segunda-feira, 11 de março de 2019

PAUTA MUSICAL: A POLÊMICA NOEL ROSA X WILSON BATISTA - PARTE 01

Por Laura Macedo



Rodrigo Alzuguir

Higiene poética do samba

“Eu tenho orgulho em ser tão vadio!” – cantava Sylvio Caldas, acompanhado pelo conjunto Diabos do Céu de Pixinguinha, no lado B de uma bolacha de 78 rotações por minuto lançada pela Victor em outubro de 1933. O samba, chamado “Lenço no pescoço” e assinado por um obscuro Mário Santoro, era um delicioso autorretrato de um malandro carioca – do figurino (chapéu do lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso) à ideologia (“eu vejo quem trabalha andar no miserê”, “eu sou vadio porque tive inclinação”).

Apesar de enquadrados aqui e ali pela Lei da Vadiagem, os malandros – espécie de herdeiros da capoeiragem de fins do século XIX remodelados pelos filmes de gângster norte-americanos das décadas de 1920 e 30 – ainda davam seus rabos-de-arraia com considerável liberdade pelo Rio de Janeiro dos anos 1930. “Lenço no pescoço” não era o primeiro samba a retratá-los, nem seria o último. Também não era o mais virulento – ouça “Amor de malandro” (Francisco Alves, Freire Júnior e Ismael Silva, 1929) ou “Mulher de malandro” (Heitor dos Prazeres, 1931), e me diga. Mas foi pego para cristo pela Confederação Brasileira de Radiodifusão – criada por empresários para defender os interesses das emissoras de rádio –, que designara uma comissão de censura com poderes para vetar qualquer música “em nome da moralidade e do respeito às autoridades constituídas”. No dia 10 de outubro de 1933, fez-se a primeira vítima: o samba de Santoro, que teve sua veiculação proibida.


Rótulo do disco com “Lenço no pescoço” ainda creditado a Mário Santoro.

Dois meses antes, o compositor Orestes Barbosa chamara a atenção para o samba, em sua coluna do jornal A Hora:

“Causou má impressão o novo samba de Sylvio Caldas. O malandro, hoje, não usa mais lenço no pescoço, como no tempo dos nagoas e guaiamus. Além disso, no momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Sylvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão.”

(Por risível ironia do destino, o segundo veto higienizador da comissão de censura cairia sobre “No Morro de São Carlos” – samba do próprio Orestes em parceria com Hervê Cordovil.)

Muito embora por outros motivos, quem também estrilou contra “Lenço no pescoço” foi o compositor Noel Rosa – que na época já era um cartaz.



Dancing Apollo

Em 1929, o fenômeno Noel Rosa conquistara a cidade a bordo de “Com que roupa?”. Tinha 18 anos e o samba era tão somente sua terceira gravação como cantor e compositor (o que me leva a pensar que cada época tem a revelação teen que merece). Quatro anos depois, quando Sylvio Caldas teve a audácia de vestir o “Lenço no pescoço” – que revelou-se, na verdade, ser de autoria do novato Wilson Baptista –, Noel já não era uma forte promessa, mas uma constatação.

Mesmo frequentando patotas diferentes, Wilson e Noel já se conheciam vagamente, do teatro musicado da Praça Tiradentes e das noites boêmias da Lapa. Seus caminhos, no entanto, se cruzariam com mais intensidade a partir daquele 1933. Um dos primeiros sucessinhos de Wilson, “Desacato”, foi gravado em julho e, emblematicamente, como lado B do “Feitio de oração” de Noel. Talvez nesse momento Noel tenha reparado que aquele mulatinho miúdo e magrela, emigrado de Campos dos Goytacazes, já estava começando a mostrar serviço. Não esperava é que o verdadeiro desacato de Wilson viesse logo em seguida: conquistar o coração de uma dançarina do Dancing Apollo (situado à Rua Mem de Sá, 34, na Lapa) que Noel também andara assediando.

Capa da partitura de “Desacato” (Wilson Baptista e Murillo Caldas), que foi lançado em disco como lado B de “Feitio de Oração” (Vadico e Noel Rosa), em 1933. Era a primeira vez que Wilson e Noel “dividiam” um disco.

Na tentativa de baixar a crista de Wilson, seu rival nos carinhos da morena do Apollo, Noel compôs o samba “Rapaz folgado”, em que detonava, verso a verso, a empáfia de “Lenço no pescoço”: “E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora essa navalha / Que te atrapalha”. Sem saber, procurava sarna para se coçar: era tudo o que o cavador Wilson Baptista podia querer.



Desafio e amizade

Quando ouviu “Rapaz folgado”, cantado por Noel no Programa Casé e ecoado por colegas nas rodas de compositores, Wilson deu o troco – por gaiatice e senso de oportunidade – com “Mocinho da Vila”, em que aconselhava Noel a cuidar de seu microfone e deixar quem era malandro em paz. No breque final do samba, orgulhava-se: “modéstia à parte, eu sou rapaz” (folgado?). Em “Feitiço da Vila”, lírica parceria com Vadico gravada no ano seguinte por João Petra de Barros, Noel parece redimensionar o orgulho de Wilson – “modéstia à parte, eu sou da Vila” (Isabel), diz ele. Coincidência? O fato é que Wilson voltou à carga com “Conversa fiada”, questionando cada imagem de superioridade do bairro contida no samba de Vadico e Noel. Oficialmente, considera-se o clássico “Palpite infeliz” (lançado em disco por Aracy de Almeida) uma resposta de Noel ao “Conversa fiada” de Wilson – e tudo leva a crer que tenha sido mesmo, apesar da veemência com que compositores do Salgueiro reivindicaram o samba, ao longo dos anos, como um pito destinado, na verdade, ao lendário Antenor Gargalhada, sambista que também andou às turras com o Poeta da Vila. Infelizmente, Noel não deixou declarações a respeito.

Sendo ou não o alvo de “Palpite infeliz”, Wilson virou motivo de chacota entre as xicrinhas do Café Nice – ponto de encontro de compositores, na Avenida Rio Branco, 168-170. Muy amigos como Germano Augusto e Kid Pepe atiçavam os ânimos, afirmando que Noel preparava uma série de sambas arrasadores contra ele (também faziam o inverso com Noel). O sucesso de “Palpite infeliz” no carnaval seguinte (1936) tornou a situação ainda mais humilhante para Wilson.

Noel Rosa em 1936, ano em que “Palpite infeliz” arrasou quarteirões.

Na expectativa de ser novamente espinafrado, Wilson encheu gavetas com sambas de deboche a Noel que ele mesmo – erradamente, diga-se – julgava “borocochôs” (fracos). Vieram “Frankenstein da Vila” (em que deliciosamente rimou “Frankenstein” com “um certo alguém” e deu um golpe baixo em Noel mexendo com o seu queixo defeituoso) e “Terra de cego”. Ambos foram cantados em rádio, por nomes como Léo Vilar, Mário Moraes e Os Quatro Diabos, mas não chegaram a ser gravados. Aliás, nem foram feitos para isso – eram apenas piadas.

Alheio àqueles que queriam ver o circo pegar fogo, Noel resolveu emendar o ditado: mesmo podendo com o “inimigo”, juntou-se a ele. Encontrando Wilson por acaso num café no centro da cidade (uns dizem que foi no Café Club, outros no Leitão), tomou a iniciativa de fazê-lo seu parceiro. O que, para prejuízo de todos nós, aconteceu essa única vez. A partir da melodia de “Terra de cego”, Noel criou uma nova letra, mudando o nome do samba de Wilson para “Deixa de ser convencida”. “Todos sabem qual é teu velho modo de vida”, diz um trecho da parceria. O recado tinha destino certo: uma certa morena do Dancing Apollo, página virada na vida de ambos.

Pouco mais se viram. Wilson e um amigo – Erasmo Silva – haviam formado a dupla vocal Verde e Amarelo e embarcaram em meados do ano seguinte para Buenos Aires, como cantores da orquestra baiana Os Almirante Jonas. Ficariam dois anos fora do Rio de Janeiro, emendando a gigportenha com uma longa estadia em São Paulo, como atrações fixas das rádios Record e Tupi.

A Dupla Verde e Amarelo, de Wilson Baptista e Erasmo Silva, em cartaz de show realizado em Pelotas (RS), em 1937.


Em 1937, quando soube da morte de Noel, Wilson (ainda em São Paulo) fez um samba em homenagem ao colega, chamado “Grinalda”. Cantou-o em rádio, mas nunca chegou a gravá-lo. Até falecer em 1968, reverenciou Noel como um ídolo em dezenas de entrevistas. E citou-o em pelo menos oito sambas: “Terra boa” (1942), “Waldemar (Quero um samba)” (1943), “Chico Viola” (1952), “Garota dos discos” (1952), “Skindô” (1962), “Parabéns, Rio” (1965), “A nova Lapa” (1968) e “Transplante de coração” (1968).

Wilson Baptista diante do microfone da PRF-9 (Rádio Difusora Porto-alegrense) em 1937, aos 24 anos.




Rodrigo Alzuguir é produtor, ator, músico e pesquisador. Lançou uma biografia de Wilson Baptista.

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