PAISAGEM ÚTIL
Rogério mudou-se de Santa Teresa para o Solar da Fossa. Duda estava morando comigo no meu quarto e, do outro lado do corredor, viviam o grande compositor, cantor e violonista Paulinho da Viola e o letrista e escritor Abel Silva. Creio que Paulinho - o mais profundo e refinado defensor do samba tradicional carioca - foi a primeira pessoa a ouvir uma canção "tropicalista": mostrei-lhe "Paisagem útil" logo que a compus e ele, na sua nobreza, viu naquilo algo diferente de tudo, algo de que ele não podia propriamente gostar mas que reconhecia como íntegro em si mesmo, como que pertencente a uma outra dimensão. E ele me disse quase textualmente isso que acabei de escrever, com uma clareza e uma elegância que me desarmaram: como era possível que ele reconhecesse o teor da novidade que havia naquela canção e não demonstrasse nem entusiasmo nem revolta? A reação de Paulinho - um jovem exatamente da minha idade que eu admirava apaixonadamente - me tranquilizou, mas foi como um balde de água fria. Entre "Paisagem útil" e "Alegria, alegria", eu passei meses ponderando sobre a força do projeto que se esboçava dentro de mim. A firmeza tranquila com que Paulinho reagiu a "Paisagem útil" (que já desde o título – uma inversão de "Inútil paisagem", o belo samba bossa-nova de Tom Jobim - revelava seu aspecto metalingüístico e paródico) definiu de imediato a posição que ele manteria em relação ao tropicalismo, tanto no seu período polêmico quanto no seu pós-guerra.
"Paisagem útil" foi composta basicamente em ritmo de marcha-rancho (um tipo de marcha de Carnaval arrastado e solene que era a base de suntuosos desfiles – os "ranchos" - num tempo em que as escolas de samba ainda eram blocos modestos e desorganizados), com uma melodia que mais parecia uma colcha de retalhos de frases musicais da tradição sentimental brasileira (quando, um ano depois, vim a gravar essa canção, imitei os estilos vocais de conhecidos cantores de serestas), e uma letra que era a descrição, em imagens fortemente visuais do parque do Aterro do Flamengo, a então ainda recente obra de alargamento da avenida de praia daquele bairro (levada a cabo por Lota Macedo Soares), destacando o efeito de quase ficção científica dos seus traços modernistas, mas sem perder de vista a atmosfera urbana dos veículos em velocidade e dos habitantes atarefados, culminando com a visão (de fato documental) de um anúncio luminoso da Esso que, ao fim da pista de velocidade, surgia entre os postes altíssimos ("frio palmeiral de cimento"), por sobre os prédios do centro da cidade. A canção se encerra com o acender-se dessa lua oval da Esso comovendo e iluminando "o beijo dos pobres, tristes, felizes corações amantes do nosso Brasil". A reação desapaixonada de Paulinho da Viola, se a princípio me intimidou, em pouco tempo revelou-se paradigmática da forma de resistência que a história da música popular brasileira ofereceria ao tropicalismo.
Embora não premeditada, essa estréia tropicalista exclusiva para Paulinho da Viola significou, para além das minhas pretensões nascidas do diálogo com Rogério-Agrippino, uma conversa direta entre agentes da história da nossa música, uma verificação das forças reais que se enfrentariam em futuros embates, ações conjuntas, desacertos e mutirões.
Bethânia, depois de um recesso na Bahia, onde ela se refez das pressões descaracterizadoras decorrentes do sucesso de "Carcará", estava de volta ao Rio e, numa estratégia concebida em conjunto com o empresário Guilherme Araújo, apresentava-se numa boate de Copacabana cantando os sambas-canções sentimentais de que sempre gostou e a que emprestava forte carga dramática. Esse show tornou-se um grande sucesso da noite carioca e Bethânia somou uma imagem de figura de culto à grande popularidade que conhecera logo de seu lançamento nacional, o que a colocou no caminho certo para tornar-se a diva que ela é até hoje. Datam desse período suas aparições usando peruca de cabelos lisos e o pedido explícito que me fez para que eu nunca mais opinasse sobre como ela deveria orientar seu trabalho ou sua vida. Esse pedido representava o golpe de misericórdia na responsabilidade sobre ela que meu pai tinha me outorgado - e significou para mim um considerável alivio. Para ela, era a emancipação oficial. Em conseqüência, embora eu a visse toda noite por grande parte do tempo que durou sua primeira temporada na boate (que a principio se chamava Cangaceiro mas em breve passou a se chamar Barroco, sem que nem um nem outro nome determinasse de forma alguma o estilo de música que se ouvia ali), a convivência entre mim e Bethânia se rarefez consideravelmente.
Guilherme Araújo me dera a incumbência de fiscalizar a produção do show - ou seja: cuidar para que tudo estivesse em ordem com os músicos, a própria Bethânia, o som, a luz etc. na hora de ela entrar em cena. Lembro que Dedé ia comigo mas não tinha permissão de entrar por ser menor de idade (tinha dezessete anos) e ficava na porta esperando por mim. Edu Lobo freqüentemente lhe fazia companhia em frente à boate ou nas suas imediações; não raro eles ficavam sentados na beira da calçada até que eu pudesse sair. Sandra, a bela irmã mais velha de Dedé que viera ao Rio passar uma temporada, aparentemente era o estímulo extra para mais esse gesto de generosidade por parte de Edu: ela vinhaquase sempre acompanhando Dedé, e em breve Edu já lhe fazia a corte, no que não foi de todo malsucedido. O mais importante baterista da história do samba moderno, Edson Machado, estava tocando com Bethânia, assim como o pianista Osmar Milhito, entre outros músicos, todos muito bons, todos jazzísticos e todos oriundos do Beco das Garrafas. Bethânia não é, em nenhum aspecto, uma cantora jazzística. Mas sua chama pessoal, o sucesso que o show fazia e o mero gosto de tocar na noite não permitiam que esses músicos se sentissem entediados por estar tocando temas que lhes podiam parecer antiquados, e, ainda por cima, arranjados de modo a produzir antes um efeito dramático do que uma exibição de musicalidade. No entanto, foi por essa época que aprendi que os instrumentistas se referem aos cantores (jazzísticos ou não) como "canários" ou "sinos", sempre em tom pejorativo. Se Bethânia não queria meus conselhos, oferecia-me agora, em nossas conversas, uma versão mais consciente e explícita do seu modo típico de me ensinar sobre a vida. Nossas conversas eram mais raras, mas eram mais francas e, por parte dela, mais intencionais. Assim foi que ela me chamou a atenção para o programa de Roberto Carlos na TV.
Eu frequentava umas interessantes sessões semanais de MPB promovidas por Cléber Santos no Teatro Jovem, no Mourisco. Cléber é que tinha me indicado o Solar da Fossa como opção de moradia. Nessas noitadas do teatro que ele dirigia, compositores conhecidos mostravam canções inéditas e novos talentos se apresentavam. Ali se ouvia música e se discutia sobre a produção de música, sobre a profissão dos músicos e sobre os problemas estéticos da música pós-bossa nova. Sambistas tradicionais dos morros e estrelas da bossa nova podiam se encontrar no palco e na platéia. Figuras como o filólogo Antônio Houaiss (que nos anos 90 veio a ser ministro da Cultura) e o apresentador Sargentelli (que nos anos 70 e 80 se tornou famoso com seus shows de mulatas para turistas) atuavam como mediadores. A ênfase caia quase sempre na defesa das nossas tradições nacionais contra a internacional americanização. Claro que eu contrapunha, dentro de mim, o que ouvia às idéias que me vinham de Rogério e Agrippino. A própria postura de Cléber Santos e da turma do Teatro Jovem era de flexibilização das posturas ortodoxas da esquerda nacionalista. E também não
havia debate cultural ou político que escapasse das paródias caricaturais de Terra em transe.
Mas sempre podia aparecer alguém simplesmente maravilhoso, que estivesse ou se pusesse acima de minhas dúvidas. Um garoto judeu pernambucano, de cara fechada e cabeça raspada, pareceu ser esse alguém. Com um ar de angry-y oung-man, cantando uma canção sobre uma retirante nordestina demasiado individualizada para representar "o povo do Nordeste" ou os "pobres", com uma melodia diferente de todas as estilizações que a música de forte sabor modal daquela região do Brasil vinha sofrendo, ele causou o único impacto de todas aquelas noitadas. (Um outro músico judeu, muito talentoso, Sidney Weissman, esfriou meu entusiasmo com a revelação de que a suposta originalidade de Franklin Dario - era esse o nome do garoto - se devia unicamente ao fato de ele se apropriar de temas folclóricos judaicos. A sua canção mais sedutora, porém, "Ana foi embora", foi logo gravada por Nara e, a meu ver, seu encanto resiste até hoje, embora o que Weissman me disse então tenha se confirmado em larga medida - o que mostra também o quanto eu era ignorante. Franklin Dario só apareceu no Teatro Jovem duas ou três vezes, tendo declarado que não queria fazer carreira ou tornar-se conhecido, pois nem sequer continuaria morando no Brasil: queria ir para Israel e tornar-se soldado para lutar pela defesa daquele país. Ele de fato mudou-se para Israel e ninguém nunca mais soube dele No início dos anos 80, quando me apresentei em Tel Aviv, procurei noticias suas entre as comunidades de judeus brasileiros ali e nada encontrei.) Todas as discussões, dentro ou fora do Teatro Jovem, eram permeadas pelas idéias de arte nacional-popular, cultivadas, desde antes do golpe de Estado, no Centro Popular de Cultura da UNE, e pelas exigências estéticas dos harmonicamente sofisticados filhos da bossa nova. Bethânia, cujo não - alinhamento com a bossa nova a deixava livre para aproximar-se de um repertório variado, me dizia explicitamente que seu interesse pelos programas de Roberto Carlos - que ela me convidava a partilhar - se devia à "vitalidade" que
exalava deles, ao contrário do que se via no ambiente defensivo da MPB respeitável. Era excitante imaginar quão escandaloso seria revelar, no ambiente do Teatro Jovem, interesse pela Jovem Guarda. E, de fato, algum tempo depois, os participantes daquelas reuniões reagiram com maior indignação ao fato de a bossanovista Sy lvia Telles ter cantado, num show estudantil em São Paulo, uma canção de Roberto Carlos, do que à vaia com que os estudantes paulistas puniram a ousadia da cantora.
Gil, que estava em São Paulo mantendo mulher e duas filhas pequenas com um emprego na Gessy Lever, aparecia com freqüência no programa O Fino da Bossa, liderado por Elis Regina. Esse programa era o maior sucesso da televisão brasileira e nascera da sagacidade empresarial dos donos da TV Record de São Paulo, Paulo Machado de Carvalho e seus filhos, em perceber o apelo de público - o potencial de audiência e prestigio - que a música popular representava no Brasil. O jovem produtor Solano Ribeiro, idealizador do primeiro festival da canção, que teve lugar na concorrente TV Excelsior de São Paulo, em que Elis explodiu cantando "Arrastão" de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, encontrara, depois da breve mas promissora experiência na Excelsior, a receptividade dos empresários daquela outra emissora, e inaugurara ali um estilo de programa que influenciaria tanto a televisão quanto a música. A ideia dos concursos de canções (os "festivais") tinha sido emprestada do Festival de San Remo, na Itália, mas, no Brasil, pelo que se viu nessa primeira experiência, ganharia características diferentes - e um outro peso. Depois da bossa nova, passara-se a levar música popular muito a sério no Brasil. E isso em todos os sentidos: dos aspectos propriamente musicais e literários aos políticos, havia uma atitude pretensiosa e responsável em toda atividade ligada à canção. (Lembro de uma noite, no Cervantes, em que o prestigiado diretor teatral Flávio Rangel, ao me reconhecer sentado a uma mesa próxima à sua, e comentando minhas canções "Um dia" e "Boa palavra", que ele dizia considerar demasiadamente palavrosas, gritava-me com sua voz fininha e sem o menor pudor de parecer despropositado: "Há que ler Ezra Pound, há que ler Ezra Pound!": eu próprio não sabia bem quem era Ezra Pound, de quem vim a ouvir falar com incrível freqüência a partir do momento, um pouco mais tarde, em que travei conhecimento com os chamados "poetas concretos" de São Paulo: mas todos os presentes tanto à minha mesa quanto à dele reagiram como quem soubesse tratar-se de um nome digno de reverência.)
O "Arrastão" de Elis tinha apresentado, de forma televisiva, uma eficientíssima síntese das ambições políticas da ala populista-nacionalista com as experimentações jazzísticas da ala do Beco das Garrafas. Comparado ao de Nara, Sylvia Telles, Carlos Lyra e, sobretudo, João Gilberto, o estilo de Elis parecia enfático e extrovertido. Mas, ao contrário do que acontecera com Bethânia, com Elis o drama e os grandes gestos voltavam à MPB via televisão e não via teatro. Ela possuía uma voz limpa e brilhante, e sua segurança em termos musicais impressionava. A canção "Arrastão", revisitando a temática caymmiana de crônica da vida de pescadores pobres, dava continuidade ao trabalho de estilização da música nordestina que vinha sendo desenvolvido por Edu Lobo, o jovem carioca filho de nordestino, que era o autor -cantor do momento. (O pernambucano Fernando Lobo, seu pai, foi um excelente, ainda que pouco profícuo, compositor, responsável por algumas obras-primas dos anos 40 e 50 - inclusive uma parceria com o próprio Caymmi.) As canções de Edu apresentavam a novidade de trazer de volta uma dimensão épica à música brasileira moderna, o que produzia forte impressão de contraste com o intimismo lírico da bossa nova. Mas, embora representassem também a ressurreição dos sabores regionalistas, essas canções não regrediam tecnicamente a primarismos harmônicos ou simplismos melódicos folclóricos pré-bossa nova. Ao contrário, Edu já era então o que tem sido até hoje: um sofisticado harmonista, um melodista inventivo e um estilista de forte marca pessoal. Em "Arrastão", como em muitas outras composições suas da época (inclusive as canções de Arena conta Zumbi), o desejo de sair do apartamento para os grandes espaços, do individual para o social, do urbanismo neutro para o particularismo regional - desejo que vinha filtrado por uma técnica de composição avançada - levava-o muitas vezes para mais perto de Hollywood do que seria aconselhável, mas sem que isso chegasse a ameaçar a força de sua música rica e consistente. O modo como Elis a apresentou na Tv - pontilhada de convenções rítmicas que ela frisava com movimentos de quase-dança excessivamente destros, e a que não faltava um triunfal desdobramento de andamento no final - talhou um estilo tremendamente eficaz de apresentação de música sofisticada na TV que fez dela uma grande estrela de massas com alta respeitabilidade técnica. Sem deixar de entusiasmar -me com seu evidente talento, eu, um joão-gilbertiano radical, me agastava com a vulgaridade dos efeitos jazzísticos pré-cool e com a expressão corporal treinada pelo dançarino americano radicado no Brasil Lennie Dale. O Fino da Bossa, inspirado nos famosos espetáculos universitários de bossa nova promovidos por Walter Silva, o Pica-Pau, e musicalmente calcado nos shows do Beco das Garrafas de Copacabana, onde brilharam Wilson Simonal, Leny Andrade, Edson Machado e tantos instrumentistas excelentes, e onde Elis fez sua transição de cantora comercial de pop romântico de baixo nível para cantora do que se chamava de "samba-jazz", era ambiente propício para um talento como o de Gil, um compositor inspirado, dono de exuberante técnica violinística e de um ouvido prodigioso que o capacitava a improvisar em scats comparáveis aos de Ella Fitzgerald. Ele, por causa de sua presença no Fino da Bossa, tornara-se consideravelmente conhecido e, a pouco e pouco, afastava-se do emprego na Gessy Lever e acercava-se da vida de artista.
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