Um dia ouvi uma movimentação do lado de fora da cela. Um soldado me informou tratar-se de uma "prontidão", pois havia suspeita de que os subversivos armavam um levante, mais precisamente, um atentado àquele quartel. Entrei em pânico: o que aconteceria se as coisas engrossassem lá fora, justamente agora que eu acreditava estar prestes a sair dali? Talvez nunca mais me devolvessem a liberdade, talvez me matassem. Mas a prontidão parece que não viu confirmada sua motivação e os soldados alarmistas mostraram-se decepcionados.
Havia um tenente de nome Oliveira que nunca perdia oportunidade de me humilhar ou agredir. Quando ele era o oficial de serviço, nenhum dos abrandamentos de minha pena evidentemente encorajados pelo major eram permitidos. E ele passou a exigir que eu fizesse faxinas intermináveis e desnecessárias na minha cela e no banheiro. Mas qualquer dos outros oficiais agora me permitia sair à tarde até a porta do complexo que incluía a ante-sala, o banheiro e a cela, sentar-me numa cadeira ao lado do portão e ficar olhando a estrada em frente ao quartel. Era uma visão desolada, mas eu sugava o espaço exterior com os olhos, crendo atrair assim o grande mundo de novo para mim. O gesto silencioso de aspirar a paisagem da liberdade tão miseravelmente representada aqui por um trecho de estrada na névoa quente e pardacenta de Deodoro - foi adotado como obrigação ritual e as canções que eu ouvia então eram computadas com valor redobrado." Hey Jude" dos Beatles era, de tudo o que se ouvia diariamente nas paradas de sucesso -"F comme Femme", canções de Roberto Carlos, um partido alto de Martinho da Vila -, o mais forte indício de aproximação da soltura. Se a frase melódica que se repete em tom triunfal ao fim dessa canção soasse de repente - por ter o rádio sido ligado ou seu dono mudado subitamente de emissora - no exato momento de uma aspiração profunda, com os olhos grudados na curva da estrada de terra vermelha tremeluzente de calor, isso era antecipação de minha saída luminosa e feliz. Um evento desses não poderia deixar margem para dúvidas, sendo passível apenas de uma relativização que dependia da freqüência dos sinais negativos que se lhe opusessem.
Desse modo foi que, na semana em que se preparava outra "prontidão" - desta vez sem sustos, pois se tratava de procedimento de rotina para o Carnaval -, cheguei à minúcia de prever que receberia a ordem de liberação no alto da colina, depois do meio-dia mas antes de a tarde cair, e no ato de ingerir um alimento. Esses dados foram deduzidos não apenas da leitura mecânica dos sinais já convencionados, mas do seu permanente enriquecimento conseguido com injeções de sentido feitas de última hora e, sobretudo, no modo como eu formulava as perguntas em cada caso. Eu me dizia: "Se eu lançar o jato de Baygon nessa barata e ela conseguir fugir sem morrer, haverá um atraso de três dias na ordem de liberação"; e também: "Se 'Hey Jude' for assoviada por um soldado do lado de fora da cela, isso dará um empurrão muito mais fraco em direção à liberdade do que se a mesma canção for cantada pelo soldado; se, porém, ela for executada no rádio antes do pôr-do-sol, o atraso se reduzirá em doze horas" etc. Eu não devia assoviar nenhuma das canções benfazejas - isso as enfraqueceria. Era bom que as cantasse - como uma oração -, mas, como augúrio, elas tinham muito mais valor se ouvidas casualmente. Interpretei as informações que obtive a respeito de hora e local do recebimento da notícia de soltura como um anúncio de que esta me encontraria em pleno almoço no "cassino" dos oficiais (onde passara a fazer as refeições desde que Dedé conseguira provar que eu tinha uma cicatriz no pulmão), às tantas horas (eu era exato) da tarde da quarta-feira seguinte - que eu mal lembrava que era a Quarta-Feira de Cinzas, recusando -me a me lamentar por não estar na Bahia para o Carnaval. Aquele - o de 69 - foi o Carnaval de "Atrás do trio elétrico", minha marcha-frevo que divulgou esses conjuntos musicais dos Carnavais baianos e desencadeou seu desenvolvimento, com conseqüências perceptíveis hoje, entre outras coisas, no sucesso da indústria de música para o Carnaval na Bahia, o fenômeno que veio a ser apelidado de "axé music". Mas naquelas tardes de mormaço do quartel eu não pensava que as ruas de Salvador estavam cheias e que minha marchinha dominava: apenas fazia minhas contas.
Por vezes, já depois de muito tempo em liberdade, me surpreendi, não sem um certo horror, me entregando à lânguida nostalgia de um lugar e um tempo remotos, que em poucos segundos reconheci tratar-se dos dias no PQD. Não sentia, nesses momentos, saudade do sofrimento em si, nem das excitações da premonição (que abomino com irritação), mas de um abandono morno e gostoso, alguma coisa escondida na percepção íntima do corpo. Atribuí esse sentimento ao fato de, no PQD, eu estar, a partir de um determinado momento,
apenas aguardando a liberação. Hoje considero um fator pelo menos igualmente determinante eu ter, àquela altura, depois de vários dias almoçando e jantando entre os oficiais, começado a engordar. O calor, a limitação do espaço e a dependência de ordens superiores faziam com que os dias no PQD se confundissem em minha memória com Santo Amaro e a infância. Mas a estranha felicidade que eu extraia dessas saudades - às vezes desencadeadas pela audição de uma música ouvida ali com freqüência mas esquecida - me leva a pensar em como ela aponta para a evidência de que gostamos de viver: acho que naqueles momentos rememorados eu sentia que estava ganhando peso, lentamente salvando minha vida, como na infância. Entendi por que tantas vezes somos nostálgicos de fases de nossa meninice que foram vividas na infelicidade: o som fanhoso de uma música sem interesse ouvida entre pessoas desprezíveis num crepúsculo sem cor pode, na lembrança, nos remeter a sensações corporais indizivelmente prazerosas. Com efeito, vivi a nostalgia de momentos na prisão dos pára-quedistas como as mulheres vivem a nostalgia da gravidez. Houve momentos, no quartel dos pára- quedistas, em que, sem ainda a alegria da iminência da libertação e já não mais com o pavor de ver iniciar-se um pesadelo, atingi um ponto zero em que eu, simplesmente, era. Esses lapsos de nostalgia daqueles momentos - que não significavam um desejo de voltar a eles - surgiam como portas abertas para o sentimento perene dentro de mim da doçura de existir.
Durante o almoço no "cassino" dos oficiais, na Quarta-Feira de Cinzas, eu esperava, com uma certeza inquietantemente tranqüila, a chegada dos emissários do major com a ordem de soltura. Eu não me dava autorização para crer. A premonição era tão ousadamente precisa que eu considerava ridícula a perspectiva de que se realizasse. Por outro lado, em regiões íntimas de minha mente, eu temia essa realização, pois previa uma indesejável prisão ao sistema supersticioso. Mas eu ansiava tanto pela liberação - e tinha me dedicado tanto aos meus rituais no sentido de consegui-la - que não era agora, porque me sentia quase solto - e, portanto, corajoso -, que ia sucumbir à tentação de me livrar dos poderes mágicos. Mesmo porque talvez uma eventual frustração da expectativa viesse a ser, em seguida tributada a esse desrespeito de última hora às leis do sistema. Assim, eu torcia pelo cumprimento da predição. E foi com um sentimento de frio assombro que a vi cumprir-se. Ainda estava mastigando uma das últimas garfadas do que ainda restava no prato, quando dois oficiais, vindos de fora do "cassino" se aproximaram da mesa que eu dividia com tenentes e capitães, e me ordenaram que levantasse e fosse arrumar minhas coisas para ir embora: "Você vai ser liberado". Os sinais tinham me afirmado que eu receberia tal ordem "enquanto estivesse comendo", e mesmo que eu "nem chegaria a terminar a refeição". Como nos filmes de aventura, o desenlace chegou no último momento, quando eu já temia que o almoço se encerrasse e ninguém viesse me chamar. Eu olhava para a porta pensando: "Não há mais tempo, é agora ou não é", quando vi entrarem aqueles oficiais. Tive vontade de rir. Na verdade, ri por dentro.
Com uma ponta de mal-estar pela experiência radical de solidão que uma tal situação propicia. Mas a alegria de me saber livre, a perspectiva de poder estar sozinho com Dedé, de rever meus pais e meus irmãos - e Gil - eram maiores do que as angústias da alma encurralada num sistema. Afinal, ser solto era meu objetivo prioritário, e eu quase tinha dito a mim mesmo que para atingi-lo pagaria qualquer preço. Eu estava solto, era o que importava - se tinha assumido um compromisso sobrenatural, depois eu veria os desdobramentos. Mas - eu estava solto? Deixei o resto de comida no prato e segui os oficiais.
Peguei minhas coisas na cela, ouvi cumprimentos de sargentos e soldados - e do major - e em breve estava de novo ao lado de Gil numa caminhonete que nos levou de Deodoro até a delegacia central da Polícia Federal, no centro da cidade. Ali permanecemos mais tempo do que no dia em que eles efetuaram nossa prisão. Pernoitamos lá, sem que nos dessem maiores informações sobre o que nos aconteceria. Uma alta autoridade - suponho que a autoridade máxima daquela organização no então estado da Guanabara - veio falar conosco no dia seguinte. Ele nos disse que recebera ordem de nos levar pessoalmente até Salvador, e que para tanto nos conduziria ao Aeroporto Santos Dumont, onde embarcaríamos num jatinho da força aérea. O fato de continuar preso tinha desvalorizado consideravelmente meu sistema. O que, se por um lado significava um alivio, por outro trazia de volta uma insegurança que naturalmente incluiria o medo de avião. Contudo, uma intolerável impaciência me tomava e esta era maior do que qualquer medo. Mas o jatinho apresentou problemas técnicos que impossibilitaram a decolagem e nós tivemos que voltar para a Polícia Federal.
Horas depois fomos outra vez chamados e, de novo, o chefe nos conduziu ao aeroporto, onde embarcamos num avião da FAB, em quase tudo igual a um avião de vôo comercial, cheio de passageiros à paisana, inclusive senhoras e crianças. Além do chefe da Polícia Federal, outro policial embarcou (ou dois outros?) conosco. Como sempre, Gil separado de mim, cada um de nós sentado ao lado de um deles. (Em minha lembrança. estive algemado ao federal que me guardava todo o tempo cio vôo do Rio a Salvador. Essa indefinição de nossa situação - estávamos soltos ou não estávamos? -, a indecisão quanto à viagem - esperamos um dia, embarcamos num jatinho que não partiu, agora voávamos entre familiares de militares - e a ignorância do que nos esperava em Salvador (embora nos dissessem que estávamos a caminho da liberação me deixaram extenuado e eu me sentia, no avião que varava nuvens acinzentadas, num limbo entre o medo e a dor, sem crer que pudesse estar realizando nenhum movimento: preso àquele homem ao meu lado, vendo aquela eterna cor fria pela janela arredondada nos cantos, eu tinha medo de morrer, acreditava já estar morto, sonhava com a esperança de alegria que conhecera havia um dia apenas.
Percebi que essa alegria não era uma ilusão e que ela podia voltar quando o avião começou a preparar-se para a aterrissagem e vi Salvador surgir dentre as nuvens. Quando o avião pousou tive medo de não ter forças para vivê-la. Minhas pernas tremiam, o zumbido no ouvido - que me acompanha desde a adolescência - parecia impor-se sobre todos os sons do aeroporto. Oficiais da força aérea que estavam à espera do avião falavam com o chefe da Polícia Federal que nos trouxera e percebi que discutiam. Os militares da aeronáutica nos levaram pelo braço, sob protestos do policial. Fomos atirados numa cela do quartel da força
aérea de Salvador, onde o comportamento dos sargentos e tenentes estava muito mais perto da brutalidade arrogante da PE do que da relativa cortesia dos pára-quedistas.
Desta vez, no entanto, nos puseram juntos, Gil e eu. Tentamos conversar - e como nos achávamos estranhos! -, mas os gritos dos militares nos faziam calar. Esse golpe me pegara no fim das minhas forças. O dedo mínimo da minha mão direita ficou totalmente dormente - essa sensação de anestesia perduraria por meses e só se desfaria aos poucos. Passamos algumas horas ali. A aeronáutica, em Salvador, tinha recebido a ordem de nos prender em dezembro (para o caso de nós termos fugido de São Paulo) e nunca tinha vindo uma contraordem, assim, eles estavam recomeçando tudo da estaca zero. Nem sequer sabiam que estivéramos todo esse tempo presos. Essa tinha sido a causa da discussão entre o policial e os aviadores, que não pareciam dispostos a perder essa oportunidade de nos ter com eles. Quando ficou esclarecido que iríamos embora, muitos deles, exibindo sadismo, disseram lamentar que não ficássemos, pois tinham "ótimos planos" para nós.
O chefe da Polícia Federal carioca nos levou para a delegacia central da organização em Salvador e nos entregou à responsabilidade de um coronel Luís Artur, chefe da PF na Bahia. Este, depois que o seu colega saiu, nos fez algumas perguntas sobre a passeata dos 100 mil, mostrando-nos fotografias de jornais em que aparecíamos entre os manifestantes, e nos confessou seu desconforto com o fato de nos ter recebido diretamente das mãos da maior autoridade da PF do Rio, que viera pessoalmente pois eles não queriam um só papel oficializando nossa situação.
Perguntou-nos se tínhamos para onde ir em Salvador. Dissemos que sim, e ele nos disse que tomássemos um táxi e fôssemos embora. Antes que saíssemos, pediu que assinássemos num livro grande, informando-nos que estávamos terminantemente proibidos de deixar a Cidade do Salvador e que tínhamos de nos apresentar a ele diariamente, caso contrário voltaríamos para o xadrez. Confinamento era a palavra que ele usava para diferençar o regime de prisão a que passávamos a nos submeter daquele ao qual estivéramos submetidos até então. Era noite. Ao sair dali com Gil, me senti perdido. Não sabia se não tinha forças para andar, se não estava sendo capaz de reconhecer a cidade, se devia me considerar solto ou não, se ainda saberia viver. Gil quis ir comigo até minha casa. Suponho que tivesse percebido meu estado e quisesse continuar cuidando de mim. Mas também é provável que tenha tido necessidade de adiar sua própria chegada à casa da tia que o criou e mesmo de estar em contato com minha família, a que ele sempre atribuiu uma espécie de valor espiritual.
Ao chegarmos em casa de meus pais, na rua Prado Valadares, no fim de linha de Nazaré, encontramos apenas Nicinha, minha irmã mais velha, que tinha ficado tomando conta da casa enquanto todos os outros tinham ido ao aeroporto nos esperar, pois tinham sido notificados por autoridades do Rio sobre nossa chegada. Gil sentou-se numa cadeira e ficou muito quieto. Lembro que ele me parecia um menino de uns nove anos, com um meio sorriso parado nos lábios. Eu me sentia absolutamente estranho a mim mesmo. Sabia que Nicinha era Nicinha mas não a reconhecia propriamente. Tampouco reconhecia a casa. As fotografias nas paredes - de meus irmãos, minhas, de meus pais - me pareciam não apenas de pessoas desconhecidas mas de coisas desconhecidas. Ainda assim eu sabia que Bethânia era Bethânia e Rodrigo, Rodrigo. Todos os modernos elogios da esquizofrenia que li depois - sobretudo O anti-Édipo de Guattari e Deleuze - me enojaram por causa do horror dessas horas de loucura. Aqui eu tinha a mesma desesperada saudade de mim, do meu mundo, da vida, que experimentara na viagem de auasca só que não podia sequer me dizer tratar-se do efeito de uma droga e que iria passar. Eu corria de um lado para o outro da casa, sem que Nicinha pudesse me conter. Na verdade, eu fugia de um canto onde tudo estava na iminência de se mostrar terrível e sempre deparava-me com outro em iguais circunstâncias. Lembro de ver uma lágrima no rosto infantil de Gil, mas eu não podia sequer parar para tentar retê-lo em meu coração. Em suma, a liberdade chegara, mas eu já não estava ali: tinha esperado demais. Por um momento tive certeza de que tudo tinha acabado, que eu não voltaria nunca do inferno onde tinha caído. Foi então que ouvi as vozes e os passos na escada e vi surgirem, em minha frente, meu pai e minha mãe. Ele me olhou como se entendesse exatamente o que eu estava sentindo - como ninguém mais poderia olhar - e me disse usando um palavrão como nunca o fizera na vista de minha mãe, e numa voz firme que me trouxe de volta à casa, ao amor, aos problemas, à vida: "Não me diga que você deixou esses filhos da puta lhe deixarem nervoso!".
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