Cidade é protagonista no álbum Da lama ao caos. Vinte anos depois, revisitamos a capital pernambucana
Por Valentine Herold
O sol nasce mais um dia – qualquer para uns, decisivo para outros. E ilumina, como todas as manhãs, “as pedras evoluídas” – ou nem tanto – do Recife. Andar pelas ruas desta cidade ainda é uma aventura: lama, caos, infinitos buracos, fios soltos e os maracatus de quem tem de se virar para se manter de pé. “A cidade não para”, eis o mantra de Chico Science que não sai das nossas cabeças desde 1994, quando o álbum Da lama ao caos veio ao mundo para se tornar um clássico.
Vinte anos depois, andando sobre este mangue asfaltado, travamos uma relação não só arriscada, mas de amor não correspondido, com o qual ainda se é obrigado a conviver diariamente. Um amor daqueles que te despreza em público e, quando dá vontade, volta correndo, arrependido. Mas sem quase nunca se render, rever defeitos ou verbalizar seu perdão. Esta “ilusora de pessoas”, “sempre mais ou menos”. Chico Science, tão afiado em sua lança, certamente não mudaria de opinião se entre estes rios e pontes ainda estivesse...
Recife, 2014. No ponto de ônibus, sete habitantes se dividem no abrigo da parada. Abrigo entre aspas, porque não protege nem do sol nem da chuva. O mísero teto pouco ampara os “trabalhadores, patrões, policiais, camelôs”. A cidade não para com suas manias, ô, Chico. Os demais que aguardam o coletivo estão nas barraquinhas improvisadas de batatas fritas em óleo queimado, Treloso de morango, pipoca de saquinho. Esta última apelidada (quase) carinhosamente de “póca” pelos vendedores ambulantes, que correm atrás da clientela, que corre atrás do ônibus, que corre contra o tempo.
O busão chegou, mas parou uns quatro metros depois, como de costume. Junto à senhora que enfrenta os degraus com dificuldade, entra também um rapaz para vender adesivos da Hello Kitty: “Bom dia, pessoal! Queria a atenção de vocês por alguns segundos. Eu podia estar roubando, podia estar matando. Mas estou aqui humildemente....” É sempre o mesmo discurso. E a mesma falta de atenção. A “plateia” está antenada para baixo, cabisbaixa, absorta nos celulares com internet. Novas antenas parabólicas.
Do alto do Ibura, no UR-1, “a cidade se apresenta o centro das ambições”. Vendo assim, lá de cima, parece até de brinquedo. “É o Ibura...” Tanta coisa mudou desde 1994. Por lá, o chão não era asfaltado e a então comunidade tinha apenas algumas casas. O resto, segundo José Carlos, de 53 anos, “é tudo invasão”. Ele chegou ao local ainda menino, em 1966, época da enchente que engoliu Santo Amaro, onde ele, a família e todos moravam antes até migrar para o Ibura. Lá, as ruas parecem calmas. “Calmo que só, ontem só teve tiroteio...”, ironiza a moradora Neide Maria, 60. Ela não esconde, com razão, o desgosto pela ausência do poder público por lá.
Na época do lançamento do disco da Chico Science & Nação Zumbi, não havia tanta violência, segundo narram os moradores, embora o Recife fosse a “quarta pior cidade do mundo” – para lembrar os versos de Chico baseados no ranking da Organização das Nações Unidas (ONU) de então. Por aqui, as estatísticas seguem subindo e descendo. Não somos certamente mais a quarta pior cidade do mundo, mas os problemas estão longe de zerar. Números do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) apontam que entre 2000 e 2010, por exemplo, o índice de óbito por arma de fogo, na capital, reduziu em 41,4%. Mas, no Ibura, ainda se escuta muito tiro...
... E o barulho do ônibus também. Ele chega no bairro em direção a uma área vizinha próxima, mas bem diferente: Boa Viagem (nem tão boa assim). O sol do meio dia tá fraco não, mas pelo menos tem o mar. Quase não dá tempo de curtir o frescor da água, mas melhor isso do que ser atacado por tubarão. Os altos, brilhantes e misteriosos prédios da avenida seguem inacessíveis a quase todos. “A cidade não para, a cidade só cresce/ O de cima sobe, o de baixo desce”...
Vinte anos depois, andando sobre este mangue asfaltado, travamos uma relação não só arriscada, mas de amor não correspondido, com o qual ainda se é obrigado a conviver diariamente. Um amor daqueles que te despreza em público e, quando dá vontade, volta correndo, arrependido. Mas sem quase nunca se render, rever defeitos ou verbalizar seu perdão. Esta “ilusora de pessoas”, “sempre mais ou menos”. Chico Science, tão afiado em sua lança, certamente não mudaria de opinião se entre estes rios e pontes ainda estivesse...
Recife, 2014. No ponto de ônibus, sete habitantes se dividem no abrigo da parada. Abrigo entre aspas, porque não protege nem do sol nem da chuva. O mísero teto pouco ampara os “trabalhadores, patrões, policiais, camelôs”. A cidade não para com suas manias, ô, Chico. Os demais que aguardam o coletivo estão nas barraquinhas improvisadas de batatas fritas em óleo queimado, Treloso de morango, pipoca de saquinho. Esta última apelidada (quase) carinhosamente de “póca” pelos vendedores ambulantes, que correm atrás da clientela, que corre atrás do ônibus, que corre contra o tempo.
O busão chegou, mas parou uns quatro metros depois, como de costume. Junto à senhora que enfrenta os degraus com dificuldade, entra também um rapaz para vender adesivos da Hello Kitty: “Bom dia, pessoal! Queria a atenção de vocês por alguns segundos. Eu podia estar roubando, podia estar matando. Mas estou aqui humildemente....” É sempre o mesmo discurso. E a mesma falta de atenção. A “plateia” está antenada para baixo, cabisbaixa, absorta nos celulares com internet. Novas antenas parabólicas.
Do alto do Ibura, no UR-1, “a cidade se apresenta o centro das ambições”. Vendo assim, lá de cima, parece até de brinquedo. “É o Ibura...” Tanta coisa mudou desde 1994. Por lá, o chão não era asfaltado e a então comunidade tinha apenas algumas casas. O resto, segundo José Carlos, de 53 anos, “é tudo invasão”. Ele chegou ao local ainda menino, em 1966, época da enchente que engoliu Santo Amaro, onde ele, a família e todos moravam antes até migrar para o Ibura. Lá, as ruas parecem calmas. “Calmo que só, ontem só teve tiroteio...”, ironiza a moradora Neide Maria, 60. Ela não esconde, com razão, o desgosto pela ausência do poder público por lá.
Na época do lançamento do disco da Chico Science & Nação Zumbi, não havia tanta violência, segundo narram os moradores, embora o Recife fosse a “quarta pior cidade do mundo” – para lembrar os versos de Chico baseados no ranking da Organização das Nações Unidas (ONU) de então. Por aqui, as estatísticas seguem subindo e descendo. Não somos certamente mais a quarta pior cidade do mundo, mas os problemas estão longe de zerar. Números do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) apontam que entre 2000 e 2010, por exemplo, o índice de óbito por arma de fogo, na capital, reduziu em 41,4%. Mas, no Ibura, ainda se escuta muito tiro...
... E o barulho do ônibus também. Ele chega no bairro em direção a uma área vizinha próxima, mas bem diferente: Boa Viagem (nem tão boa assim). O sol do meio dia tá fraco não, mas pelo menos tem o mar. Quase não dá tempo de curtir o frescor da água, mas melhor isso do que ser atacado por tubarão. Os altos, brilhantes e misteriosos prédios da avenida seguem inacessíveis a quase todos. “A cidade não para, a cidade só cresce/ O de cima sobe, o de baixo desce”...
Descendo ao calçadão, um ciclista vai na contramão, enquanto uma Hilux passa raspando por ele. Do outro lado da rua, entre quiosques de coco, senhores jogam dominó. “Veeeeem, novinha, tomar Toddynho!” Passa o rapaz do carrinho de CDs piratas ao som de MC Sheldon. Ele vende brega, sertanejo, forró e até música gospel (nada mais surpreende nesta cidade multicultural). Tá difícil atravessar a rua. Aliás, é difícil ser pedestre: além dos carros, do sol e das calçadas, o Recife ainda acorda com a “mesma fedentina do dia anterior”... Talvez não tanto quanto no tempo da “Recifede”, pichação que costumava tomar os muros da cidade.
Lá na Conde mais famosa do Recife, o sol parece rachar mais forte. Brunos, Márcios, Anas e Carolines passam pela avenida dia a dia. Indo e vindo, sem cessar. “É a responsabilidade de você manter-se inteiro.” Dobrando a esquina do Shopping Boa Vista, ouve-se uma voz a bradar os descontos que o transeunte não pode perder.
E tem ainda a Várzea, o bairro com mais motel em linha reta do mundo... E “Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor (...) Santo Amaro, Madalena, Boa Vista, Dois Irmãos (...)”. No trava-língua recifense, tudo dá em embolada, samba e maracatu. Entre “rios, pontes e overdrives”, o Recife não é mais exatamente aquele cantado por Chico. Mas é também. E não para de crescer. “Da lama ao caos. Do caos à lama."
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