sábado, 7 de setembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Talvez, no entanto, essas demoras se devessem ao sadismo puro e simples dos militares daquele quartel. (Sem dúvida eles se vangloriavam disso: lembro do misto de orgulho e inveja com que se referiam aos mais temidos entre eles, os "catarinas", como são conhecidos os soldados altos e louros, descendentes de alemães, provenientes dos estados do Sul do país, sobretudo de Santa Catarina, de onde lhes advinha o apelido, famosos por sua intransigência e pelo seu fanatismo). Fosse como fosse, os gritos me acordavam. Penso que os mesmos sons, se ouvidos na solitária, não teriam invadido meu sono de chumbo (alguns rapazes no xadrez não despertavam durante essas macabras sessões noturnas).
Hoje, no entanto, impressiona-me mais o fato de que eu voltasse a adormecer com facilidade, uma vez silenciados os urros. Sem dúvida, aqui na Vila Militar eu estava menos letárgico do que na Barão de Mesquita, mas se os chamados para o réveillon não me tinham despertado ali como os gritos de dor o faziam agora, talvez isso se devesse mais à natureza dos sons do que à sua intensidade: os gritos dos torturados produziam medo. Os que acordávamos, primeiro calávamo-nos assustados e em seguida trocávamos cochichos indignados, para depois voltarmos a dormir sem uma gota de doçura na alma. Havia, de todo modo, um pouco de vida durante a noite. Um sinal intermitente de vida horrenda, que me fazia despertar no dia seguinte como quem estivesse voltando de um pesadelo para dentro de outro pesadelo.
Um dia pensei que ia morrer. Um soldadinho tinha vindo até a grade do xadrez e ficado olhando para mim com uma expressão de medo e pena. Parecia nitidamente saber de algo horrível que estava prestes a me acontecer, sobre o que ele não me podia dizer nada. Em pouco tempo ele próprio obedecia a uma ordem de abrir a porta gradeada para que eu seguisse um oficial e um sargento que me levaram para o largo alpendre por onde eu entrara no dia da chegada ao quartel. O oficial mandou que eu andasse na frente e não olhasse para trás. O grupo formado pelo oficial e pelo sargento, mais um soldado que apontava sua metralhadora para mim, me conduziu para fora do edifício, e, tendo recebido ordem de virar à esquerda, logo me vi ao ar livre, andando ao longo de uma estrada ladeada por algumas edificações menores à minha direita, também pertencentes ao quartel. Pareciam casinhas brancas, quase todas de portas fechadas. Eles falaram muito pouco, e não lembro de nada do que disseram. Mas ainda posso experimentar a sensação que me causava o tom solene que todos eles davam ao que quer que fosse acontecer. Era evidente que não me levavam para um interrogatório. Era mesmo indubitavelmente perceptível que iam fazer alguma coisa física comigo. Eu podia ler no ritmo dos atos e das falas de todos, no próprio desenrolar do caminho à minha frente, que eles iam fazer algo drástico com meu corpo. Eu sabia que não se tratava de sexo, nem tortura, nem mesmo uma surra: era evidentemente uma coisa simples e limpa – um gesto só - a que eles davam um ar pomposo mas não denso o bastante para que eu pensasse que iam me matar. No entanto, foi exatamente isso que pensei, quando, no trecho final da alameda, onde já não havia senão uma porta aberta numa última casinha, o oficial ordenou que eu parasse e não olhasse para trás. O azul do céu estava embaçado por aquela névoa parda que faz com que, no verão do Rio, o ar não pareça bom nem para respirar nem para ver mas que por isso mesmo amamos, pois assim reconhecemos o verão do Rio. Parei em obediência à ordem, e senti como que um soco gelado dentro de minha barriga, no centro do meu corpo, e de repente minhas pernas não existiam. Não caí, contudo. Esperei um tiro. Mantinha-me de pé com uma firmeza digna que não correspondia ao desfalecimento que só eu sabia estar sentindo. O oficial mandou que eu virasse à direita e entrasse na casinha cuja porta estava aberta. Era a barbearia do quartel. O barbeiro já estava com a tesoura e a máquina nas mãos para derrubar minha famosa cabeleira. A indiferença que demonstrei - e que decepcionou os meus algozes - se devia ao fato de a imensa alegria que senti quando vi que não ia morrer, ter sido empanada pela constatação do ridículo deprimente de tudo aquilo. Os oficiais perderam o tom solene e não encontraram o tom cômico ou ríspido que erraticamente procuravam. O medo que senti e a felicidade momentânea a que ele deu lugar tinham sido igualmente controlados por dispositivos de emergência que, sem que eu tivesse poder consciente sobre eles, eram acionados em mim. Além disso, por significativa que minha cabeleira fosse - nós, os tropicalistas, fomos pioneiros do cabelo selvagemente grande no Brasil, um passo adiante do
modelo Beatles da jovem Guarda de Roberto Carlos, e estávamos em janeiro de 69 e eu não cortava o cabelo desde 67 -, na prisão eu nem me lembrava que tinha cabelo comprido (nem mesmo estava certo de ter uma carreira de cantor popular). Assim, a expectativa dos militares, que os tinha levado a assumir a atitude pomposa da caminhada, se devia a algo que, para mim, não estava em cogitação: o corte do cabelo era, para eles mas não para mim, um assassinato simbólico. Se eu tivesse pensado em cabelo, teria imediatamente adivinhado o que ia se passar, e não teria tido medo de que me matassem. Num nível muito alto e sutil, tinha se dado um diálogo totalmente equivoco entre mim e aqueles militares imbecis.
O barbeiro (em minha memória ele não estava fardado) percebeu logo que não havia espaço para o humor, mas demonstrou muito maior firmeza e independência do que os oficiais. Senti uma ponta de carinho por ele - afinal ele significava a vida para mim naquele momento -, e lembro que trocamos algumas palavras com bastante calma. Não sei se tive coragem de pedir-lhe que guardasse meus cachos que caíam pelo chão. mas o fato é que Dedé até hoje afirma que no primeiro dia de visita depois desse episódio, Perfeito conseguiu
fazer chegar a suas mãos um embrulho com meus cabelos. Ela e eu sabíamos que, na tradição religiosa afro -baiana, somos aconselhados a reunir todo o cabelo que cortam de nós para jogar no mar. Dedé tem disso tudo uma lembrança muito vivida, pois quando, impedida de me ver, recebeu o embrulho com os meus cachos, foi sua vez de julgar que tivessem me matado. Também é inesquecível para ela o momento em que, longe de mim, jogava meu cabelo no mar. Mas eu mesmo não tenho noção de como essa transação se deu. Só lembro vagamente de que se falou nisso na barbearia, ou na cela, não sei em que grau de
clareza, e estou certo de que, enquanto estava na Vila Militar, não tive conhecimento dos resultados. O que nunca esqueci foi o rosto do soldadinho - aquele que certamente sabia o que ia acontecer - chorando silenciosamente ao me ver voltar ostentando um corte de recruta.
A única outra vez que saí daquela cela antes de deixar para sempre a PE da Vila Militar (ali nem se falava em banho de sol), pensei que finalmente se tratava do interrogatório. Na verdade, embora aquilo não fosse ser o interrogatório, foi, de todo modo, um interrogatório. Creio que o oficial de dia tinha saído, e o sargento que o substituía resolveu vir me chamar. Eu nem mesmo sabia qual a sua patente: quando o vi aproximar-se da grade e ordenar que a abrissem para eu sair, julguei que ele fosse um oficial. Ele me fez atravessar o pequeno pátio sob pilotis e me introduziu numa sala mobiliada como um escritório, com uma mesa de trabalho cheia de papéis, uma cadeira de chefe encosta da à parede por trás da mesa e, de frente para a outra,uma cadeira comum em que ele me ordenou que sentasse.
Depois de sentar-se ele próprio na cadeira de chefe, começou a encarar-me com ar de ira e desprezo e, por fim, começou a falar. Era um homem atarracado e corpulento, vermelho, alourado, e vi imediatamente que se tratava de um completo boçal. Ele fez algumas perguntas sobre nossa participação em passeatas de estudantes, num tom de repreensão que logo deixou claro que aquilo não era para valer. Essas primeiras perguntas não esperavam respostas: o sargento estava simplesmente ralhando comigo. Pelos modos de diretor escolar
que ele assumiu via-se que seu principal interesse ali era brincar de autoridade. Ele próprio revelou que era um sargento e que tomara a iniciativa de me interrogar porque não admitia certas coisas. Por exemplo: eu era amigo daquela corja que montou a peça Roda viva? Respondi que conhecia mais ou menos muitos dos envolvidos. Ele queria saber se eu achava aquilo certo. "Como assim, 'certo'?" "Você acha que a gente pode admitir aquela putaria com a Virgem Maria?"
Fui tomado de certa indignação, mas consegui escondê-la completamente. É que suas palavras me fizeram lembrar do dia :em que cheguei e vi um terço ser arrebatado aos palavrões das mãos de garotos que queriam rezar, e considerei igualmente desrespeitoso que aquele idiota trouxesse a palavra puta ria para perto do nome da Virgem: pareceu-me que ele não acreditava e, em seu intimo, nem mesmo respeitava as representações religiosas, e, no entanto, não se pejava de agredir os que, amando muito mais a simbologia - e os princípios - do cristianismo, não se submetiam à hipocrisia que ele guardava como um cão. Ele próprio se encarregou de responder em meu lugar, confirmando minhas suspeitas: "Botar Nossa Senhora de bobs na cabeça!... Eu não acredito em porra nenhuma de religião, mas, um negócio desse não pode. Vocês acham que as famílias vão ao teatro pra ver isso?". Algo de minha indignação precisou aparecer. Respondi-lhe que eu acreditava em Nossa Senhora, mas não tinha achado aquela cena ofensiva. Dizer que eu acreditava não era de todo mentira: como já disse, vivia um enfrentamento de minha religiosidade, a qual teve raízes marianas. De qualquer modo, me sentia ali representando os garotos católicos que estavam presos no mesmo xadrez que eu e que, justamente por crer no cristo e na Virgem, não aceitariam a intolerância do militar para com o espetáculo teatral.
Roda viva, a primeira peça que meu colega compositor Chico Buarque escreveu, tratava da ascensão de um astro da música popular e da inautenticidade e ridículo que isso envolve. Era o que antigamente se chamaria uma "obra de juventude", no sentido de que era um tanto ingênua. Mas não deixava de ser interessante que tivesse sido escrita por um excelente compositor que nada tinha de inautêntico na gênese ou no desenvolvimento de sua carreira ainda iniciante. O que a transformara nem acontecimento de grande impacto, porém, fora a direção que José Celso Martinez Corrêa lhe imprimira. Sendo seu primeiro trabalho depois da virada que representou sua montagem de O rei da vela de Oswald de Andrade, Roda viva levava às ultimas conseqüências o estilo violento e anárquico inaugurado por Zé Celso. Mais identificado com o artista pop que o texto criticava do que com a crítica que o texto lhe fazia, mas, ao mesmo tempo, levando essa crítica aos seus extremos, ele fazia da peça de Chico Buarque ela própria um ritual pop e uma oportunidade de revelar os conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro - e do Zeitgeist. Essas revelações não poupavam nada nem ninguém, fossem os personagens da peça ou os espectadores reais que assistissem a ela. O jovem ídolo de massas retratado na peça tinha uma mulher mais honesta do que seus fãs e seu empresário, e essa mulher, em meio à enxurrada de imagens cambiantes que se sucediam no palco (e que de nenhum modo obedeciam às indicações do texto), transfigurava-se brevemente numa espécie de madona, sem, contudo, tirar os rolinhos de cabelo de dona de casa. Essa era a cena que o sargento tinha elegido para justificar o ódio que os militares nutriam por Roda viva - e que os tinha levado, em São Paulo, a invadir uma apresentação e agredir fisicamente os atores e parte do público, tirando assim a peça de cartaz. Isso não tinha sido uma ação oficial. Na verdade o exército nunca admitiu - e eu próprio, que atribuíra o atentado ao grupo terrorista de direita Comando de Caça aos Comunistas, não imaginava - que militares estivessem envolvidos nesse episódio. Mas o sargento tinha me chamado ali atendendo a um desejo que pareceu realizar-se melhor quando ele resolveu me confidenciar: Eu estava lá. Eu fui um dos que desceram a porrada naquele bando de filhos da puta.
Minha indignação teve que submergir. Roda viva não explicitava considerações políticas. Seu escândalo nascia da selvageria de sua linguagem cênica. Numa cena que se dava em meio à platéia, um coro de atores representava a turba fanática que queria tocar no seu ídolo. Zé Celso levava a ação dos fãs até o canibalismo e, como que de dentro do corpo do cantor que tinha desaparecido sob a multidão, surgia um fígado de boi que um dos admiradores erguia na mão crispada, não raro respingando de sangue verdadeiro os espectadores que estivessem sentados nas poltronas do meio, junto ao corredor. Estilizações de imagens reconhecíveis da publicidade ou do cotidiano, da TV ou da religião, se seguiam de cargas de presença física que eram sentidas como a ameaça de uma nudez corporal que não quer ser planejadamente erótica nem decorativa, mas real, palpável, simplesmente carnal. Em suma, era tudo com que nosso trabalho, meu e de Gil - dos tropicalistas -, se identificava. Aquele sargento estava me dizendo que nossa prisão se devia exatamente às mesmas razões (ou desrazões) que o levaram a espancar o elenco de Roda viva - e que ele queria que eu soubesse que ele sabia disso. Depois eu me orgulharia de que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo. Afinal a conversa do sargento revelava que - como eu tantas vezes tinha tentado convencer nossos opositores nós, os tropicalistas, éramos os mais profundos inimigos do regime. Mas, ali na salinha da PE, não tive forças para me orgulhar: senti medo. Medo e um enorme cansaço. Eu descobrira o sentido da nossa prisão ao mesmo tempo que ficara sabendo, num diálogo tão exaustivo quanto um interrogatório, que dificilmente haveria interrogatório, pois estávamos presos sem que ninguém soubesse ainda por quê, nem para quê. Teria que voltar para a cela sem nenhum esboço de definição do meu futuro.
Os dias que se seguiram foram desoladores. O xadrez, que estivera tão cheio que, por vezes, não podíamos estar todos deitados ao mesmo tempo com o mínimo de conforto, foi se esvaziando pouco a pouco. Os garotos foram sendo libertados e eu terminei ficando sozinho, ao menos por um dia e uma noite, mas creio que mais, e de novo achando que o tempo não existia. O translado do quartel da PE para o quartel dos Pára-Quedistas do Exército foi breve e sem incidentes. A área do PQD - abreviatura com que o batalhão de pára-quedistas é conhecido entre os soldados -, também na Vila Militar, se encontra a não muitos quilômetros da área da PE, e fomos transportados num jipe ou caminhonete do exército, podendo ver o caminho e sentir o vento quente pela janela. A única novidade surpreendente foi que, ao chegar no quartel que me abrigaria, fui separado de Gil, que seguiu na viatura. Depois fiquei sabendo que ele tinha sido levado para um outro quartel do PQD, mas quando nos separaram senti medo de não vê-lo nunca mais.
Lembro do portão dando para uma subida com edificações brancas de diversos tamanhos, a maior delas no topo dia ladeira. A cela que me estava reservada ficava embaixo, na entrada, junto à guarita. Eu iria ficar sozinho nela, mas não se pode chamá-la de solitária, pois, diferentemente daquela da Barão de Mesquita, essa aqui tinha uma cama com lençóis e travesseiro enfronhado, e o banheiro era um cômodo independente, com vaso e chuveiro a uma razoável distância um do outro, além de uma pia limpa. Acho também que havia sabonete. Uma porta de grades de ferro separava essa esquálida suíte, quente como uma fornalha, duma ante -sala que dava para a entrada do quartel e estava sempre guardada por um soldado. No que dizia respeito à minha guarda, esse soldado obedecia a um sargento que sempre estava por perto, esse sargento obedecia ao oficial de dia (em geral um tenente) que, por sua vez, obedecia ao major comandante do quartel. Não deixou de representar um alívio considerável sair da Polícia do Exército e cair no PQD. Esta tropa, tal como a outra, era considerada "de elite", mas por razões diferentes. E não se pode imaginar uma rivalidade maior do que a que havia entre as duas. Embora ouvíssemos os gritos do que se dizia serem pequenos infratores civis nas noites do quartel da PE, esta, oficialmente, existia apenas para reprimir militares. Os pára-quedistas estavam, portanto, sujeitos a prisões e punições efetuadas por aquela superpolícia. Eles, por sua vez, eram elite pela especialidade a que se dedicavam: orgulhosos dos seus exaustivos treinamentos e dos seus aventurosos saltos livres feitos a alguns milhares de metros de altura de aviões da força aérea, esses oficiais e soldados do exército se gabavam até mesmo de sua beleza física (muitos me diziam, veladamente, que esse requisito era extra-oficialmente considerado quando se fazia a seleção dos recrutas), e abominavam que estivessem sujeitos à brutalidade dos soldados da PE. Temiam e odiavam sobretudo os "catarinas".
Os primeiros PQD que falaram comigo, fizeram questão de me assegurar que entre eles eu não seria tratado como entre os PEs. Eles me faziam perguntas que revelavam o desejo de que eu falasse mal dos meus antigos hospedeiros. E queriam ressaltar o contraste. Isso me deu esperança de ver resolvida minha situação. Mas justamente a esperança pode nos levar a uma situação mental mais perigosa: esse jogo do péssimo para o menos ruim, sem a perspectiva de solução, revela-se doloroso. De fato, embora eu passasse a ter uma vida fisicamente mais digna, muitos dias se passaram sem que ninguém viesse me falar de interrogatório - muito menos de libertação. O major Hilton, comandante do quartel, veio à noite até a cela para me ver e falar comigo. Sua visita tinha sido anunciada repetidas vezes pelos soldados, sargentos e oficiais que se aproximaram das grades durante o dia, e eu esperava muito dela. Mas o major limitou sua fala à exposição das regras do quartel, com ênfase na desaprovação à imagem amolecida que porventura tivessem me dado dos pára-quedistas. Em suma, ele queria dizer que, apesar de educados, eles eram durões e que eu não tentasse nenhuma gracinha. E saiu sem me fazer uma só pergunta. Eu sentia que só estava sendo relativamente bem tratado para poder aguentar a prisão, que sem dúvida duraria para sempre. Isso me fez presa das superstições que, desde a adolescência, vinham sendo vividas como um vicio mental quase inocente, e que tinham se desenvolvido de forma assombrosa nas duas primeiras semanas na PE. Aqui, com um pouco menos de sono, com várias antenas ligadas no futuro próximo em busca do anúncio da liberdade, os rituais internos se multiplicaram e aprofundaram, levando-me a adivinhar com inexplicável precisão eventos futuros, e a crer que podia atuar antecipadamente para provocá-los, evita-los ou modificá-los.
Eu tinha desenvolvido um cada vez mais complicado sistema de sinais e de gestos mágicos. E uma monstruosa sensibilidade para interpretar os sinais, aliada a uma não menos monstruosa imaginação para criar os gestos. Como naquele dia em que, na PE, me levaram para cortar o cabelo, e eu, a partir de detalhes mínimos, pude me aproximar da definição do que ia acontecer (chegando a antecipar a adjetivação do ato iminente sem alcançar- lhe o substantivo), eu agora percebia que um esquema de números, imagens e perguntas era capaz de me dar acesso ao conhecimento do que estava por vir, se lido com perícia. Uma bem maior excitação mental – conseqüência da melhoria das condições materiais - contribuía para que o sistema se sofisticasse. E, enquanto na Barão de Mesquita eu apenas temia que "Súplica" e baratas fossem de mau agouro, aqui no PQD comecei a distribuir significados a todas as canções que eu cantasse ou que ouvisse. E a efetuar contas matemáticas com o número de vezes que via baratas ou que uma canção era ouvida ou cantada. Primeiro isso se deu com um repertório parco: eu cantava ou assoviava alguma canção; um soldado o fazia; às vezes um sargento parava ali perto com um rádio. Quando eu próprio consegui um radinho de pilha (que um sargento me emprestou e que eu escondia sob o travesseiro toda vez que me avisavam da aproximação do oficial de dia), várias canções - cujo valor divinatório eu ia testando à medida que elas se repetiam - entraram no jogo e cheguei, no fim, a adivinhar com absoluta exatidão o dia, a hora e o Local onde me encontraria para receber a notícia da liberação. Os banhos de sol eram religiosamente observados pelos pára-quedistas. Lembro de um soldadinho que, seguindo-me com o cano de sua metralhadora a poucos centímetros da minha cintura, repetia pedidos de desculpa, dizendo, numa voz sincera e comovida, que não era ele que estava ali, que, por ele, jamais nada daquilo aconteceria comigo. Um dia, um oficial aproximou-se e, mandando o soldado parar, começou uma conversa amena. Ele gostava de música popular. Lembrou vários sucessos de Francisco Alves, o grande ídolo brasileiro dos anos 30 aos 50. Entre esses sucessos, um samba-canção o tocava especialmente: "Fracasso", e ele me perguntava se eu o sabia cantar. Eu sabia e, não sem certo prazer, atendi ao seu pedido para que o fizesse. O samba, com sua melodia triste em tom menor, me agradava e, à medida que o ia cantando, tal como ocorreu com "Súplica" na Barão de Mesquita, eu ia interpretando as palavras da letra como referentes à minha situação. Hoje vejo com um misto de humor e nojo aquela cena no grande espaço aberto do quartel do PQD. Sob um sol brutal, com um cano de metralhadora às costas, eu cantava suavemente para o oficial de dia: Porque só me ficou da história triste desse amor/ A história dolorosa de um fracasso"... A palavra fracasso é ouvida sete vezes ao longo da letra, culminando com a repetição insistente nas notas mais altas no final da canção: "Fracasso, fracasso, fracasso, fracasso afinal/ Por te querer tanto bem/ E me fazer tanto mal". Tal palavra – repetida por mim em tais condições, e ainda por cima
vulnerabilizado como eu ficava pela beleza da música e a carga de emoções que ela despertava por seu valor histórico – tornava-se uma conjuração maligna em minha imaginação. E às vezes, sozinho na cela, fazia esforço para afastar essa canção de minha cabeça, na qual ela sempre recomeçava a se cantar por si mesma. Passou a exercer papel importante no sistema que eu desenvolvia. Juntamente com "Súplica", "Onde o céu azul é mais azul" (também um antigo sucesso de Francisco Alves, um "samba- exaltação", gênero nascido no Estado Novo, louvando as virtudes do nosso país, que, tal como "Súplica", eu estivera cantando na noite anterior à detenção) e "Assum preto" (o lúgubre baião de Luiz Gonzaga que fala do caráter contraditório da liberdade desse pássaro que, tendo sido cegado para cantar melhor, embora fora da gaiola, está mais preso do que os que vivem em cativeiro), "Fracasso" representava uma senha para o inferno. Contudo, estou certo de, depois disso, ter tido que cantá-la pelo menos mais uma vez para aquele tenente.
A comida era apenas um pouco melhor do que a da PE. O que não é dizer muito, tão intolerável esta era. Mas ter a cama, o banheiro e nenhum mau trato adicional fazia com que eu começasse a sentir de novo o gosto de ter - ser - um corpo, e, logo nas primeiras noites, tive esboços de sonhos eróticos. Estava demasiadamente assustado para não acordar em sobressalto antes de me permitir uma ejaculação. À hora do banho - na água que caía muito quente por causa do calor eu me surpreendia com assombrosas ereções espontâneas, sentindo-m e à beira de um orgasmo. Depois de eu já estar resignado a ter libido zero para sempre, esse prodígio me dava uma alegria maior do que eu estava preparado para suportar. Mas, antes que eu me decidisse a ir até o fim, a masturbação tornou-se o tabu por excelência no meu sistema interno de controle do devir. De fato, nada pode tão facilmente exercer tal função num sistema desses além da masturbação. Ato solitário acusado primeiro de profanar o templo do corpo, depois, de dissipar suas energias, por fim, de retardar a maturidade sexual, a masturbação logo é identificada com um afrouxamento da concentração necessária para o eu enfrentar as forças que se lhe opõem. É um contato direto com a realidade do sexo - da vida - que, estando (literalmente) em nossas mãos fazer ou deixar de fazer, mostra-se como uma indulgência empobrecedora das possibilidades, uma antecipação da frustração. Não é tanto que, num momento desesperado como aquele meu na prisão, sucumbamos à ideia, aprendida na infância, da masturbação como pecado. Eu diria antes que nesses momentos entendemos melhor por que uma idéia tão especial de pecado está vinculada à masturbação. Assim, no meu esquema, o pior sinal era ver uma barata - o pior gesto (que não fiz até sair dali), masturbar-me. Por outro lado, matar uma barata (ato em princípio quase impossível) significava que eu avançaria na direção da liberdade com sofrimento, enquanto a audição de certas canções assegurava surpreendentes boas novas.




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