terça-feira, 5 de março de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*






Convoque seu buda

“Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado”. São com essas palavras que Georges Didi-Huberman encaminha o encerramento do seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes.
Antes, o autor escreve que “o ‘verdadeiro fascismo’ é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que ‘conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria sociedade’, e é por isso que é preciso chamar de genocídio ‘essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”.
Didi-Huberman está analisando “o poder específico das culturas populares, para reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação antropológica para a sobrevivência”. Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre outros: Mano Brown, Emicida e Criolo.
Ouço Criolo como um vaga-lume antropófago, contemporâneo, deglutindo as inúmeras referências da cultura brasileira e mundial. As canções do discoConvoque seu Buda (2014) são tão autônomas quanto dependentes na montagem abstrata, via deslocamentos, dessa cultura. Os sujeitos cancionais criados são vaga-lumes que sobrepõem tradição e contradição.
A rede de citações, reminiscências e referências a textos extra cancionais aponta a inquietação de Criolo com a existência. E “o que mais pedir a um filósofo senão inquietar seu tempo, pelo fato de ter ele próprio uma relação inquieta tanto com sua história quanto com seu presente?”, pergunta Didi-Huberman.
Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do espetáculo, passando por referências religiosas, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura trabalhada por Criolo: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Ui monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é colar com Barrabás” (“Fio de prumo”).
Mas a complexidade das citações não se limita aos textos das canções. Notem-se também as sobreposições sonoras. Por exemplo, podemos perceber a criação de outros objetos melódicos, na textura de “Esquiva da esgrima” - maracatu, rap, capoeira em amálgama - , bem como na mistura de percussão de samba com levada de guitarra elétrica (“Fermento pra massa”).
Aliada a isso, adensando o emaranhado de fios-signos, há a voz de Criolo. Para cada canção uma entonação, um modo de dizer, uma performance, um gesto vocal à procura da batida perfeita do fazer cancional.
A voco-performance de Criolo – canto/falado, fala/cantada – equilibra-se entre o épico e o trágico, ou seja, entre a voz do povo de um lugar e a subjetividade. Esse jogo entre local e universal amplia e potencializa a presença dos sujeitos cancionais: “Verso mínimo, lírico de um universo onírico” (“Esquiva da esgrima”). Sem contar com a ironia utilizada na performance vocal de “Cartão de visita” adensando o esnobismo burguês apresentado na letra, por exemplo. “A questão dos vaga-lumes seria, então, antes de tudo, política e histórica”, escreve Didi-Huberman.
Por sua vez, a contundente beleza terrível de “Casa de papelão”, canção que aborda frontalmente o horror do crack e da falta de moradia, é exemplo disso: “Olhos nos olhos sem dar sermão / Nada na boca e no coração / Seus amigos são um cachimbo e um cão / Casa de Papelão (...) Toda pedra acaba, toda brisa passa / Toda morte chega e laça (...) Prédios vão se erguer e o glamour vai colher / Corpos na multidão”. Não à censura e sim ao olhar social dignificante, pois “Cada maloqueiro tem um saber empírico” (“Esquiva da esgrima”).
Penso ainda que “Plano de Voo” exemplifica bem o gesto antropófago de Criolo. Letra, melodia e voz se amalgamam numa narrativa falhada, numa não-narrativa. Temos aqui uma colagem, apropriações de elementos que não se adequam, mas constituem a pintura abstrata potencializadora de voos do pensar. As múltiplas imagens evocadas na letra proliferam o conteúdo do “plano de voo” condensado no título da canção.
Vale lembrar que em “Chuva ácida” (Ainda há tempo, 2006), Criolo convidou: “Vamos parar com isso, aprender sobre a coleta seletiva de lixo”; e em “Lion man” (Nó na orelha, 2011) Criolo cantou “Vamos às atividades do dia: / Lavar os copos, contar os corpos e sorrir / A essa morna rebeldia”. Agora, em “Casa de papelão”, ele convoca: “Vamos cantar pra nossos mortos / Vamos chorar pelos os que ficam / Orar por melhores dias / E se humilhar por um novo abrir”, recusando o espetáculo comercializável e exaltando a dignidade civil.
Nesse sentido, Criolo imita o caos da cidade, a caoticidade, por evocar a natureza da cidade na língua da canção, promovendo um pensamento farmacêutico daquilo que envenena. E vice-versa: “Do monstro que se constrói com ódio e rancor / A cada gota de bondade uma de maldade se dissipou” (“Plano de voo”).
Mas é em “Fio de prumo” que a antropofagia, isso que nos une socialmente, economicamente, filosoficamente, alcança a justa solução estética. Depois de uma introdução instrumental ruidosa, “Fio de prumo” abre com “Padê onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É o preparo do encerramento dos trabalhos do disco. É saudação e canto a Exu, Vodu e mensageiros da travessia e do destino. Todos juntos no padê do céu dos orixás. Nesse sentido, fio de prumo é instrumento usado na construção civil e, no caso, do cidadão – tema nodal das canções de Criolo. E fio de prumo é o bastão de Exu, orixá da comunicação, dos contatos.
Como vemos, em Convoque seu buda a ideia não substitui o sensível, a vida nua, a experiência crua. Ao contrário. “A poesia existe nos fatos”, escreveu Oswald. Criolo imita na voz a natureza das mundivivências que canta e inscreve vigor ao estilhaçar a narrativa – “Aço, peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho” (“Fio de prumo”) – de seus sujeitos cancionais tiranizados pela língua e pela vida.
Criolo é vaga-lume. Afirmo isso por encontrar na sua obra-vida um “saber-vaga-lume. Saber clandestino, hieroglífico, das realidades constantemente submetidas à censura” (Didi-Huberman). Em Criolo, “as imagens sonhadas sob o terror [“A estética do mal no terror psicológico”] tornam-se então imagens produzidassobre o terror” (idem). Criolo implode os tipos que estão na base de nossos julgamentos éticos e políticos, colocando de pé uma nova ontotipologia: “Cada coração é um universo e ainda tem que bombear o sangue”, diz. A obra de Criolo convida: Se oriente, rapaz. Se afroriente, rapaz.


***

Fio de prumo (Padê Onã: Douglas Germano)
(Criolo)


Laroyê Bará
Abra caminho dos passos
Abra caminho do olhar
Abra caminho seguro para eu passar

Laroyê Legbá Tomba o mal de joelhos
Só levantando o Ogó
Dobra a força dos braços que eu vou só

Laroyê Eleguá
Guarda Ilê, Onã, Orum
Coba xirê deste funfum
Cuida de mim que eu vou pra te saudar

Muros de concreto: infeto
De pedra, cal, cimento: dejeto
Aponta pra cabeça: Ori
A cidade um cronista: Ogi

E a dobra do dorso do operário na rua
Labirinto, fauno, sombra, luz da lua
Aço, peito, flecha, caminho
Magma, lava, inveja, vizinho
Posto de saúde dos anos 80
AAS, Benzetacil, cibalena
Vida real dessa filosofia
Máquinas comem você, meio dia

O ponteiro, o relógio, a corrida pro pódio
A estética do mal no terror psicológico
Espelho, perdão, lâmina, credo
Ocupar essa praça, honesto
A favela aguarda atenta ao revide
Manifesto vira piada, declive
Corrida clichê desagradável, Pai
Fetiche de playboy é colar com Barrabás
Todos os dias na biqueira alguém vai
Pra deixar um pouco mais a alma em stand by
O que faremos, então? Sem provocar alarde
Sepulcro mediano me mate nessa tarde

Beberemos
Nesta água, Nicodemos
Oremos
Pois vamos suar veneno






* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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