Por Leonardo Davino*
terça-feira, 4 de abril de 2017
LENDO A CANÇÃO
Duas de cinco
"Ela conta uma epopeia sem Ulisses", afirma Criolo ao comentar o seu rap "Duas de cinco" (2013), em entrevista à revista Rolling Stone (out/2013). De fato, intercalando o uso da primeira pessoa - "E eu fico aqui pregando a paz / E a cada maço de cigarro fumado / A morte faz um jazz" - e da segunda pessoa do discurso - "Desigualdade faz tristeza / Na montanha dos sete abutres / Alguém enfeita sua mesa", Criolo faz o sujeito da letra deslizar de uma posição à outra misturando o juízo de valor que define e separa "culpados" e "inocentes".
Ou seja, aqui não há um Ulisses, ou mesmo um "João de Santo Cristo" (Legião Urbana), para ficarmos na clave de referências das epopeias cancionais, em busca de redenção. Há um sujeito impregnado de "realidade". Em "Duas de cinco" o sujeito não é narrador de algo externo a ele, é sujeito comum, qualquer um, alguém que vivencia os fatos fractalmente narrados, sem a homérica intenção de heroísmo. Ou, melhor, que faz da narração dos fatos uma vivência concreta da verdade.
A letra do rap de Criolo, que tem no sampler da canção "Califórnia azul", de Rodrigo Campos, a âncora melódica exata na composição da beleza crua, é um complexo tecido composto por uma enxurrada de informações dignas de vários nós na orelha do ouvinte: do jobiniano "É o cão / É o cânhamo / É o desamor / É o canhão / Na boca de quem tanto se humilhou", passando pela ressemantização da citação drummondiana "(...) no meio do caminho / Da educação havia uma pedra / E havia uma pedra / No meio do caminho", até o núcleo "Alô Foucault, / Cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy / Maquiavel nessa leitura", com o seu ensurdeceddor imbricamento de referências filosófico-literárias.
Se a melodia cancional de "Duas de cinco" fica por conta do uso do refrão de "Califórnia azul", no mais, o que temos é um rap-rap: canto/falado, fala/cantada, versos declamados. Sampleando "Compro uma pistola do vapor / Visto o jaco califórnia azul / Faço uma mandinga pro terror / E vou", Criolo fortalece este sujeito que precisa seguir narrando em meio ao caos, à injustiça e ao desamor. Faz isso listando uma sequência de gestos quase cinematográficos que registram o mundo ao redor: lírica e sociedade.
A estonteante profusão de citações e referências da cultura pop, de consumo, da literatura, da filosofia, do cotidiano, que, a princípio pode sugerir uma vontade vazia de demonstrar erudição, não é gratuita, ela serve à criação dos sons e ruídos deste mundo complexo do "tudo-ao-mesmo-tempo-agora" que vivemos.
"O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra", escreve Giorgio Agamben (O que é o contemporâneo?). Sujeito atento aos sinais de seu tempo, Criolo tece a letra como o indivíduo contemporâneo que precisa pensar - organizar o pensamento - para além do turbilhão de informações on line, on time, full time. Como de-cifrar tantas informações e experimentá-las na vida de modo ético? É este o mote do tratado que Criolo rascunha em "Duas de cinco".
Tendo de lidar com a inveja (o zoião cantado por Emicida), a ronda constante das drogas e da violência e a repulsa da burguesia glamourosa (ou da "burguesinha" cantada por Seu Jorge: "É salto alto, MD / Absolut, suco de fruta / Mas nem todo mundo é feliz / Nessa fé absoluta"), o sujeito de Criolo elabora um projeto de sobrevivência no inferno. "O rosto do carvoeiro / É o Brasil que mostra a cara", canta. Mas aponta que: "Pra cada rap escrito / Uma alma que se salva".
É esta vontade de salvar a alma cantando, fazendo rap, apontando o dedo refrator para as feridas sociais, de um governo "que quer acabar com o crack / Mas não tem moral para vetar / Comercial de cerveja" o mote do trabalho de Criolo. Colocar-se no meio, estar aberto à mediação, "pregando a paz" através do uso desta "língua piranha" para, denunciando os encastelados que sorriem diante da morte de "um de nós", reposicionar esta legião, este "nós" sempre vítima do silêncio sorridente da sociedade.
"Falar pra um favelado / Que a vida não é dura / E achar que teu 12 de condomínio / Não carrega a mesma culpa", vocaliza. Em tempos de "política do medo", quando o indivíduo é levado a crer que mais segurança implica em mais individualismo e investimento nas instâncias-ilha, Criolo investe naquilo que Tom Zé fala sobre a sabedoria (ciência) popular reprimida, que desceu do hipotálamo-aristotélico e foi parar no cóccix alimentando a cóccix-ência de quem precisa devorar tudo que lhe chega como informação para não ser devorado.
***
Duas de cinco
(Criolo)
É o cão
É o cânhamo
É o desamor
É o canhão
Na boca de quem tanto se humilhou
Inveja é um desgraça
Alastra de rancor
E cocaína é uma igreja
Gringa de le chereau
Pra cada rap escrito
Uma alma que se salva
O rosto do carvoeiro
É o Brasil que mostra a cara
Muito "blá" se fala
A língua é uma piranha
Aqui é só trabalho
Sorte é pras crianças
Que vê o professor
Em desespero na miséria
Que no meio do caminho
Da educação havia uma pedra
E havia uma pedra
No meio do caminho
Ele não é preto velho
Mas no bolso leva um cachimbo
É o sleazestack
Zóio branco
Repara o brilho
Chewbacca na penha
Maisena com pó de vidro
Comerciais de TV
Glamour pra alcoolismo
E é o Kinect do XBox
Por duas bucha de cinco
HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar
Compro uma pistola do vapor
Visto o jaco califórnia azul
Faço uma mandinga pro terror
E vou
E eu fico aqui pregando a paz
E a cada maço de cigarro fumado
A morte faz um jazz
Entre nós
Cá pra nós
E se um de nós morrer
Pra vocês é uma beleza
Desigualdade faz tristeza
Na montanha dos sete abutres
Alguém enfeita sua mesa
Um governo que quer acabar com o crack
Mas não tem moral para vetar
Comercial de cerveja
Alô Foucault
Cê quer saber o que é loucura?
É ver Hobsbawm na mão dos boy
Maquiavel nessa leitura
Falar pra um favelado
Que a vida não é dura
E achar que teu 12 de condomínio
Não carrega a mesma culpa
É salto altom MD
Absolut, suco de fruta
Mas nem todo mundo é feliz
Nessa fé absoluta
Calma filha
Que esse doce
Não é sal de fruta
Azedar é a meta
Tá bom ou quer mais açúcar?
HA-HA-HA-HA-HA-HA
HA-HA-HA-HA-HA-HA
Chega a rir de nervoso
Comédia vai chorar
Compro uma pistola do vapor
Visto o jaco califórnia azul
Faço uma mandinga pro terror
E vou
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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