segunda-feira, 27 de novembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




43 - Raul Sampaio, parceiro de vida

Lurdes era obstinada em refazer o Trio de Ouro. Sabia que era o fermento da vida de Herivelto e insistiu muito com ele para acertar com Raul Sampaio a volta do Trio e para, juntos, procurar nova cantora. Ao aceitar, muito honrado, o convite de meu pai, Raul também foi morar na casa dele na Urca. Eu atravessava um momento de total in-quietação interior, no auge da adolescência, e passei a estar muito tempo com Raul. Ele foi um grande amigo e até contribuiu em minha formação de vida. Com sua personalidade tranquila, de bem com a vida, representou um oásis em minha juventude turbulenta. Nossos longos papos, os conselhos carinhosos, a respeitosa visão da vida foram fundamentais para a minha formação. Raul me ensinou o gosto pela leitura, pela poesia. Recomendou-me muitos livros para ler, principalmente os de autores espíritas, como Alan Kardec. E até o confuso Pietro Ubaldi, do qual li A grande síntese. Em minha simplicidade juvenil, devolvi a Raul dizendo: “Desse aqui não entendi nada”. Foi também por intermédio de Raul que conheci um livro que me marcou muito, Eu e outras poesias, a única obra de Augusto dos Anjos. Quando o procurei para contar que escreveria sobre meu pai, disse que suas impressões eram muito importantes para mim, porque ele havia sido o grande parceiro de vida de Herivelto e trabalharam juntos por quarenta anos. Com o habitual bom senso, Raul expressou sua preocupação sobre como eu abordaria a figura dele: “Pery, é necessário muito cuidado para falar de seu pai. Ele era uma personalidade controvertida, com facetas muito feias amplamente divulgadas. Mas não podemos esquecer que também tinha o seu lado bonito, nem sempre tão conhecido”. Numa primeira impressão, lembra Raul, Herivelto era tido como antipático, mas se a pessoa vencesse isso, aprendia a gostar dele e descobria o brilhantismo de sua conversa, o seu humor picante e inteligente. Ao mesmo tempo que era uma pessoa egocêntrica, também sabia ser generoso com os amigos. Muito polêmico, comprava brigas para valer. Era fiel aos amigos e lutava por eles. Raul ressaltou outros aspectos controvertidos de meu pai. Sempre autoritário e pre-potente, era muito mais simpático com os humildes do que com as pessoas de posses. Por isso, era amado pelas pessoas mais simples, como os integrantes de sua escola de samba ou os frequentadores do centro espírita. Muito metódico em sua vida financeira, Raul considerava Herivelto um gastador e vivia aconselhando-o a comprar alguns imóveis, a fazer um patrimônio. Meu pai respondia: “Pra quê, Raul? Pra deixar pra filho? Isso é bobagem!”. Conta Raul que, em seu tempo na Urca, meu pai sempre dormiu até mais tarde, e como Lurdes queria companhia para ir à praia, ele sempre a acompanhava. Iam para as pedras de manhã cedo, em frente da casa, e ficavam tomando sol e desfrutando da água, até que meu pai fosse se juntar a eles. Nessas manhãs, o papo rolava e, com a in-timidade que passou a existir, muitas confidências eram feitas. Num desses dias, conversavam sobre meu pai, sobre o peso da separação dele e de Dalva, e Lurdes desabafou: “Sabe, Raul, deixa eu explicar uma coisa: eu não amo o Herivelto como o grande amor da minha vida. Eu gosto dele. Sei que deixou sua mulher por mim . Considero-o um homem muito inteligente, um sujeito trabalhador. Enfim, um bom chefe de família, numa situação financeira que sei que vai melhorar, à medida que passar a grande crise de sua vida… Tudo isso contribui para que eu fique com ele. Mas garanto que ele não é o meu grande amor”. Ao escutar isso de Raul, senti que se encaixava no que sempre observei. E respondia a certas perguntas que fazia a mim mesmo e que não haviam ainda sido esclarecidas. Para Raul, mesmo não tendo uma relação tão apaixonada com meu pai, ela era muito dedicada a ele e empenhada em fazer o casamento funcionar. Herivelto era muito atencioso com Lurdes, comenta Raul, mas sem beijinho, sem chamego. Tinha orgulho e vaidade em mostrá-la, mas não existia ternura nele. Aliás, somente com os netos ele viu Herivelto ser carinhoso. Sentia que meu pai era muito dependente de Lurdes. Quando viajavam a trabalho, não sossegava enquanto não ligasse para ela. Por fim, Raul me deu sua opinião sobre a vida amorosa de meu pai: “Herivelto amou desesperadamente a Lurdes. A Dalva era apenas a mulher do Trio, que era a vida dele. Penso que, primeiro, ele casou com a Dalva-cantora, depois com a Dalva-mulher. Nesse esquema, ele juntou tudo. O Trio estourou, o dinheiro dos dois ficava na sua mão, ele controlava tudo. Com a Lurdes foi diferente, nela ele viu apenas a mulher”. Raul Sampaio foi mais um companheiro fiel do meu pai do que um parceiro de música, apesar de terem feito algumas jun-tos. Mas não foi com Herivelto que ele se mostrou o compositor sensível e fértil que é. Teve canções gravadas por artistas como Orlando Silva, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Maria Bethânia e um conterrâneo de Cachoeiro do Itapemirim, Roberto Carlos, que consagrou sua canção “Meu pequeno Cachoeiro”. Com meu pai, ele atravessou quatro décadas de trabalho com o Trio de Ouro, passando por três cantoras: Noemi Cavalcanti, Lourdinha Bittencourt e, nos últimos anos, Shirley Don. Aliás, Shirley me contou uma historinha com meu pai. Disse que era motivo de muito orgulho para ela trabalhar ao lado de Herivelto, partilhando de tantas homenagens emocionantes que ele recebeu nos últimos tempos, e comentou sobre sua famosa disciplina no trabalho. Ele era muito respeitoso e delicado com ela. Porém, passado um ano da morte da esposa, quando começou a se re-cobrar, mudou de postura. Começou a se in-sinuar, a convidá-la para jantar. Shirley, não querendo magoá-lo nem estragar o trabalho deles, foi disfarçando e fazendo que não entendia. Não adiantou, ele foi mais fundo e se declarou a ela. Disse que queria refazer sua vida e a pediu em casamento. Muito surpresa e sem graça, ela foi honesta com meu pai, dizendo que tinha admiração por ele, mas sentia um carinho quase que de filha. Herivelto não se deu por vencido e ainda tentou argumentar que poderia lhe oferecer uma boa situação de vida. Diante disso, Shirley teve de ser mais enfática e dizer que real-mente não havia a menor chance, pois era muito mais jovem que ele — tinha uns 38 anos e meu pai 80 — e sonhava ainda com um casamento por amor e não por conveniência. Essa paixão de meu pai por Shirley rendeu situações engraçadas. Um dia, fui vê-los participar de um concurso de música sacra numa igreja do centro do Rio. Ele era convidado especial para cantar “Ave Maria no morro” e insistiu para que ela fosse sua acompanhante nessa homenagem . Como Shirley já havia me contado sobre a paquera de meu pai, sentiu-se à vontade para me pedir ajuda: “Pery, vê se fica perto e não me deixa sozinha com seu pai. Ele está terrível hoje, não me dá folga!”. Respondi que me poupasse, eu não queria me meter nos assuntos dele. Além do mais, tinha de cuidar do meu filho Bernardo, que estava comigo e, como toda criança, não conseguia ficar parado. Mesmo assim, a toda hora Shirley estava perto de mim . De re-pente, ela me chamou para fora da igreja e, rindo muito, me contou: “Pery, ficou pior ainda a situação. Agora, seu pai, me vendo com você o tempo todo, ficou nervoso e cismou que prefiro você a ele. Está morrendo de ciúme! ”. Meu pai não era brincadeira em assunto de mulher…



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