PARTE II
TRANSE
Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento - o primeiro longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar.
Glauber Rocha, o jovem diretor baiano, tinha se tornado, a essa altura, um verdadeiro líder cultural. Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia, ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional. Não se tratava de uma conquista de padrão de qualidade: essa tinha sido a meta da Vera Cruz, produtora criada pelo empresário paulista Franco Zampari, que construiu um estúdio bem estruturado onde se produziam, até metade dos anos 50, filmes de bom acabamento. Para dirigir o empreendimento, Zampari convidou Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que atuara com sucesso na Inglaterra e na França e voltava ao Brasil atendendo a esse convite da elite brasileira para instituir uma indústria cinematográfica de alto nível entre nós. Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro, representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como chanchadas", uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30. O movimento do Cinema Novo, na primeira metade dos anos 60, opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção – quase hostilidade - a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas.
Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspirarem-se no Nelson Pereira dos Santos de Rio, 40 graus, e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórias razoavelmente roteirizadas, quanto os malandros que produziam diversão para um público semi-analfabeto.
O filme-emblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol. Bons filmes do Cinema Novo, como Os fuzis, de Ruy Guerra, ou mesmo Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (para nos atermos aos filmes que foram feitos e lançados mais ou menos ao mesmo tempo que Deus e o Diabo na Terra do Sol e que são, de resto, juntamente com este, as primeiras grandes realizações do movimento e, portanto, sua inauguração efetiva), tinham, entre outras, a virtude de nos aproximar de um nível de feitura almejável, embora por caminhos bem diversos daqueles percorridos pela Vera Cruz, Anselmo Duarte ou (o solitário autor de filmes bergmanianos) Walter Hugo Khoury. Deus e o Diabo na Terra do Sol era bom (e mesmo melhor) por outras razões: ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente. Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro com evidentes ecos de Os sertões, o grande livro de Euclides da Cunha -, e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região - a marca forte de O cangaceiro -, Glauber, sem temer a mão às vezes pesada, às vezes canhestra com que exibia ensinamentos estéticos de Eisenstein, Rossellini, Buñuel ou Brecht (mais nouvelle vague e alguns cacoetes aprendidos no então para nós emergente cinema japonês), e lições ideológicas de marxistas, apresentava um painel exuberante e algo disforme (na Europa como no Brasil, chamou-se, creio que com acerto, 'barroco") das forças épicas embutidas em nossa cultura popular. Na verdade, o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O Evangelho segundo s. Mateus do que de qualquer outro diretor: a fotografia sem contra-luz, o delírio construído com matéria crua, a imposição de um mundo mental às imagens - tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano. Mas Deus e o Diabo na Terra do Sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos: ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o próprio desejo dos brasileiros de fazer cinema. Não era o Brasil tentando fazer direito (ou provando que o podia), mas errando e acertando num nível que propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para julgar erros e acertos. O cineasta espanhol Fernando Trueba me disse que mesmo os maus filmes brasileiros nunca são tão maus, pois há sempre algo selvagem que os salva, e que esse aspecto selvagem é o mesmo que se encontra, concentrado, nos bons filmes feitos no Brasil. Isso é uma verdade perceptível até para estrangeiros, mas ela não estaria sequer revelada se não fosse o Cinema Novo - e o Cinema Novo não teria existido sem Glauber. O que purifica os maus e ilumina os bons filmes brasileiros de qualquer época é a chama que arde em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Foi isso que fez de Glauber o mestre de seus pares, além de personalidade influente (posto que sempre polêmica – ou exatamente por causa disso) em todas as áreas de nossa vida cultural. Quando Terra em transe estava sendo feito, a expectativa em torno do que Glauber faria depois de Deus e o Diabo na Terra do Sol era enorme. Fui sozinho a um cinema de Copacabana assistir ao novo lançamento.
Eu viera para o Rio em abril ou maio de 66 e, depois de morar no apartamento de Alex Chacon em Copacabana, mudei-me para o "Solar da Fossa", como foi apelidado o precursor dos apart-hotéis no Rio de Janeiro. Era uma velha casa de fazenda que tinha sido transformada num conjunto de apartamentos, com uma portaria de hotel barato e um mínimo de serviço de limpeza e arrumação de quartos. Enormes corredores, ao longo dos quais se alinhavam os apartamentos, circundavam um jardim interno. A proprietária (ou aquela que todos tomavam por tal) muitas vezes estava na entrada, por trás do balcão, com os cabelos oxigenados e fumando um charuto. Mas essa descrição - ou o apelido que o solar ganhou - não deve levar à crença de que se tratava de um antro deprimente. Ao contrário, tudo ali era limpo, alegre, arejado e parecia sólido. E a visão da proprietária de charuto entre os dedos mais sugeria a elegância excêntrica de uma personagem de filme alemão. O enorme número de apartamentos quarto- e-sala com banheiro razoável era ocupado principalmente por artistas: músicos, poetas, desenhistas e atrizes iniciantes. Uma gente que tinha descoberto um modo bonito de viver num ponto excelente do Rio de então (encostado à rocha onde se abriu o Túnel Novo na confluência de Copacabana com Botafogo e a Urca) por muito pouco dinheiro. Dedé, que tinha combinado de vir comigo para o Rio, estava morando na casa da avó, no Flamengo, mas ficava no solar todo o tempo de que dispúnhamos para estar juntos. O próprio apelido de Solar da Fossa (o nome verdadeiro era Solar Santa Teresinha!) conotava sofisticação e mesmo refinamento, uma vez que "estar na fossa" era expressão in, usada por gente da Zona Sul carioca. Era uma gíria de fãs de filmes de Bergman e pacientes de psicanálise. O termo fossa, apesar de seu significado original grosseiro (na verdade não vivenciado pelos usuários da gíria, todos eles moradores de bairros com serviço de esgoto e bom saneamento - bastando dizer que eu mesmo, vindo de uma cidadezinha do interior basicamente bem urbanizada, usei por muito tempo a expressão sem atinar com o significado nauseabundo da palavra fossa), se aplicava aos sambas-canções modernos de May sa, Tito Madi e Dolores Duran da fase pré-bossa nova e era popularmente considerado chique. O sentido metafórico que a palavra ganhou na gíria - ou seja: depressão psicológica - tampouco era condizente com a atmosfera do solar.
Como jovens artistas achavam engraçado dizerem-se "na fossa", e como os que os olhavam com curiosidade gostavam de repetir a expressão, o proto-apart-hotel eleito para moradia de bossa ganhou o apelido folclórico. Podia-se atravessar a pé o Túnel Novo e, em cinco minutos, estava-se na rua Prado Júnior, onde se encontrava o restaurante Cervantes, o centro da vida boêmia barata dos anos 60, com seus excelentes sanduíches de pão francês prensado - que se podem encontrar ainda hoje - e um ótimo chope. Lembro que fui andando do solar até o cinema onde se exibia Terra em transe.
O filme como um todo, no entanto, me pareceu desigual. E me agastava que ele não o fosse menos - era-o mesmo bem mais - do que Deus e o Diabo na Terra do Sol. As lamentações do seu principal personagem - um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar, muito além da justiça social, "o absoluto" – por vezes me soavam francamente subliterárias. Além disso, certos defeitos intoleráveis do cinema brasileiro - as festas grã-finas inconvincentemente encenadas, as figurantes mulheres que são incentivadas pelos diretores a fazer uma deplorável caricatura provinciana de glamour sexual, a incapacidade de contar pelo menos um trecho de história com clareza, mesmo quando a evidente intenção seria essa etc. etc. - continuavam todos lá. Mas, como já tinha sido o caso com os dois filmes anteriores de Glauber (e, ainda que em menor intensidade, com grande número de produções do Cinema Novo), incessantemente explodiam na tela as sugestões de uma outra visão da vida, do Brasil e do cinema que pareciam obsoletar esse tipo de exigência. E no caso de Terra em transe, o próprio poeta protagonista trazia, envolta em sua retórica, uma visão amarga e realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada (o filme é o momento do golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer). A impressão de que se tinha diante dosolhos uma refilmagem de La fièvre monte à El Pao, de Buñuel com tiques de nouvelle vague e pinceladas do Fellini de 8 1/2, podia gerar confusão. Mas essa confusão contribuía para a força paródica do filme. E nem sempre desservia o personagem, cuja desesperada tentativa de criticar com a maior lucidez possível os projetos políticos nos quais se envolvera e, ao mesmo tempo, realizar os gestos mais eficazes no sentido de consolidá-los - tipo do dilema que levou tantos à loucura, ao misticismo ou às trincheiras opostas - acabava por levá-lo, de modo bastante gratuito, à morte. Não deixa de ser comovente pensar em como isso pode, hoje, passar, sem grande margem de erro, por uma biografia sucinta do próprio Glauber.
O filme, naturalmente, não foi um sucesso de bilheteria, mas causou escândalo entre os intelectuais e artistas da esquerda carioca. Alguns líderes do teatro engajado chegaram a proferir protestos exaltados ao final de uma sessão na porta de um cinema onde ele era exibido comercialmente. Uma cena em particular chocava esse grupo de espectadores: durante uma manifestação popular – um comício - o poeta, que está entre os que discursam, chama para perto de si um dos que o ouvem, operário sindicalizado, e, para mostrar quão despreparado ele está para lutar por seus direitos, tapa-lhe violentamente a boca com a mão, gritando para os demais assistentes e para nós, na sala do cinema: "Isto é o Povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!". Em seguida, um homem miserável, representante da pobreza desorganizada, surge dentre a multidão tentando tomar a palavra e é calado com um cano de revólver enfiado na sua boca por um segurança do candidato. Essa imagem é reiterada em longos close-ups destacados do ritmo narrativo e desse modo se transforma num emblema.
Vivi essa cena - e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar - como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorreria com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo.
Sem dúvida, os demagogos populistas eram suntuosamente ridicularizados no filme: ali eles eram vistos segurando crucifixos e bandeiras em carro aberto contra o céu do Aterro do Flamengo, exibindo suas mansões de ostentoso mau gosto, participando das solenidades eclesiásticas e carnavalescas que tocam o coração do populacho etc.; mas era a própria fé nas forças populares - e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo - o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as conseqüências. Nada do que veio a se chamar de "tropicalismo" teria tido lugar sem esse momento traumático. O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava. Se a cena que indignou os comunistas me encantou pela coragem, foi porque as imagens que, no filme, a precediam e sucediam, procuravam revelar como somos e perguntavam sobre nosso destino. Uma grande cruz na praia domina um grupo formado por demagogos políticos, bichas com fantasias de luxo do baile do Municipal e índios de Carnaval: experimenta-se a um tempo o grotesco e o arejado da situação dessa ilha sempre recém-descoberta e sempre oculta, o Brasil; em meio à multidão de um comício, um velhinho samba de maneira graciosa e ridícula, lúbrica e angelical, alegremente perdido: o povo brasileiro é captado em seus paradoxos que não se sabe se são desesperantes ou sugestivos; decisões políticas são discutidas num pátio cimentado em que as linhas negras de divisão entre as lajes ressaltam e desmentem as entradas e saídas das personagens; a câmera passeia por entre os grupos de quatro, cinco, seis inquietos agitadores, discordantes em suas táticas e seus movimentos corporais; tudo numa fotografia em preto e branco em que enormes espaços de luz são assombrados por dominadoras manchas negras. Era dramaturgia política distinta da usual redução de tudo a uma caricatura esquemática da ideia de luta de classes.
Sobretudo, era a retórica e a poética da vida brasileira do pós-64: um grito fundo de dor e revolta impotente, mas também um olhar atualizado, quase profético, das possibilidades reais, para nós, de ser e sentir. Contudo, eu não teria talvez reagido como reagi a esses estímulos se não fosse pela influência determinante que já vinha fazia algum tempo exercendo sobre mim a inteligência e a sensibilidade de um intelectual singular que entrara em minha vida no último mês de 64 e que a essa altura, dois anos depois, já se tornara um verdadeiro amigo: o também baiano Rogério Duarte, que tinha se mudado para o Rio no ano em que eu chegara a Salvador.
Na primeira metade dos anos 60, antes de eu sair da Bahia, ouvi o nome de Rogério Duarte repetido com freqüência nas conversas dos meus colegas na Faculdade de Filosofia. Sua inteligência inquieta e pouco convencional tinha virado uma lenda. Dizia- se que ele falava com grande brilhantismo e que suas opiniões às vezes chocantes impressionavam o interlocutor pelo calor com que eram defendidas.
Embora ele não tivesse sequer concluído o curso secundário, fascinava estudantes e professores de curso superior. Igualmente lendária se tornou sua paixão por uma moça à porta de cuja casa, no bairro dos Barris, contava-se que ele se deixava ficar noites inteiras em muda serenata. Tratava-se de Anecir, a irmã mais nova de Glauber, que, no tempo em que eu ainda estava na faculdade, pouco antes do meu encontro com Rogério, desempenhou papel decisivo em minha vida.
Quando cheguei ao Rio com Bethânia, em 64, Rogério apareceu no Teatro Opinião e, ao fim do espetáculo, saímos para conversar. Nada do que me tivessem dito sobre ele na Bahia poderia ter me dado a medida da impressão que ele me causou. Sua voz era mais potente, sua mente mais rápida e suas ideias mais desconcertantes do que eu teria sido capaz de imaginar. Havia entre ele e seus discursos um comprometimento a um tempo visceral e metafísico que multiplicava o poder persuasivo dos argumentos. E ele era surpreendentemente gentil e amigável. Foi carinhoso e irônico por estar tratando com baianos um tanto mais novos do que ele, e a gente sentia que era por estar comovido que ele
idealizava uma nossa suposta pureza dizendo: "Vocês não são neuróticos, vocês são diferentes daquela gente do meu tempo na Bahia". Isso não o impedia, no entanto, de dinamitar nossa ingenuidade com tiradas politicamente blasfemas.
TRANSE
Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento - o primeiro longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar.
Glauber Rocha, o jovem diretor baiano, tinha se tornado, a essa altura, um verdadeiro líder cultural. Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia, ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional. Não se tratava de uma conquista de padrão de qualidade: essa tinha sido a meta da Vera Cruz, produtora criada pelo empresário paulista Franco Zampari, que construiu um estúdio bem estruturado onde se produziam, até metade dos anos 50, filmes de bom acabamento. Para dirigir o empreendimento, Zampari convidou Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que atuara com sucesso na Inglaterra e na França e voltava ao Brasil atendendo a esse convite da elite brasileira para instituir uma indústria cinematográfica de alto nível entre nós. Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro, representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como chanchadas", uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30. O movimento do Cinema Novo, na primeira metade dos anos 60, opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção – quase hostilidade - a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas.
Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspirarem-se no Nelson Pereira dos Santos de Rio, 40 graus, e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórias razoavelmente roteirizadas, quanto os malandros que produziam diversão para um público semi-analfabeto.
O filme-emblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol. Bons filmes do Cinema Novo, como Os fuzis, de Ruy Guerra, ou mesmo Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (para nos atermos aos filmes que foram feitos e lançados mais ou menos ao mesmo tempo que Deus e o Diabo na Terra do Sol e que são, de resto, juntamente com este, as primeiras grandes realizações do movimento e, portanto, sua inauguração efetiva), tinham, entre outras, a virtude de nos aproximar de um nível de feitura almejável, embora por caminhos bem diversos daqueles percorridos pela Vera Cruz, Anselmo Duarte ou (o solitário autor de filmes bergmanianos) Walter Hugo Khoury. Deus e o Diabo na Terra do Sol era bom (e mesmo melhor) por outras razões: ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente. Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro com evidentes ecos de Os sertões, o grande livro de Euclides da Cunha -, e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região - a marca forte de O cangaceiro -, Glauber, sem temer a mão às vezes pesada, às vezes canhestra com que exibia ensinamentos estéticos de Eisenstein, Rossellini, Buñuel ou Brecht (mais nouvelle vague e alguns cacoetes aprendidos no então para nós emergente cinema japonês), e lições ideológicas de marxistas, apresentava um painel exuberante e algo disforme (na Europa como no Brasil, chamou-se, creio que com acerto, 'barroco") das forças épicas embutidas em nossa cultura popular. Na verdade, o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O Evangelho segundo s. Mateus do que de qualquer outro diretor: a fotografia sem contra-luz, o delírio construído com matéria crua, a imposição de um mundo mental às imagens - tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano. Mas Deus e o Diabo na Terra do Sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos: ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o próprio desejo dos brasileiros de fazer cinema. Não era o Brasil tentando fazer direito (ou provando que o podia), mas errando e acertando num nível que propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para julgar erros e acertos. O cineasta espanhol Fernando Trueba me disse que mesmo os maus filmes brasileiros nunca são tão maus, pois há sempre algo selvagem que os salva, e que esse aspecto selvagem é o mesmo que se encontra, concentrado, nos bons filmes feitos no Brasil. Isso é uma verdade perceptível até para estrangeiros, mas ela não estaria sequer revelada se não fosse o Cinema Novo - e o Cinema Novo não teria existido sem Glauber. O que purifica os maus e ilumina os bons filmes brasileiros de qualquer época é a chama que arde em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Foi isso que fez de Glauber o mestre de seus pares, além de personalidade influente (posto que sempre polêmica – ou exatamente por causa disso) em todas as áreas de nossa vida cultural. Quando Terra em transe estava sendo feito, a expectativa em torno do que Glauber faria depois de Deus e o Diabo na Terra do Sol era enorme. Fui sozinho a um cinema de Copacabana assistir ao novo lançamento.
Eu viera para o Rio em abril ou maio de 66 e, depois de morar no apartamento de Alex Chacon em Copacabana, mudei-me para o "Solar da Fossa", como foi apelidado o precursor dos apart-hotéis no Rio de Janeiro. Era uma velha casa de fazenda que tinha sido transformada num conjunto de apartamentos, com uma portaria de hotel barato e um mínimo de serviço de limpeza e arrumação de quartos. Enormes corredores, ao longo dos quais se alinhavam os apartamentos, circundavam um jardim interno. A proprietária (ou aquela que todos tomavam por tal) muitas vezes estava na entrada, por trás do balcão, com os cabelos oxigenados e fumando um charuto. Mas essa descrição - ou o apelido que o solar ganhou - não deve levar à crença de que se tratava de um antro deprimente. Ao contrário, tudo ali era limpo, alegre, arejado e parecia sólido. E a visão da proprietária de charuto entre os dedos mais sugeria a elegância excêntrica de uma personagem de filme alemão. O enorme número de apartamentos quarto- e-sala com banheiro razoável era ocupado principalmente por artistas: músicos, poetas, desenhistas e atrizes iniciantes. Uma gente que tinha descoberto um modo bonito de viver num ponto excelente do Rio de então (encostado à rocha onde se abriu o Túnel Novo na confluência de Copacabana com Botafogo e a Urca) por muito pouco dinheiro. Dedé, que tinha combinado de vir comigo para o Rio, estava morando na casa da avó, no Flamengo, mas ficava no solar todo o tempo de que dispúnhamos para estar juntos. O próprio apelido de Solar da Fossa (o nome verdadeiro era Solar Santa Teresinha!) conotava sofisticação e mesmo refinamento, uma vez que "estar na fossa" era expressão in, usada por gente da Zona Sul carioca. Era uma gíria de fãs de filmes de Bergman e pacientes de psicanálise. O termo fossa, apesar de seu significado original grosseiro (na verdade não vivenciado pelos usuários da gíria, todos eles moradores de bairros com serviço de esgoto e bom saneamento - bastando dizer que eu mesmo, vindo de uma cidadezinha do interior basicamente bem urbanizada, usei por muito tempo a expressão sem atinar com o significado nauseabundo da palavra fossa), se aplicava aos sambas-canções modernos de May sa, Tito Madi e Dolores Duran da fase pré-bossa nova e era popularmente considerado chique. O sentido metafórico que a palavra ganhou na gíria - ou seja: depressão psicológica - tampouco era condizente com a atmosfera do solar.
Como jovens artistas achavam engraçado dizerem-se "na fossa", e como os que os olhavam com curiosidade gostavam de repetir a expressão, o proto-apart-hotel eleito para moradia de bossa ganhou o apelido folclórico. Podia-se atravessar a pé o Túnel Novo e, em cinco minutos, estava-se na rua Prado Júnior, onde se encontrava o restaurante Cervantes, o centro da vida boêmia barata dos anos 60, com seus excelentes sanduíches de pão francês prensado - que se podem encontrar ainda hoje - e um ótimo chope. Lembro que fui andando do solar até o cinema onde se exibia Terra em transe.
O filme como um todo, no entanto, me pareceu desigual. E me agastava que ele não o fosse menos - era-o mesmo bem mais - do que Deus e o Diabo na Terra do Sol. As lamentações do seu principal personagem - um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar, muito além da justiça social, "o absoluto" – por vezes me soavam francamente subliterárias. Além disso, certos defeitos intoleráveis do cinema brasileiro - as festas grã-finas inconvincentemente encenadas, as figurantes mulheres que são incentivadas pelos diretores a fazer uma deplorável caricatura provinciana de glamour sexual, a incapacidade de contar pelo menos um trecho de história com clareza, mesmo quando a evidente intenção seria essa etc. etc. - continuavam todos lá. Mas, como já tinha sido o caso com os dois filmes anteriores de Glauber (e, ainda que em menor intensidade, com grande número de produções do Cinema Novo), incessantemente explodiam na tela as sugestões de uma outra visão da vida, do Brasil e do cinema que pareciam obsoletar esse tipo de exigência. E no caso de Terra em transe, o próprio poeta protagonista trazia, envolta em sua retórica, uma visão amarga e realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada (o filme é o momento do golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer). A impressão de que se tinha diante dosolhos uma refilmagem de La fièvre monte à El Pao, de Buñuel com tiques de nouvelle vague e pinceladas do Fellini de 8 1/2, podia gerar confusão. Mas essa confusão contribuía para a força paródica do filme. E nem sempre desservia o personagem, cuja desesperada tentativa de criticar com a maior lucidez possível os projetos políticos nos quais se envolvera e, ao mesmo tempo, realizar os gestos mais eficazes no sentido de consolidá-los - tipo do dilema que levou tantos à loucura, ao misticismo ou às trincheiras opostas - acabava por levá-lo, de modo bastante gratuito, à morte. Não deixa de ser comovente pensar em como isso pode, hoje, passar, sem grande margem de erro, por uma biografia sucinta do próprio Glauber.
O filme, naturalmente, não foi um sucesso de bilheteria, mas causou escândalo entre os intelectuais e artistas da esquerda carioca. Alguns líderes do teatro engajado chegaram a proferir protestos exaltados ao final de uma sessão na porta de um cinema onde ele era exibido comercialmente. Uma cena em particular chocava esse grupo de espectadores: durante uma manifestação popular – um comício - o poeta, que está entre os que discursam, chama para perto de si um dos que o ouvem, operário sindicalizado, e, para mostrar quão despreparado ele está para lutar por seus direitos, tapa-lhe violentamente a boca com a mão, gritando para os demais assistentes e para nós, na sala do cinema: "Isto é o Povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!". Em seguida, um homem miserável, representante da pobreza desorganizada, surge dentre a multidão tentando tomar a palavra e é calado com um cano de revólver enfiado na sua boca por um segurança do candidato. Essa imagem é reiterada em longos close-ups destacados do ritmo narrativo e desse modo se transforma num emblema.
Vivi essa cena - e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar - como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorreria com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo.
Sem dúvida, os demagogos populistas eram suntuosamente ridicularizados no filme: ali eles eram vistos segurando crucifixos e bandeiras em carro aberto contra o céu do Aterro do Flamengo, exibindo suas mansões de ostentoso mau gosto, participando das solenidades eclesiásticas e carnavalescas que tocam o coração do populacho etc.; mas era a própria fé nas forças populares - e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo - o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as conseqüências. Nada do que veio a se chamar de "tropicalismo" teria tido lugar sem esse momento traumático. O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava. Se a cena que indignou os comunistas me encantou pela coragem, foi porque as imagens que, no filme, a precediam e sucediam, procuravam revelar como somos e perguntavam sobre nosso destino. Uma grande cruz na praia domina um grupo formado por demagogos políticos, bichas com fantasias de luxo do baile do Municipal e índios de Carnaval: experimenta-se a um tempo o grotesco e o arejado da situação dessa ilha sempre recém-descoberta e sempre oculta, o Brasil; em meio à multidão de um comício, um velhinho samba de maneira graciosa e ridícula, lúbrica e angelical, alegremente perdido: o povo brasileiro é captado em seus paradoxos que não se sabe se são desesperantes ou sugestivos; decisões políticas são discutidas num pátio cimentado em que as linhas negras de divisão entre as lajes ressaltam e desmentem as entradas e saídas das personagens; a câmera passeia por entre os grupos de quatro, cinco, seis inquietos agitadores, discordantes em suas táticas e seus movimentos corporais; tudo numa fotografia em preto e branco em que enormes espaços de luz são assombrados por dominadoras manchas negras. Era dramaturgia política distinta da usual redução de tudo a uma caricatura esquemática da ideia de luta de classes.
Sobretudo, era a retórica e a poética da vida brasileira do pós-64: um grito fundo de dor e revolta impotente, mas também um olhar atualizado, quase profético, das possibilidades reais, para nós, de ser e sentir. Contudo, eu não teria talvez reagido como reagi a esses estímulos se não fosse pela influência determinante que já vinha fazia algum tempo exercendo sobre mim a inteligência e a sensibilidade de um intelectual singular que entrara em minha vida no último mês de 64 e que a essa altura, dois anos depois, já se tornara um verdadeiro amigo: o também baiano Rogério Duarte, que tinha se mudado para o Rio no ano em que eu chegara a Salvador.
Na primeira metade dos anos 60, antes de eu sair da Bahia, ouvi o nome de Rogério Duarte repetido com freqüência nas conversas dos meus colegas na Faculdade de Filosofia. Sua inteligência inquieta e pouco convencional tinha virado uma lenda. Dizia- se que ele falava com grande brilhantismo e que suas opiniões às vezes chocantes impressionavam o interlocutor pelo calor com que eram defendidas.
Embora ele não tivesse sequer concluído o curso secundário, fascinava estudantes e professores de curso superior. Igualmente lendária se tornou sua paixão por uma moça à porta de cuja casa, no bairro dos Barris, contava-se que ele se deixava ficar noites inteiras em muda serenata. Tratava-se de Anecir, a irmã mais nova de Glauber, que, no tempo em que eu ainda estava na faculdade, pouco antes do meu encontro com Rogério, desempenhou papel decisivo em minha vida.
Quando cheguei ao Rio com Bethânia, em 64, Rogério apareceu no Teatro Opinião e, ao fim do espetáculo, saímos para conversar. Nada do que me tivessem dito sobre ele na Bahia poderia ter me dado a medida da impressão que ele me causou. Sua voz era mais potente, sua mente mais rápida e suas ideias mais desconcertantes do que eu teria sido capaz de imaginar. Havia entre ele e seus discursos um comprometimento a um tempo visceral e metafísico que multiplicava o poder persuasivo dos argumentos. E ele era surpreendentemente gentil e amigável. Foi carinhoso e irônico por estar tratando com baianos um tanto mais novos do que ele, e a gente sentia que era por estar comovido que ele
idealizava uma nossa suposta pureza dizendo: "Vocês não são neuróticos, vocês são diferentes daquela gente do meu tempo na Bahia". Isso não o impedia, no entanto, de dinamitar nossa ingenuidade com tiradas politicamente blasfemas.
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