segunda-feira, 10 de abril de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*



11 - O trio de ouro

Do Trio de Ouro eu me lembro com muita saudade. Se Dalva era o brilho, com sua força de interpretação e postura de grande dama da canção, Nilo Chagas, elegante, charmoso e musical, dava um toque senhorial ao trio. Herivelto, miúdo, muito ágil, imprimia dinâmica ao grupo; criador da maioria das composições e dos arranjos vocais, era o líder. Nilo Chagas, elegante dentro de um summer branco, meu pai também de summer e minha mãe vestindo invariavelmente  um soirée, brilhando elegantíssima nos palcos da Urca ou do Quitandinha. Nilo Chagas, o Gangá, sempre mereceu meu carinho e respeito. No palco, parecia um deus negro, em sua elegante postura. Passados todos esses anos, guardo a lembrança clara dele cantando uma canção de Caymmi: Roda pião, bambeia pião… Ou quando entrava sozinho no palco: Eu ando pelas ruas da cidade Buscando não há meio de encontrar Um samba com alguma novidade Não há mais um motivo pra espera… Em seguida, surgiam meu pai e minha mãe, cantando suas estrofes da canção. Era o “Samba pra três”, composto por Herivelto para contar a união do Trio. O encontro artístico de Herivelto com Nilo, numa época em que o negro não tinha nenhuma representatividade, marca mais uma vez o instinto pioneiro de meu pai. O fato de Nilo ser negro — e o Cassino da Urca não permitir a presença de negros! — tornou Herivelto uma pessoa orgulhosa de seu prestígio e força na profissão. Somente a Nilo e Grande Otelo era permitida a entrada no Cassino da Urca, e eles só eram aceitos graças ao sucesso do Trio. A disciplina e a ordem no Cassino da Urca eram rígidas. Não se permitia a entrada de menores de 18 anos, nem na plateia nem no palco. Assim, minhas tias Lila e Margarida, as irmãs de Dalva, ainda menores de idade, tinham de se esconder no camarim de Otelo quando a fiscalização do Juizado aparecia. Só quando os fiscais iam embora elas podiam retornar ao palco para participar do show com o Trio . Dalva imitava muito bem voz de criança, e meu pai tirava grande partido disso num número em que ela interpretava a Zefinha, fazendo o maior sucesso com a plateia. Essa sua performance chamou a atenção da produção do programa Escolinha do Manduca, da Rádio Nacional, onde atuavam Brandão Filho, José Vasconcelos, Lauro Borges e Castro Barbosa (do PRK-30), entre outros comediantes. Dalva começou a participar do programa. Uma dessas apresentações coincidiu com um show do Trio no Cassino. Herivelto não se afobou. Vestiu a roupa de cena em Margarida, penteou-a como Dalva e botou-a no palco, no show Vem, a Bahia te espera. Travestida assim, ninguém percebeu a diferença… menos Chianca de Garcia, diretor do show. Logo depois do encerramento, foi elogiar Margarida pela coragem e meu pai pela cara de pau! O Trio de Ouro lotava as casas de espetáculos por onde passava: Recife, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte. Pela primeira vez, abriam-se em vozes os arranjos vocais feitos por Herivelto para suas próprias composições e de Dorival Cay mmi, Hekel Tavares, Benedito Lacerda, Príncipe Pretinho e muitos outros. Eu sentia orgulho e amor quando os via no palco, em Petrópolis ou Niterói, Pampulha ou Guarujá. Muitas vezes, ainda bem pequeno, ia junto para o palco e ficava na coxia, pudesse ou não entrar, tivesse ou não autorização. Precisava estar com eles, queria vê-los sempre no palco. Minha infância toda se passou admirando e amando aqueles dois seres. Sabia os arranjos, as letras e as vozes de cada um. Até hoje tenho claramente na lembrança seus timbres vocais e sua postura no palco. Eram divinos, a música em sua mais alta manifestação. E eram meus pais! Herivelto impunha uma disciplina severa ao Trio, e os ensaios para introdução de uma música nova no repertório eram rigorosos. Ele era de uma dedicação impressionante ao trabalho. Nada era mais importante. Era sua fonte de vida, de dignidade. E ofereceu esta dignidade a minha mãe. Não era somente a disciplina que caracterizava o trabalho de Dalva e Herivelto. A música era o grande elo, conduzia suas vidas. Tudo era marcado pela música e pela projeção que ela lhes oferecia. Era uma religião. Sei que herdei isso deles. Assistindo a meus pais criança ainda, talvez já pressentisse meu caminho. Aprendi com eles o significado do trabalho e da devoção ao palco. Se faço, faço benfeito. Tenho compromisso com essa religião, com a qualidade, tenho sempre de me orgulhar do que faço. Num depoimento saudoso, a cantora Marlene ressaltou o sentido de obediência total de Dalva e Nilo ao comando de Herivelto, que não permitia palpite dos dois companheiros. Ele definia o repertório, os arranjos, a distribuição das vozes, os figurinos do grupo e até o cabelo de Dalva. Dominava tudo. Na atuação do grupo, transparecia essa “ditadura” de Herivelto. Em relação a Dalva, Marlene enfatizou: “Ela era muito submissa, mal levantava os olhos. Tinha adoração e respeito por ele. Isso causava na gente uma grande admiração. Achávamos o grupo perfeito e dizíamos que o Trio de Ouro não ia acabar nunca ”. Esse sentimento era entendido e respeitado por quem conhecesse o Trio de perto, na época. Resultado: o trabalho, o Trio, a música, tudo era impecável, quase perfeito. Só não era perfeita sua vida em comum. Nem tudo era tão cor-de-rosa como parecia.



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