Por Marcos Napolitano*
RESUMO: A partir de fontes pesquisadas junto às coleções documentais da polícia política ligadas ao regime militar brasileiro, podemos vislumbrar não apenas o impacto do autoritarismo na cena musical brasileira, entre 1968 e 1981, mas também a lógica da repressão e do controle do Estado autoritário sobre os músicos. Nesse período, o controle da circulação das canções e da realização de shows com cantores esquerdistas (ou simpatizantes) marcou a atuação dos órgãos de censura e repressão, voltados principalmente (mas não apenas) contra o gênero MPB. Neste trabalho, analisaremos o imaginário produzido pelos agentes repressores e a “lógica da produção da suspeita” sobre a MPB. Palavras-chave: Brasil: Música e Política; Brasil: regime militar; Resistência democrática.
Essa “informação” é uma síntese do imaginário anticomunista e antidemocrático da direita militar ligada aos serviços de segurança. Na lógica da repressão, artistas da MPB, CEBRADE, ABI, intelectuais de esquerda, anistia
“ampla, geral e irrestrita”, Chico Buarque e movimento operário eram parte
de uma grande conspiração para desestabilizar o regime e a ordem vigente,
através de eventos aparentemente pacíficos. Se esse documento fosse produzido alguns anos antes, poderia dar início a uma onda de perseguição e repressão sem precedentes. Mas, no início da década de 1980, a política de abertura já estava consolidada, com a negociação entre a oposição liberal e o centro
decisório das Forças Armadas em estado avançado, visando a volta gradual
dos civis ao poder. Mas a “comunidade de informações”, neutralizada desde,
ao menos, 1976, ainda estava viva e patrocinava atentados contra entidades
da sociedade civil, com três finalidades básicas: dificultar o diálogo do regime
militar com setores liberais da sociedade civil (base da agenda da “abertura”),
criar um clima de radicalização política, entre direita e esquerda e chantagear
governo e sociedade para impedir qualquer punição pelas constantes violações aos Direitos Humanos, cometidas principalmente entre 1969 e 1976. O “caso Riocentro” foi o canto de cisne da comunidade de informações que, em
troca da impunidade, negociava sua desmobilização enquanto força política
autônoma dentro do Estado.
A VIGILÂNCIA SOBRE OS ARTISTAS DO MEIO MUSICAL
Geraldo Vandré se tornou o ícone do artista engajado, perseguido e censurado, ao longo do regime militar brasileiro. Se para a sua carreira esse fardo tornou-se insuportável, levando-o a abandonar a vida artística, ao mesmo
tempo o foco que os serviços de informação e repressão jogaram sobre ele
contribuiu para que se tornasse uma espécie de lenda viva. A informação que
reproduzimos a seguir, elaborada no auge do sucesso de Vandré, em 1968, é
uma mistura de ficha síntese, levantamento biográfico e informe sobre as ligações políticas e sobre as movimentações do artista. A informação começa
com um tom aparentemente neutro e objetivo, arrolando os dados civis e profissionais de Vandré:
GERALDO PEREIRA DE ARAÚJO DIAS, pseudônimo de Geraldo Vandré, filho de José Vandrigésilo de Araújo Dias e de Maria Marta de Pedrosa Dias, natural de João Pessoa, Estado da Paraíba, nascido em 12 de setembro de 1935, funcionário efetivo da SUNAB, oriundo da COFAP, como inspetor de indústria e
comércio nível 15, identificado sob o número 3254224-SP, residente à Alameda
Barros nº 323, SP
A ênfase nos dados profissionais (“fiscal da SUNAB”) ganha uma importância estratégica dentro da produção da suspeita, pois um dos argumentos
dos militares para perseguir muitos cidadãos era a prevaricação e a corrupção. Ou seja, o fato de Vandré ser artista e funcionário público poderia ser
utilizado em futuros processos e investigações. Em seguida, o informante-relator aponta uma outra atividade “cultural”, já marcada com o estigma da
“subversão”:
é membro de um grupo orientado por Martha*, dirigente da editora “O Sol”
(Editora Cultural) que se constituía num dos principais meios de ação psicológica sobre o público, desenvolvido por um grupo de cantores e compositores de
orientação comunista, atuando em franca atividade nos meios culturais.
A marca da “canção de protesto” também era utilizada como agravante do estigma da suspeita e da subversão. Vandré, como acontecerá posteriormente com Chico Buarque, era identificado como uma espécie de líder do
“grupo da MPB”, afirmação um tanto questionável, quando se conhecem as
tensões e debates internos a essa tendência musical. O relator destaca a canção Aroeira, sucesso de 1966, cuja mensagem engajada era mais explícita que
em Disparada. Neste sentido, o tom exortativo da canção é arrolado como peça acusatória e prova material “ostensiva” do crime de subversão:
Entre os principais agentes desse grupo, figura Geraldo Vandré. A ação se
desenvolve através da chamada “música de protesto”, numa propaganda sub-liminar muito bem conduzida. Entre as músicas mais difundidas por aquelas emissoras, destaca-se AROEIRA, de Geraldo Vandré, cujo texto emprega ostensivamente a revolta e a subversão.
Depois de arrolar os dados pessoais e profissionais, sugerir ligações com
atividades culturais contestadoras e nomear Vandré como arauto da canção
de protesto, o relator do documento culmina na prova maior da subversão:
as ligações com grupos de esquerda clandestinos e a viagem a países do bloco
soviético:
Geraldo Vandré é tido como comunista atuante. Consta que seu pai, médico
em João Pessoa, é um dos chefes comunistas do Estado da Paraíba. Segundo anotações datadas de 13 de agosto de 1968, GV é identificado como pertencente ao
movimento determinado “AP” ... encontra-se na Bulgária, onde participou do
Festival Mundial da Juventude realizado em Sófia, concorrendo com a apresentação de uma canção denominada “CHE”, obtendo o 1º lugar, sendo-lhe agraciado o grande prêmio medalha de ouro. O cantor em apreço deixou o Brasil no
dia 22 de julho último, acompanhado do Trio Maraiá, compondo uma comitiva
de 150 pessoas, incluindo intelectuais, estudantes e parlamentares. Consta que
atualmente se encontra em Moscou, onde fará uma série de apresentações na
TV Russa. Seu regresso está previsto para o dia 30, em São Paulo, vindo de Lisboa. (Informação 093, DOPS/DI, 14/10/1968)
A estratégia textual da produção da suspeita (neste caso, praticamente, da
comprovação do crime de subversão) era clara: preencher todas as lacunas com
informes obtidos por outras fontes (“consta”, “segundo anotações”, “é tido como comunista”). A presença no Leste europeu, apresentando odes musicais a
Ernesto “Che” Guevara, acompanhado de “intelectuais, estudantes e parlamentares” e a possível visita a Moscou, não comprovada pelo documento, transformam o inocente “fiscal da SUNAB” no perfil de um “comunista atuante”, com
ramificações internacionais, ou seja, no grau mais perigoso de subversivo. Pouco importa a origem dos dados. A suspeita estava produzida e pronta para ser
acionada pela repressão. No caso de Vandré, ela veio com toda a força.
Um outro caso de suspeita muito peculiar foi o de Caetano Veloso. As
posições políticas de Caetano, sempre críticas em relação à arte engajada de
esquerda, já conhecidas no final dos anos 60, acabaram gerando uma série de
conflitos entre sua personalidade pública e o público de esquerda, que o qualificava como “alienado”. Suas notórias posições políticas independentes e,
num certo sentido, distantes da arte engajada, no sentido tradicional da expressão, não foram suficientes para dirimir a suspeita da ditadura. Ao contrário, os órgãos de informação tinham uma especial atenção em relação às suas
declarações e performances (mais do que em relação às suas músicas em si).
O prontuário de Caetano arrolava fatos conhecidos, muitos deles extraídos
de jornais, mas o fazia como se revelasse um perfil militante e perigoso para
o regime. O primeiro ponto, numa demonstração de ignorância da história
musical, liga a Bossa Nova à cultura estudantil de esquerda. Neste caso, a participação no espaço e o tipo de show (o teatro Paramount, usado pelas organizações estudantis) era a prova de “esquerdismo”:
1. Informação reservada 1-6-65: show teatro Paramount — 18-5-65 “Shows dos
chamados ‘Bossa Nova’, que vêm servindo como campanha de estímulo aos
movimentos estudantis de caráter nitidamente esquerdista”
A participação no “grupo baiano”, conforme o agente, era outra prova de
“subversão”. Mais uma prova do quanto as peças acusatórias não se preocupavam com a veracidade e a qualidade das informações. Para o relator o grupo “vem cantando músicas de protesto subliminarmente atacando o regime
vigente e exaltando os regimes socialistas”. Mesmo na época, era notório que
o “grupo baiano”, núcleo do Tropicalismo musical, tinha uma posição de crítica à canção de protesto strictu sensu e não fazia nenhum tipo de exaltação
aos regimes socialistas, estando muito mais próximo dos valores da contracultura e das agitações estudantis do Maio de 68 francês.
O informante consegue inventar o “ritmo tropicalista”, gênero que nenhum historiador ou musicólogo conseguiu identificar até hoje. Mas o “ritmo tropicalista” surge aqui como mais uma prova de subversão, ao conspurcar o Hino Nacional.
2. Informação reservada 10-10-68: relata as provocações que caracterizam uma
ameaça de desmoralização da revolução de 31 de março ... inclusive de que o
epigrafado, que se exibia na Guanabara, cantara o Hino Nacional em ritmo
tropicalista.
Finalmente, a notícia da intenção de um grupo de fiéis do Senhor do
Bonfim em processar o compositor também é arrolada como peça de agravamento da suspeição:
3. Fiéis da ordem da Igreja do Bonfim quiseram processar Caetano pela gravação do Hino do Sr. do Bonfim.
Esse tipo de “prontuário”, a rigor, não revelava nada que não tivesse caráter notório e conhecido. A participação nos espetáculos do Paramount, os
espetáculos em campi universitários, notícias sobre a prisão após o AI-5, a
reação de fiéis conservadores. Enfim, notícias publicadas em jornais eram arroladas como se fossem descobertas inéditas e provas de suspeição, quando
na verdade não revelavam nada do que já não fosse conhecido do público que
acompanhava a carreira de Caetano. Apenas o episódio do “hino nacional”
em ritmo tropicalista, conforme o próprio compositor, havia sido fruto de
uma delação feita por Randal Juliano, radialista conservador de São Paulo,
que numa versão fantasiosa denunciou as performances durante a temporada
na boate Sucata, em outubro de 1968, como subversivas. Nas palavras do próprio Caetano:33 “Randal Juliano resolveu criar uma versão fantasiosa em que
nós aparecíamos enrolados na bandeira nacional e cantávamos o Hino Nacional enxertado de palavrões”.
Essa denúncia teria servido de argumento para a prisão de Caetano e Gil,
por três meses, no final de 1968. A lógica persecutória da repressão servia-se
de fatos reais, por vezes banais e conhecidos, mesclando-os com informações
fornecidas por delatores profissionais ou espontâneos. Além, é claro, de inferências e livres conclusões elaboradas pelo próprio relator do documento.
A participação em eventos públicos e autorizados, ainda mais quando
realizados dentro dos espaços do movimento estudantil, era descrita como
uma atividade clandestina e conspirativa. No caso do prontuário de Gilberto Gil, sua participação no espetáculo em homenagem a Alexandre Vanucchi Leme, estudante de geologia da USP, morto sob tortura nas dependências do
DOI/CODI de São Paulo, era mais um ponto agravante na suspeição. Ainda
mais pelo fato de Gil ter voltado do exílio em Londres pouco tempo antes:
28/3/73 — Show no Anfiteatro do Biênio — Grêmio Politécnico da USP — 1.500
universitários. No final cantou “Cálice”, música proibida oficialmente. Boletim
informativo do Grêmio Politécnico. “Estando entre os participantes dos festivais
dos anos 60” e “artista ligado a Chico Buarque de Hollanda”.
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