CAPÍTULO 50
Com dois projetos fracassados, eu andava muito zangado mesmo! Aí recebi no fim de 2001 um telefonema de São Paulo:
— André, venha para cá agora! O Washington foi sequestrado!
Era Patrícia Olivetto, mulher do Washington . Peguei o avião e cheguei à casa deles. A família estava reunida, os sócios e a polícia, presentes. A conversa continuou por alguns instantes até que a Patrícia virou-se para mim:
— André, você é o melhor amigo do Washington e gostaríamos que fosse o responsável por negociar com os sequestradores!
Meu sangue congelou, pois eu não podia responder: “Sou amigo do Washington, sim. Mas não tão amigo que...” Eu tinha que aceitar! E aceitei na hora. Apavorado! No curso da minha vida profissional, eu tinha negociado muitos contratos de artistas representados por advogados temíveis.
Porém, nada que fosse parecido com negociar a vida de uma pessoa!
Eu mesmo já tinha sido sequestrado muitos anos antes em Caracas, com Astor Piazzolla e seus músicos, depois de um concerto, quando uns jovens guerrilheiros estudantes irromperam no camarote do teatro e nos levaram a um vilarejo distante cinquenta quilômetros, para que Piazzolla tocasse para seus companheiros por algumas horas. Porém, esse era um sequestro de opereta, de brincadeira, quando comparado ao que acontecia agora. Como eu tinha ainda obrigações a cumprir na companhia em Nova York, telefonei e expliquei a situação, e fui evidentemente liberado para me ausentar das minhas funções. Apanhei algumas roupas no Rio e fui me instalar na casa do Washington. Paulinho Salles, filho do publicitário Mauro Salles, foi falar comigo e com Patrícia sobre sua experiência de negociador no episódio do sequestro do tio. E fiquei mais apavorado ainda quando ele disse:
— O pior não é tanto negociar o dinheiro do resgate, o que já é uma parada. O pior é entregar o dinheiro. Nesse momento, você tem que fugir da “polícia boa”, que quer prender os bandidos, tem que fugir da “polícia ruim”, que quer ficar com o dinheiro, e tem que fugir de outros bandidos, que não os sequestradores, que querem entrar no circuito e também ficar com o dinheiro. E os sequestradores sempre querem que o negociador venha a ser o entregador do resgate, sem nenhum acompanhante!
Entretanto, chegaram dois detetives de Londres, aposentados da Scotland Yard, especializados em técnicas de negociação de sequestro, contratados para ajudar Patrícia, Javier, Gabriel e a mim a levar o triste episódio a um bom destino. As recomendações foram poucas, porém decisivas: estabelecer um horário dentro do qual se aceitava conversar com os sequestradores e se ater rigidamente a esse horário, senão eles ligariam a qualquer hora do dia e da noite, aterrorizando e, sobretudo, debilitando o negociador; ter o cuidado de não ceder rapidamente às demandas financeiras, pois pediriam mais dinheiro antes de soltar o sequestrado, e tampouco ceder lentamente demais, pois se correria o risco de matarem o sequestrado; não revelar absolutamente coisa alguma quanto ao andamento das negociações a ninguém, nem mesmo à família; pedir à imprensa, às TVs e às rádios o silêncio mais absoluto possível etc.
Munido dessas instruções, sentei-me à mesa, com vários celulares, e começou a longa espera pelo primeiro contato. Nos primeiros dias, fiquei dormindo na casa do Washington , mas logo me mudei para o hotel Emiliano; depois fui me hospedar na casa de José Kalil Filho, o amigo mais generoso que se pode ter:
— Haidar, não fica no hotel. É muito chato. Vem dormir aqui em casa, eu cuidarei de você... Na casa do Zé , me senti muito mais confortável e muito mais amparado pela sua delicadeza.
Passou o Natal... Passou o Ano-Novo... E nenhuma notícia dos sequestradores. Após mais algumas semanas, recebemos a primeira carta: o valor do resgate era uma fortuna considerável. Patrícia e eu chamamos, então, os tais ingleses e os sócios da W/Brasil para nossa primeira reunião concreta.
— Preferiria morrer. Não daria nada, para que meus filhos ficassem com o dinheiro — disse um dos sócios, como início de conversa.
— Não responda agora. Deixe-os esperando um pouco, antes de fazer uma contraproposta — disseram os ingleses.
Nesse clima tenso, fizemos uma primeira oferta. E a guerra de nervos começou. Num dia, que recebemos um pacote com carne crua fatiada, que a gente pensava estar escondendo um dedo ou uma orelha do Washington. No outro dia, outra barbaridade. As cartas e os pacotes eram milagrosamente entregues na portaria do prédio por motoboys. A mãe do Washington foi parar no hospital. O filho dele gritava — com toda a razão — comigo:
— André, eu sou o filho! Eu tenho o direito de saber! A minha mãe tem o direito de saber!
— Eu sei, Homero, vocês têm todo o direito. Porém não posso te dizer nada…
Patrícia e eu só confiávamos em dois amigos íntimos e queridos, com quem nos aconselhávamos, Thomaz Souto Corrêa e Juca Kfouri, que vinham quase todos os dias para saber das notícias, compartilhar opiniões e aliviar a pressão da nossa solidão.
Só se pensava no Washington . Nada mais interessava. Não havia programa de televisão, por mais burro ou inteligente que fosse, que pudesse, por um instante sequer, desviar nosso pensamento. Éramos incapazes de ler um livro. Havia somente as perguntas: Como estará ele? Será que ainda está com vida?
Até que um dia, como nos filmes de bandidos e mocinhos, alguns dos sequestradores beberam demais e se descuidaram, e a Divisão Anti-Sequestro meteu a mão num grupo deles. Naquela sexta-feira, Thomaz Souto Corrêa me telefonou:
— André, venha conosco hoje à noite ver O evangelho segundo Jesus Cristo, do Saramago... Há mais de cinquenta dias que você não sai até a rua... Hoje à noite não vai acontecer novidade alguma...Venha...
Na saída do teatro, meu celular tocou:
Parabéns! Ele está em casa! Ele está em casa! — gritava a Gloria Kalil.
Quem, Gloria ? Quem está em casa?
Washington , seu bobo!
Fiquei deliciosamente contrariado ao constatar que o danado do meu amigo tinha se aproveitado da única noite em que eu não estava presente para se livrar do seu inferno e voltar, são e salvo.
Os sequestradores eram chilenos, espanhóis e argentinos, ex-guerrilheiros, combatentes de ditaduras latino-americanas, politicamente destituídos das suas funções pelas democracias recém instaladas no continente. Agora sequestravam só para ganhar dinheiro. No entanto, no meio deles havia uma brasileira que foi identificada, e, quando a Divisão Anti-Sequestro de São Paulo chegou a Porto Alegre, seus colegas gaúchos disseram que não havia como prendê-la porque era protegida de um político muito importante. Ela anda solta até hoje.
Voltei, enfim, para o Rio e retomei minhas funções de conselheiro no Viva Rio. Eu me aproximei do Júnior, o fantástico responsável pela ONG do Afro Reggae, e, assim, a vida continuou para o resto do ano, até chegar o fim de dezembro.
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