Por Marcos Napolitano*
RESUMO: A partir de fontes pesquisadas junto às coleções documentais da polícia política ligadas ao regime militar brasileiro, podemos vislumbrar não apenas o impacto do autoritarismo na cena musical brasileira, entre 1968 e 1981, mas também a lógica da repressão e do controle do Estado autoritário sobre os músicos. Nesse período, o controle da circulação das canções e da realização de shows com cantores esquerdistas (ou simpatizantes) marcou a atuação dos órgãos de censura e repressão, voltados principalmente (mas não apenas) contra o gênero MPB. Neste trabalho, analisaremos o imaginário produzido pelos agentes repressores e a “lógica da produção da suspeita” sobre a MPB. Palavras-chave: Brasil: Música e Política; Brasil: regime militar; Resistência democrática.
A VIGILÂNCIA SOBRE OS EVENTOS MUSICAIS
A explosão dos festivais da canção, sobretudo os festivais da TV Record
de São Paulo, a partir de 1966, coincidiu com o crescimento da agitação estudantil. A “setembrada” estudantil daquele ano, quando os estudantes saíram
às ruas para protestar contra o regime, foi seguida pela “outubrada” musical,
culminando no frenesi provocado pelas apresentações de A banda e Disparada, esta última consolidando a vocação de sucesso comercial da canção engajada brasileira. No ano seguinte, os serviços de vigilância e repressão apontavam, em Informação produzida pelo II Exército de São Paulo,15 a TV Record
e a Rádio Panamericana (atual Jovem Pan) como “foco” de “ação psicológica
sobre o público, desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de
orientação filo-comunista, atualmente em franca atividade nos meios culturais”. O relator dá nome aos “agentes do grupo”: Ellis [sic] Regina, Gilberto
Gil, Nara Leão, Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré. O restante do
documento é uma mistura de fragmentos de delação, registros de eventos
públicos e considerandos do agente:
2. A ação se desenvolve através da chamada “música de protesto”, numa propaganda sub-liminar muito bem conduzida. Entre as músicas mais difundidas
por aquelas emissoras, destaca-se AROEIRA, de Geraldo Vandré, cujo texto
emprega ostensivamente a revolta e a subversão.
3. Geraldo Vandré, que é também fiscal da SUNAB, é tido como comunista atuante. Consta que seu pai, médico em João Pessoa, é um dos chefes comunistas
do Estado da Paraíba.
4. No dia 5 de julho teve início o programa “DIA DA M.P.B.” desenvolvido pelo
referido grupo. O programa procura interessar particularmente aos estudantes, alguns, portando cartazes com inscrições também de protesto, outros com
frases MPPD (Movimento Popular Pela Democracia). O programa desse dia
foi dirigido pela cantora Elis Regina, o próximo, dia 12/07, será dirigido por
Geraldo Vandré.
Os espetáculos organizados pelos centros acadêmicos e diretórios estudantis eram particularmente vigiados. A respeito de um espetáculo de MPB
promovido em 1972 pelos universitários do curso de Direito e de Engenharia
da PUC-RJ, o agente escreveu:
O show teve como animador o universitário de direito Arlindo*, que apresentou Chico Buarque, Sérgio Ricardo, MPB-4 e outros. O apresentador mencionado ... é elemento ativo no meio estudantil, inclusive freqüentando reuniões no
DCE, não se omitiu fazendo diversas insinuações em tom de blague, inclusive
fez solicitação em nome dos colegas universitários da PUC para que todos lutassem para que fossem soltos os elementos detidos recentemente na PUC...
Os serviços de informação apontavam todas as situações que pudessem
ser consideradas potencialmente subversivas, ainda mais quando envolviam
artistas reconhecidamente engajados e de esquerda. Durante o mesmo show,
o agente destaca a performance de Sérgio Ricardo:
Outro a fazer insinuações durante a sua apresentação, sempre com comicidade e picardia, mas de modo bem discreto foi o cantor Sérgio Ricardo, que inclusive cantou certa canção não inserida na programação distribuída que fixava as
primeiras letras do alfabeto, frisando a letra C, perigosa, que tomassem cuidado
por ser a inicial de COMUNISTA.
Os relatórios de informação utilizavam-se de agentes infiltrados que esquadrinhavam o ambiente e arrolavam todas as formas de ação e palavras de-ordem que pudessem caracterizar um clima de comício político. Por ocasião do I Festival Universitário de Niterói, em março de 1972, registrou-se o
seguinte:
1. No palco via-se uma faixa que dizia “AMANHÃ SERÁ OUTRO DIA” e os universitários cantavam o samba “APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER
OUTRO DIA”, de Chico Buarque.
2. O conjunto MPB-4, empregando a melodia do hino das “Olimpíadas dente
de leite”, fizeram [sic] propaganda de um “produto que deixava o ‘dedo duro’
e que podia enfiar o dedo na...”.
3. Leram um artigo sobre a prisão de universitários da PUC e correram uma faixa onde se lia “SECUNDARISTAS SOLIDÁRIOS COM OS UNIVERSITÁRIOS”.
4. Ao final do “show”apresentaram uma faixa, que dizia: PELA CULTURA, CONTRA A CENSURA.
5. Uma camionete da Agência Fluminense de Informações, órgão do Palácio do Governo dirigida por um tal de Dr. Flávio, percorreu a cidade, fazendo propaganda do festival.
6. Distribuíram as folhas anexas a todos que compareceram.
7. Distribuíram outra folha mimeografada, somente a estudantes com carteiras.
Frequentemente, dentro da estratégia da “reiteração” da suspeita com base em eventos passados, os documentos produzidos pela repressão aludem às
relações e a outros contextos que pudessem potencializar a suspeita. Ao anotar suas impressões sobre um show de Vinícius, Toquinho e Marilia Medaglia, parte do “circuito universitário” de 1972, o agente destaca que Marilia
Medaglia era “a segunda esposa de ... Isaias Almeida Medalha, de posição ideológica contrária ao regime” e adverte:
Segundo informe ... os epigrafados, com outros integrantes do movimento
denominado ‘Música popular brasileira’ estão visitando universidades da capital
e interior, alertando-se para uma análise estimativa sobre as intenções a que se
propõem, recordando-se atividade semelhante no ano de 1967 com a fase de
aglutinação do movimento estudantil iniciado com programa congênere de Geraldo Vandré, seu idealizador.
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