a sós: o soldado tinha ordem de ficar vigiando e, de todo modo, a porta sendo gradeada nós não podíamos ter intimidade. Mas ela se sentava ao meu lado na cama, contava-me sobre o mundo lá fora e sobre suas andanças para tentar me libertar. Ouvia meu confuso relato dos dias que fiquei sem vê-la e me consolava. Trazia- me livros e revistas (finalmente aqui eles eram permitidos) e recados de amigos, além de uma lata de Baygon e -
hoje ela me assegura - Valium.
O fato de eu ter usado esse tranquilizante - que conheci depois da experiência com auasca - poderia me levar a pensar que minha dificuldade de dormir tinha voltado com o relativo bem-estar. Mas Dedé me diz que amigos nossos, ouvindo o que ela contava sobre mim, aconselharam-na a me trazer os comprimidos de Valium (que eu tinha de esconder) por temerem pelo meu estado mental. Ela própria parecia estar mais assombrada com meu estado físico. Me achou terrivelmente magro e, sem me avisar, foi à casa do major Hilton - que ficava em Marechal Hermes, subúrbio da Zona Norte colado à Vila Militar - e exigiu que eu tivesse acesso a uma comida melhor. Suponho que Gil tivesse, no quartel onde estava detido, direito a comer a mesma comida que os oficiais, e era isso que Dedé pleiteava para mim. Mas - tal como a permissão de ter um violão dentro da cela (que tantas vezes, sem êxito, pedi ao major) - essa regalia era assegurada a Gil por ele ter concluído seu curso na faculdade e, portanto, ter o "nível universitário" que eu não tinha. Dedé, no entanto, se informou de que, nesse caso, a alimentação de melhor qualidade só me seria servida se eu tivesse uma razão de saúde para isso.
Naturalmente ela achava que eu tinha todas as razões para receber tratamento especial, mas tinha de convencer o major com algo concreto. Um dia (o que foi devidamente prenunciado pela aparição de uma barata que matei com um jato de Baygon), o major mandou me chamar à sua presença e me ameaçou, aos berros, de severos castigos, caso não se confirmasse o que ele sabia ser uma mentira da minha mulher que, insolentemente tinha ido incomodá-lo em sua casa para pedir que me dessem comida de oficial porque eu tinha tido tuberculose na adolescência. Ela havia lhe assegurado que meu pulmão guardava uma cicatriz, e ele tinha dado ordens para que me fizessem uma radiografia: ai de mim se essa tal cicatriz não aparecesse. Fiquei muito assustado pois Dedé nada me avisara a respeito. Fui conduzido a um laboratório radiológico onde tiraram chapas do meu tórax que, afinal, comprovaram a existência da cicatriz. No dia seguinte o major, que não era um homem brilhante, me dizia com gravidade: "Parabéns, sua mulher não mentiu".
As revistas traziam freqüentemente fotografias de mulheres seminuas, atrizes bonitas, modelos, vedetes. A proximidade de Dedé era marcada por séries de ereções que, dada a sensação de satisfação que estar perto dela produzia, mais pareciam os espasmos do prazer do que a ansiedade do desejo. Mas muitas vezes, estando sozinho, tendo à mão as fotografias das mulheres, tive que fazer grande esforço para não me masturbar. Eu sonhava todas as noites com mulheres desconhecidas e sempre acordava a um nada do orgasmo, com o coração disparado. Nunca amei tão intensa e exclusivamente as mulheres quanto quando estava no quartel dos pára-quedistas. Elas me pareciam a encarnação da felicidade. Nunca os homens me foram mais asquerosos e repelentes. Minha sexualidade tinha morrido na solitária da Barão de Mesquita e ressuscitara agora totalmente voltada para as mulheres. Um mês entre militares me fez rejeitar, com asco, o homem como possível objeto sexual. Um dia Dedé me trouxe uma revista Manchete com as primeiras fotografias da Terra tiradas de fora da atmosfera. Eram as primeiras fotos em que se via o globo inteiro - o que provocava forte emoção, pois confirmava o que só tínhamos chegado a saber por dedução e só víamos em representações abstratas - e eu considerava a ironia de minha situação: preso numa cela mínima, admirava as imagens do planeta inteiro, visto do amplo espaço. Anos depois, já de volta à Bahia, compus uma canção de que ainda hoje gosto muito ("Terra") e cuja letra começa por referir-se a esse momento. Dirigindo-me à Terra, nos primeiros versos da canção, comento as tais fotografias "onde apareces inteira porém lá não estavas nua e sim coberta de nuvens". Esse acercamento sensual que se insinua na consideração de que a Terra não estava "nua" nas páginas da revista, embora no instante de fazer a canção eu não me desse conta, me veio à mente sem dúvida por causa das outras fotografias que mais me impressionavam na cela do PQD: as de mulheres seminuas que me enchiam de desejo e com que sonhava todas as noites.
Um sargento já não muito jovem ofereceu-se, com um tato que me comoveu, para proporcionar-me momentos de total intimidade com Dedé. Era um baiano preto, de origem humilde, que me disse que nunca passaria de sargento por não ter tido instrução (nem ter mais idade) para entrar no curso de oficiais. Sempre sinto um certo orgulho de ser baiano quando identifico no gesto desse sargento - que revelava uma espécie de deslumbramento respeitoso pelo sexo - um traço característico da gente da Bahia. Ele se propôs a nos certificar, nos dias que estivesse de serviço, de que ninguém chegaria até a porta da cela durante as visitas de Dedé. E assim foi. Ele, exercendo sua autoridade sobre os soldados (que, nesse caso, pareciam obedecer de bom grado), retirava o responsável pela guarda da grade e impedia a aproximação dos outros, ficando ele mesmo de sentinela, perto da porta de entrada, a uma distância considerável de nós, só se aproximando, com bastante ruído, no caso de algum oficial despontar no alto da colina. Como a estrada que descia dos escritórios dos oficiais (e de seu restaurante - que eles chamavam de "cassino") era uma ladeira bastante longa, o sargento tinha tempo suficiente para nos avisar e para reorganizar seus soldados. E eu podia ter Dedé de novo comigo e para mim - como pensara que nunca mais seria possível. Esses encontros sexuais sumários eram ternos e intensos - e me salvaram, reequilibrando minha pessoa quase destruída pelas diversas tensões. A mulher, a minha mulher, vinha até mim como uma fada boa e me curava as feridas, ao mesmo tempo que me libertava da tentação da masturbação, que, segundo eu cria, desencadearia energias funestas. Mas o sargento foi delatado ou flagrado e recebeu voz de prisão, fato que me foi comunicado pelo major Hilton em pessoa quando este veio, aos berros, me dizer que, daquele dia em diante, Dedé não entraria mais na minha cela. As visitas passaram a ser super vigiadas e eu agora só podia falar com Dedé através das grades. O sargento baiano foi preso e nunca mais o vi.
Entre os livros que li na cela do PQD, dois deixaram lembrança indelével (e não só por serem ambos muito bons): um de poemas de Jorge de Lima (enviado pelo cineasta Walter Lima Júnior) e Ao Deus desconhecido, de John Steinbeck. Este último completou, de certa forma, o trabalho de O estrangeiro e O bebê de Rosemary, no sentido de me tornar mais supersticioso. Os poemas de Jorge de Lima eram, em geral, igualmente místicos - e eu me sentia mais preso à prisão. A figura de minha irmã Irene aparecia com freqüência em minha mente como um antídoto contra essas sombras. Irene tinha catorze anos então e estava se tornando tão bonita que eu por vezes mencionava Ava Gardner para comentar sua beleza. Mais adorável ainda do que sua beleza era sua alegria, sempre muito carnal e terrena, a toda hora explodindo em gargalhadas sinceras e espontâneas. Mesmo sem violão, inventei uma cantiga evocando-a, que passei a repetir como uma regra: "Eu quero ir, minha gente/ Eu não sou daqui/ Eu não tenho nada/ Quero ver Irene rir/Quero ver Irene dar sua risada./ Irene ri, Irene ri. Irene". Foi a única canção que compus na cadeia. Eu não pensava em torná-la pública: pensava tratar-se de algo inconsistente e incomunicável. Para minha surpresa, Gil achou-a linda e, uma vez gravada, não só ela fez sucesso de público como Augusto de Campos publicou uma versão visualmente tratada de modo a enfatizar o (para mim surpreendente) caráter palindrômico do refrão: com efeito, a frase "Irene ri" pode ser lida nos dois sentidos.
Um dia, confirmando uma premonição minha construída milimetricamente, o major Hilton mandou me chamar e, ao entrar em sua sala, percebi que se tratava do interrogatório: ele estava sentado à sua mesa em atitude solene, tendo ao lado um escrivão. Creio que, além do soldado que me seguira até ali com sua metralhadora, havia dois outros que, fuzil às costas, ladeavam, como um par de estátuas, a mesa do major. Obedeci à ordem de sentar-me na cadeira que ficava de frente para este. E ouvi seu sermão introdutório que, em resumo, me dizia ser ele um inquisidor implacável e que tudo se esclareceria para o meu bem ou para o meu mal. Ele queria mostrar-se convencido de que seria para o meu mal. Passou então às primeiras perguntas. Julguei natural que ele começasse por nome, idade, nacionalidade, filiação etc. Mas nunca imaginei que fosse me perguntar a data de nascimento, a ocupação e o estado civil de todos os meus irmãos, de todos os meus cunhados e de todos os meus sobrinhos. A maioria desses últimos estava na tenra infância e eu me sentia numa comédia sinistra quando o major exigia precisão nos dados a seu respeito. Cheguei a fantasiar que eles talvez quisessem usar as crianças como possíveis armas de intimidação, caso uma tortura psicológica mais complicada se fizesse necessária, pois o major queria que eu revelasse o grau de intensidade dos meus vínculos afetivos com elas. Muitas horas se passaram no detalhamento de coisas como a vida de Layrton Barreto, marido de minha irmã Clara, e de Antônio Mesquita, marido de minha irmã Mabel. Desnecessário dizer que o mesmo se perguntava sobre meus pais e sobre Dedé e sua família. O fato é que o primeiro dia de interrogatório se esgotou sem que se saísse desse esquadrinhamento das atividades de parentes e contraparentes.
A partir de então, subi diariamente aquela ladeira, seguido de meu guarda com metralhadora, para responder ao meticulosíssimo questionário do major. Sempre conferindo a precisão de minhas premonições, entrevi esperanças de que as coisas se desenredassem quando, depois de passar sumariamente pelo tema da passeata dos 100 mil (com mais disposição para me repreender do que para exigir explicações), o major entrou no que deveria ser a justificativa formal para eu estar preso: o episódio, na Boate Sucata, envolvendo a obra de Hélio Oiticica, que homenageava o bandido Cara de Cavalo com a inscrição "SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI". O tal juiz de direito terminou conseguindo suspender o show e interditar a boate. Para nós esse episódio parecera despropositado, uma vez que a presença da bandeira de Hélio (que não lembro como entrou no show) funcionava como um elemento a mais, quase imperceptível para os espectadores, entre os muitos e disparatados procedimentos chocantes de nossa apresentação. A mera existência desse espetáculo tinha um caráter de choque, dado que ele era encenado à margem do Festival Internacional da Canção de que nossas composições tinham sido desclassificadas com escândalo. A história da interdição da Sucata por causa da
bandeira de Hélio correu de boca em boca e, possivelmente agarrado a essa palavra, bandeira, um apresentador de rádio e televisão de São Paulo, Randal Juliano, resolveu criar uma versão fantasiosa em que nós aparecíamos enrolados na bandeira nacional e cantávamos O Hino Nacional enxertado de palavrões. Esse sujeito era um demagogo de estilo fascista que cortejava a ditadura agredindo os artistas. Atitudes como essa eram usuais em seu programa e, como nós não tínhamos assistido a sua peroração contra nós, não demos muita importância quando nos contaram. Agora o major Hilton me informava que esse locutor tinha se dirigido explicitamente aos militares pedindo punição para nós, e que essa arenga havia surtido efeito sobretudo na Academia das Agulhas Negras, a prestigiosa escola de formação de oficiais do exército. De lá teria saído a exigência de que nos prendessem. Naturalmente respondi ao major que me surpreendia que os oficiais não tivessem tentado verificar a veracidade dessas acusações, as quais, se ele me desse a oportunidade, eu provaria serem falsas. O major mostrou uma grande fúria antecipando o resultado contra mim que qualquer investigação apresentaria, pois ele não admitia que essa história que me levara à prisão, onde eu já estava fazia mais de um mês, não fosse verdadeira. E assegurou: "Se você provar inocência, eu solto você imediatamente". E me perguntou se eu teria testemunhas que confirmassem minha versão dos fatos.
Respondi com firmeza e presteza que sim e dei os nomes: Ricardo Amaral, o dono da boate, e Pelé, o discotecário - ambos tinham estado presentes ao show todas as noites. O major disse que tomaria todas as providências para intimar as testemunhas e só voltaria a me chamar quando a audiência com estas estivesse marcada. E assim fez. Uns dois ou três dias depois, eu subia a colina para ouvir Ricardo Amaral - o famoso empresário paulista da noite carioca - e Pelé o negro elegante e esperto que, como tantos negros no Brasil de então, ganhara o apelido do grande jogador de futebol, e de quem me tornei grande amigo. Era curioso saber que esses dois homens da noite da Zona Sul viriam a uma audiência às sete ou oito horas da manhã no extremo norte da cidade. 
Eles estavam sentados um de costas para o outro e ambos de costas para a cadeira que me esperava, de modo a não ser possível nenhuma comunicação por meio de gestos ou sinais entre nós. Achei muito estranho ouvir-lhes as vozes sem poder ver-lhes os rostos, mas fiquei muito contente com a força que suas palavras algo nervosas porém muito simples e claras tiveram sobre o major: as versões de ambos confirmavam a minha em todos os detalhes, sem deixar sombra de dúvida de que eu estivera dizendo a verdade o tempo todo. Ao final da
audiência, depois que finalmente pude, ao me despedir de Pelé e Ricardo, ver em seus rostos uma expressão de insegurança que eu nunca imaginaria em nenhum dos dois, o major me olhou no fundo dos olhos e, com aquele ar solene e pouco inteligente, repetiu em parte o que tinha dito ao ver o resultado das radiografias: "Parabéns. Você disse a verdade". Mas o mais importante foi o que ele acrescentou: "Vou pedir a sua soltura hoje mesmo; dentro de dois ou três dias você estará em liberdade".
Atribuí à interpretação de sinais (baratas, canções etc.) o fato de eu ter certeza de que, apesar do que me dissera o major, eu não seria solto em dois ou três dias. Mas o fato é que só fiz perguntas ao meu errático oráculo porque já sabia que um interrogatório tão límpido e justo não condizia com o modo absurdo como me fizeram esperar por ele. A irracionalidade do que vinha me acontecendo - e que me levara a criar o sistema de sinais - era prova de que seria tolice crer que um movimento da razão pudesse mudar as coisas. Percebi, não sem um certo carinho pelo sotaque mineiro do major, que ele é que estava sendo tolo. Como é possível observar no caso dos búzios e do I Ching, interpretamos as mensagens oraculares quando previamente munidos (mais ou menos inconscientemente) do conhecimento de seu conteúdo. Nunca mais abriram a cela para Dedé entrar. A única pessoa que entrava ali, além dos soldados que vinham me buscar para as audiências, era um jovem tenente chamado Paulo, muito bonito, que, tendo crescido em Marechal Hermes, sonhava com a vida glamourosa da Zona Sul, onde moravam todos os artistas. Ele evidentemente sabia que era muito bonito e me pedia para apresentá-lo a diretores de cinema e publicitários depois que eu saísse dali. Dizia-me que queria ser ator ou algo assim.
Estava visivelmente fascinado por mim, pela minha fama, pelo mundo colorido da minha profissão. Ele entrava na cela porque, sendo tenente formado na academia, tinha, além da autoridade sobre o sargento e os soldados, regalias especiais. Mas não informou seus superiores sobre essas visitas. Eu pensava que era estranho que eu não o achasse atraente em nenhuma medida, embora ele me fosse simpático e suas conversas ingênuas me divertissem. De todo modo suas visitas foram proibidas e o major me informou disso com uma voz cheia de desaprovação amarga, como se eu também tivesse responsabilidade por elas. Senti um certo alívio por me livrar do tenente bonitão e deslumbrado. Uma outra presença me pareceu muito mais carregada de ameaça sexual: um oficial, acho que capitão, de quem me disseram que fizera curso de anti guerrilha nos Estados Unidos (e por isso portava um distintivo vermelho, não sei se no peito ou no quepe), postava-se todos os dias diante da grade e me olhava fixamente por longos minutos, sem dizer uma palavra. Ele andava com uma varetinha fina na mão e acho que muitas vezes estava de óculos escuros. Mas não sempre, pois lembro de seu olhar frio e perscrutador. Como nos dois outros quartéis onde estivera e onde não tinha nenhuma outra roupa comigo, eu ficava o dia inteiro só de cueca, quase nu. No PQD, onde acho que tinha alguma roupa na cela (não lembro de me trazerem roupas para eu vestir quando me chamavam para os banhos de sol, como acontecia na PE), eu ficava seminu também por causa do calor. Esse capitão me olhava de um modo que eu me sentia inteiramente nu e desprotegido, tinha vontade de me vestir. Sentia uma enorme repugnância pelos seus modos friamente másculos, e, diante de sua expressão enigmática, resultava igualmente desconfortável encará-lo ou olhar em outra direção. Um dia o major Hilton me chamou e, um tanto embaraçado por terem se passado muitos dias e nada de minha liberação sair, me disse que iria pedir a presença de Randal Juliano para que fosse feita uma acareação. Passaram-se mais alguns dias - nos quais o capitão indecifrável não faltou uma só vez - e o major voltou a me chamar para dizer, sinceramente decepcionado e triste, que tinham lhe respondido que Randal Juliano não viria e não lhe deram mais explicação. Então me confessou perplexo: "Eu não sei o que está acontecendo. Você já deveria estar solto. Isso é uma vergonha". Fui levado de volta à cela e ninguém mais me disse nada.
Aí disparei meu sistema de sinais e minha energia ia toda nisso.
Tornei-me um adivinho consideravelmente impressionante. Anos depois, quando, comentando o caso de Thomas Green Morton, um paranormal que entortava talheres,  materializava moedas, fazia comunicações telepáticas e previa acontecimentos, meu psicanalista Rubens Molina me disse que esses todos lhe pareciam sintomas terríveis - o que será que levava esse rapaz a precisar realizar tais prodígios? -, eu, em vez de enfatizar o aspecto viciado da psicanálise, que quer reduzir tudo ao seu próprio esquema, considerei que Molina tinha ido ao fundo da questão: eu sabia até onde o desespero pode levar. Nos últimos dez dias que passei no PQD, eu só confiava no que me diziam os sinais que eu mesmo elegera (e elegia) para ter notícias sobre meu futuro. Um dia vieram me buscar e, como tinha sido adivinhado e a expressão dos soldados confirmava, não se tratava do major. Logo me disseram que era o capitão que queria falar comigo.
Subi a colina tremendo. Os sinais não prenunciavam nenhuma catástrofe, mas o fato é que, embora nos escravizemos a ela, nunca acreditamos de todo na magia, e, vivendo a realidade, sentimos sua permanente e brutal frescura, sua falta de sentido. Ao chegar à porta do escritório do capitão - ele ocupava uma posição especial por causa de sua formação nos Estados Unidos e tinha uma sala só para si -, pensei que ia desmaiar. Ele mandou que eu entrasse, ordenou aos soldados que nos deixassem a sós e trancou a porta por dentro. Depois de me olhar por muito tempo exatamente como fazia da grade da cela, formulou, numa voz calma, compreensiva, humaníssima, doce mesmo, a seguinte pergunta: "Você está se sentindo injustiçado?".
Respondi prontamente e com uma firmeza que não correspondia ao meu estado mental: "Sim, senhor. Me sinto". E experimentei um grande alivio: como fora previsto, nenhuma agressão física me seria infligida. Ele andou um pouco de um lado para o outro com um ar grave mas não hostil, e disse com tristeza sincera: "Eu entendo". Seus olhos, que tinham se desviado de mim, voltaram a me fitar com a antiga frieza. "Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos?", continuou, e, mostrando uma discreta vaidade intelectual ao citar os nomes e as ideias de Freud e Marcuse (os nomes de Marx ou Lênin eram pronunciados banalmente, sem a mesma excitação), expôs toda a sofisticada interpretação que fazia do tropicalismo. Referiu-se a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra desestruturar aparecia, e, usando-a como palavra-chave, ele denunciava o insidioso poder subversivo do nosso trabalho. Dizia entender claramente que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo. 
Em suma, ele demonstrava estar muito mais inteirado das motivações reais para que Gil e eu estivéssemos presos do que o major Hilton, deixando implícito que sabia serem falsas as histórias de bandeira e hino e, portanto, irrelevante que eu tivesse provado inocência nisso.
Não deixava de haver uma estranha atmosfera de cumplicidade entre mim e ele: poderíamos rir do major e seus ingênuos princípios e seu sotaque mineiro. Poderíamos aprofundar uma discussão sobre o conceito marcusiano de mais repressão. Mas, sem adiantar nenhuma informação sobre o que os militares mais cultos planejavam fazer comigo, sem sequer pedir que eu me pronunciasse a respeito do que ele dissera, o capitão me dispensou com ar amável, destrancou a porta e chamou os guardas para me conduzirem de volta à cela.
De novo sozinho, pensei que essa conversa do capitão era uma versão refinada da conversa do sargento da PE. Ambos me chamaram por sentirem necessidade de me exibir conhecimento e esperteza. Ambos confirmaram uma tese que eu teria usado para valorizar politicamente meu trabalho perante meus opositores da esquerda. Ambos me deixaram sem esperanças. De fato, se o que motivava minha prisão não era nenhum ato particular mas uma captação difusa por parte dos militares de algo em mim que lhes era essencialmente hostil, nada podia ser feito para eu ser solto. Só me restava contar as baratas, cantar as canções benfazejas, esperar o que vinha primeiro na programação da rádio e fazer meus cálculos. Tudo começava a dizer que a liberação se aproximava.




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