CAPÍTULO 51
Eram cinco ou seis horas da tarde da antevéspera do Ano-Novo de 2003. Eu estava sentado na praia, lendo um livro e olhando as meninas, quando tocou o celular:
Sou eu. Gilda … O que você está fazendo? Onde você está? Estou na praia… Mas onde, na praia?
Bem em frente ao Caesar Park…
Me espera, estou chegando!
De fato, 15 minutos depois Gilda apareceu na praia, mais bonita do que nunca, mais exuberante do que nunca, mais falante do que nunca, tendo chegado poucas horas antes de Los Angeles.
Poucas semanas antes eu tinha pensado nela...“Como, nesses anos todos, não percebi que ela é a mulher que eu sempre desejei, e que a gente tem tudo para dar certo…”
Eu havia conhecido Gilda 23 anos antes, em circunstâncias que não podiam ser menos convencionais: durante um desfile das escolas de samba. Eu costumava alugar um camarote para receber meus artistas brasileiros ou não-brasileiros, além de alguns amigos liderados pelo Washington Olivetto ou pelo Thomaz Souto Corrêa. Naquela noite, entre os desfiles de duas escolas, apareceu de repente, em frente ao camarote, uma menina linda, com um sorriso estonteante, uns olhos prodigiosos, uma pele cor de jambo, que suplicava alegremente para subir. Era tão bela e tão grávida que, sem pensar mais, estendi a mão; ela a segurou e subiu. Era a Gilda. Aí, espantado, eu me ouvi dizer, sem mais nem menos, para aquela moça que nunca havia visto antes na minha vida, e que ainda por cima estava acompanhada e grávida de um grande amigo meu, o jornalista Tarso de Castro:
— Um dia você vai ser minha mulher!
Foi a única frase dita naquela noite de Carnaval, 23 anos antes. Poucos meses depois desse episódio, Gilda começou a aparecer frequentemente na companhia por ser uma fotógrafa de muito talento envolvida na confecção das capas de muitos artistas importantes, entre os quais Gilberto Gil e Caetano Veloso. A gente se perdeu de vista por um bom período, até que ela e eu nos mudamos para Nova York. Ela era, então, casada com Gerald Thomas, e os dois vinham frequentemente tomar um drinque no meu apartamento.
Após esse encontro na praia, e como que para recuperar o tempo perdido, a gente não se separou mais. Cinco meses depois, casamos de papel assinado, tendo eu cumprido a exigência legal que obriga uma pessoa, a partir dos setenta anos de idade, a apresentar um certificado de sanidade mental antes de o juiz selar o casamento. A cerimônia aconteceu na praia, quase em frente de casa. Tapetes kilins cobrindo a areia, divãs espalhados, numerosas velas, nós e os convidados protegidos dos curiosos por panos que minha nora, Suzana, mulher do Philippe, cenógrafa, havia instalado. A música ficou a cargo do Quarteto Villa-Lobinhos e do DJ Marcelinho da Lua. Éramos umas sessenta pessoas, mais os amigos do João Vincente e da Ana, filhos da Gilda , e do Philippe e do Antoine, meus filhos.
A gente tinha decidido vender o meu apartamento, pelo simples motivo de que Nova York é uma cidade ideal para se trabalhar, porém péssima para se viver como aposentado. Sobretudo no meu caso, que só tinha feito relações de trabalho que não fariam mais sentido. Porém, qualquer separação acaba sempre sendo dolorosa. E essa o era de maneira inesperada. À noite fomos jantar e, conversa vai, conversa vem, a minha mulher, eloquente como sempre, agitando os braços como sempre,“jogou na mesa”:
— Vamos comprar um apartamento em Paris com o dinheiro da venda do apartamento de Nova York...
Apanhado de surpresa, assim sem mais nem menos, a minha reação foi negativa, argumentando que eu já não conhecia mais ninguém na França. Havia perdido contato até com meus grandes amigos de infância, os de Forceville... Porém os argumentos da Gilda eram tantos, que entendi que ela tinha toda a razão do mundo, e que, sim, a gente devia comprar um apartamento em Paris. Eu tinha que me reencontrar com minha “quase terra natal”, não importando se eu já não conhecia mais ninguém lá.
No dia seguinte, a mudança já foi alegre:
— Esta poltrona vai para Paris, esta outra vai para o Rio, os discos de música brasileira vão para Paris, os outros para o Rio...
De Nova York voamos para Santa Mônica, tranquilo subúrbio de Los Angeles e meca do zen, do orgânico e da ioga, para Gilda recuperar alguns dos pertences que ela havia abandonado por lá e rever amigos. Ao mesmo tempo, mergulhamos em numerosas sessões de ioga. Já instalados numa pousada em Santa Mônica, durante uma noite de sono profundo, lá pelas quatro da manhã, tocou o telefone.
Era do Ministério da Cultura, em Brasília, e o ministro Gil estava na linha:
— André, eu preciso de você para o “Ano do Brasil na França”. Você aceita?
Sem saber bem do que se tratava, mas consciente de que o Gil jamais me negara qualquer pedido, até nos momentos mais difíceis da nossa longa relação de trabalho de mais de trinta anos, respondi:
— Gilberto, eu aceito. Porém são quatro da madrugada aqui... A gente conversa melhor amanhã, eu te telefono...
Ali começava uma maravilhosa aventura que, durante os dois anos seguintes, me colocou, ante a França, como responsável, em nome do Brasil, por todas as atividades do “Ano do Brasil na França”.
Mal cheguei ao Rio, viajei para Brasília, aonde não ia desde os tempos da ditadura, dirigi me ao MinC, que ocupa apenas a metade de um dos prédios da Esplanada dos Ministérios, e me apresentei ao ministro. No dia seguinte, indo para o MinC, passei em frente aos Ministérios da Defesa, da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, cada um com seus imponentes anexos duplicando o tamanho dos edifícios principais, e um sentimento de surpresa foi tomando conta de mim:“Oito prédios para os militares e metade de um para a cultura!!! Será que estamos realmente vivendo numa democracia ou estamos apenas em liberdade vigiada?” De noite, voltando do Clube de Tênis, duas caipirinhas depois, fui dormir e a minha cabeça seguiu divagando. Sonhos malucos apareceram. “Frequentemente, ouço as pessoas se desculparem alegando ‘Somos assim porque fomos colonizados pelos portugueses!!!’.
Mas é sempre um descendente de português, de italiano, de espanhol ou de alemão que fala assim... Os únicos colonizados foram os índios e os negros, que nunca tiveram acesso ao poder. O Brasil é um país de colonizadores, como os Estados Unidos, que, no entanto, não jogam a culpa de seu comportamento nos ingleses, nos irlandeses, nos suecos e nos alemães. E agora, considerando o Brasil como um país colonizador, a construção de Brasília poderia ter sido um equívoco estratégico monumental! Talvez fosse preferível, naquela época, vender a peso de ouro a ilha de Fernando de Noronha, então considerada um importante ponto estratégico pelos americanos, que a queriam comprar; juntando-se esse dinheiro com o da construção de três ‘Brasílias’ (Bené Nunes , pianista favorito do Juscelino Kubitschek , havia ganhado uma das tantas concessões para transportar cimento para a construção de Brasília, e nos contava que os seus caminhões passavam três vezes com a mesma carga e recebia dinheiro três vezes dos fiscais das obras), poderíamos ter comprado o então pobre Portugal, que, na metade da década de 1950, provavelmente custava bem pouco. E, tal como dom João VI , transferir nossa capital para lá. Lisboa passaria a ser chamada de Brasília, ou de Macunaíma... E, pelo menos, hoje faríamos parte do Mercado Comum Europeu. De colonizados, teríamos assumido o que somos: colonizadores. E ao mesmo tempo o único país pardo europeu...” Na verdade, nada disso teria mudado o curso da nossa injustiça social, pois me lembro de um trecho do livro da Gertrude Stein, Paris França, em que ela recorda uma conversa que manteve, no fim do século XIX, com um agricultor francês que lhe disse: “Pensávamos, não apenas nós, mas todos, que havia reis que eram ambiciosos, que eram cobiçosos, e que levavam infelicidade ao povo que não tinha meio algum de resistir a eles. Mas agora a democracia nos mostrou que o mal são ‘les grosses têtes’ os figurões metidos a besta...Todos os figurões cobiçam dinheiro e poder, são ambiciosos — e a ambição é o motivo pelo qual eles são metidos a besta —, e o resultado é a infelicidade do povo. Falam em esvaziar a presunção ‘des grosses têtes’, mas agora sabemos que haverá outros ‘metidões sem escrúpulo’ e que serão a mesma coisa.” Dá, realmente, para acreditar que o homem nasce ruim mesmo e que tem nas religiões uma bengala para em alguns casos tentar ser melhor — ou em outros fingir que quer ser melhor, senão seis dos dez mandamentos não teriam sido escritos pelo dedo de Deus.
A França sempre entendeu que a cultura era o cavalo de Tróia pelo qual se aumentavam os intercâmbios comerciais e políticos entre dois países. E agora era a vez do Brasil ser o país convidado. O “Ano do Brasil na França” seria de 15 de março a 15 de dezembro de 2005. Comecei a trabalhar em meados de março de 2004. Eu era o terceiro comissário-geral nomeado, por desistência dos dois primeiros. O atraso do lado brasileiro era considerável, preocupando os franceses (que trabalhavam no projeto desde o início de 2003), que estavam a ponto de cancelar o convite, feito ao presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, e reiterado, em 2003, ao presidente Lula pelo presidente francês Jacques Chirac. Fui apresentado aos meus dois comissários-adjuntos, o embaixador Edgard Telles Ribeiro, representando o Itamaraty, e Marcio Meira , representando o MinC, os quais me dariam incondicional apoio moral, estratégico e preciosos conselhos para me guiar nos intricados meandros dos corredores governamentais, que eu desconhecia totalmente.
Nos dias seguintes, contratamos as cinco pessoas que iriam compor o comissariado brasileiro, e que, para minha agradável surpresa, trabalharam incansavelmente dia e noite, semanas após semanas, meses após meses, durante dois anos. Nunca imaginei que funcionários públicos pudessem trabalhar tanto, e com tanto entusiasmo.
Havia duas prioridades imediatas: a primeira, selecionar os projetos culturais para apresentação e eventual aprovação do comissariado francês, liderado pelo comissário-geral da França, Jean Gautier; a segunda, bem mais complicada, sensibilizar o governo e o empresariado quanto às oportunidades comerciais proporcionadas pelo evento, e conseguir deles os investimentos para financiar a realização dos projetos aprovados. O que não faltavam eram projetos culturais, que choviam tanto no comissariado brasileiro como no francês, muitos de excelente qualidade e frequentemente de custos astronômicos. Cabia ao Brasil responsabilizar-se pelo transporte até a França e, à França, todas as despesas relativas aos eventos durante a exibição naquele país.
Sob os auspícios do ministro Gil e do embaixador francês de Gliniasty, toda Brasília foi convocada para uma entrevista coletiva, dando início oficialmente ao “Ano do Brasil na França”. Logo em seguida, meus comissários-adjuntos e eu começamos uma via-crúcis aos gabinetes dos ministros. Os encontros eram religiosamente marcados, a gente ficava religiosamente esperando nas ante-salas por duas, três horas, para, afinal, sermos levados até o chefe de gabinete do ministro, que, após uma hora a mais de espera, nos encaminhava para um funcionário subalterno que, do “Ano do Brasil na França”, sabia rigorosamente nada! Sob os olhares às vezes desconsolados das secretárias, um ou outro encontro era marcado e, às vezes, a mesma cerimônia patética se repetia...Até que um dia encontramos casualmente o ministro Dulci que nos disse polidamente:
— André, Marcio, se vocês precisarem de alguma ajuda, me digam...
Precisávamos de ajuda! E muita! Contamos nossas dificuldades e desventuras, e Dulci nos tranquilizou:
—Vou falar com o presidente Lula e com o ministro José Dirceu . Entrem em contato com o Dirceu na próxima semana...
Na semana seguinte, chegamos — Gil e eu — ao escritório do Dirceu, que nos recebeu na hora certa. Expliquei a situação e mostrei os projetos e seus orçamentos, divididos em setores “governo” e “iniciativa privada”. Ele olhou, olhou para as áreas de responsabilidade governamental e disse:
— Está ótimo este programa! E o custo é razoável... Vamos fazer uma coisa: eu me responsabilizo por 50% por dotação orçamentária. Para os outros 50%, você vai ao Gushiken e ele resolve com as estatais! Quando chegamos ao Gushiken , sua primeira reação foi decepcionante:
— O quê? O Dirceu falou isso? Então, fala para o Dirceu para ele resolver. Eu não posso forçar as estatais a nada. Só tenho o direito de veto. O que posso fazer é convidar vocês para expor o projeto na próxima reunião de marketing, que tenho regularmente com os diretores de marketing das estatais. E aí vocês se explicam e vêem se eles se interessam...
Dito e feito! No dia marcado, entramos na sala de reunião e distribuímos as listas dos projetos, acompanhadas de uma carta formal assinada por Chirac e Lula , na qual os dois presidentes lançavam oficialmente o “Ano do Brasil na França”. Só que o Gushiken não estava lá, e quem dirigia a reunião era um dos seus subalternos. Eu falava, falava... E ninguém escutava! Os diretores de marketing das estatais conversavam, telefonavam, saíam, voltavam... E apesar dos pedidos de silêncio, eles continuavam com sua arruaça. Saí revoltado, certo de haver presenciado o assassinato do “Ano”.
No entanto, com a ajuda do Gil, do Furlan, dos meus comissários-adjuntos, dos assessores da Presidência e, afinal, da própria SECOM, pouco a pouco a resistência foi cedendo e muitos projetos acabaram sendo financiados, alguns deles na última hora.
Um dos momentos de alta tensão, que sempre cercam projetos de maior envergadura, foi a falência do Banco Santos, em novembro de 2004. Ede-mar Cid Ferreira , dono do banco e, até então, poderoso mecenas das artes brasileiras, patrocinava a exposição inaugural do “Ano”, “Brésil Indien”, considerada extremamente importante, pela riqueza e beleza do plumário, reunido pela primeira vez para um público europeu. A exposição abria oficialmente o “Ano do Brasil na França” e seria inaugurada, provavelmente, pelo presidente Chirac, em março de 2005, no prestigioso espaço do Grand Palais, que reabriria especialmente para a ocasião, depois de vários anos fechado para reforma.
As peças teriam que chegar a Paris em meados de janeiro de 2005, no mais tardar, para que a instalação ocorresse tranquilamente. Ou seja, tínhamos apenas dois meses para socorrer a “Brésil Indien”. O custo da exposição era muito alto; o transporte, delicadíssimo. E o preço do seguro, astronômico. Se não encontrássemos imediatamente outra maneira de financiar a “Brésil Indien”, o “Ano do Brasil na França” corria o risco de sofrer cancelamentos, em cascata, de outros eventos, por parte dos parceiros franceses, que, já muito nervosos com os atrasos, perderiam a confiança na seriedade do envolvimento brasileiro com o “Ano”.
Gil , Marcio, Edgard e eu corremos por todos os cantos de Brasília e, finalmente, José Dirceu concordou em financiar a metade da produção. Ficaria para Emílio Kalil, o produtor de “Brésil Indien”, a tarefa de conseguir com patrocinadores culturais o restante necessário para o retorno da exposição ao Brasil. Emílio encontrou na pessoa de Manoel Pires da Costa um candidato que parecia ideal, o qual nos garantiu ser capaz de conseguir a última parte do financiamento. A seu pedido, colocamos, no último minuto, os nomes dos supostos patrocinadores em todas as peças publicitárias, para descobrir, tempos depois, que havíamos caído num conto-do-vigário, pois o dinheiro do patrocínio nunca chegou às mãos do Emílio Kalil. Foi por milagre que as peças não foram confiscadas na França e puderam voltar ao Brasil. O ministro Furlan , através da Apex, foi de valiosa ajuda, promovendo múltiplos eventos de exportação, com grande visibilidade nas vitrines de destacadas redes comerciais francesas. Abílio Diniz foi de valor estratégico decisivo, pois sua organização montou uma operação ambiciosa de marketing e venda de produtos brasileiros nos supermercados Casino, na França, chamada “Viva Brasil”, chamando a atenção e despertando o interesse de muitos empresários brasileiros em patrocinar projetos aprovados pelos comissariados brasileiros e franceses.
Enquanto eu andava por tudo quanto era lugar, Gilda tinha encontrado, alguns meses antes, um apartamento bem aconchegante na rua Cambon, conhecida por ter abrigado a primeira loja da estilista Coco Chanel, perto da praça da Concórdia. Das janelas da frente, “não se vê o Corcovado”... Porém se vê a Igreja da Madeleine, a Sala de Concertos do Olympia e o Jardim das Tulherias. E, das janelas do quarto, dezenas de pequenas chaminés instaladas sobre os tão cantados telhados de Paris. Nosso vizinho de andar era um bailarino da Ópera de Paris com intensa vida social, de tal maneira que, durante as primeiras semanas, tínhamos a impressão de viver, de verdade, uma reencenação do filme Um americano em Paris.
O “Ano do Brasil na França” acabou sendo um sucesso estrondoso, não somente pela qualidade e pela diversidade, como também pela quantidade. Mais de setecentos eventos de todos os portes e de grande variedade, que aconteceram em 161 cidades francesas. Segundo pesquisas do governo francês, foram mais de 15 milhões de visitantes e espectadores oficialmente registrados, num país de pouco menos de 65 milhões de habitantes, que participaram das exposições de arte patrimoniais ou contemporâneas, dos concertos de música, de dança e de teatro, e dos festivais de cinema.
O apogeu aconteceu no decorrer das festas pátrias francesas comemorativas do “14 de Julho” que tiveram início durante a noite do dia 13 de julho, quando cerca de oitenta a cem mil pessoas assistiram ao “Viva Brasil”, concerto patrocinado pelo supermercado Pão de Açúcar, capitaneado pelo Gil , com Jorge Ben Jor, Gal Costa, Daniela Mercury, Lenine, Jorge Mautner e o grupo Ilê Aiyê , com apresentação a cargo do padrinho da música brasileira na França, Henri Salvador. Aconteceu na praça da Bastilha, símbolo da Revolução Francesa, e foi filmado pela produtora Conspiração. Os artistas brasileiros e a multidão presente encerraram a noite cantando um emocionado e emocionante hino nacional francês — “La Marseillaise”.
Às dez horas da manhã seguinte — na presença dos presidentes Lula e Chirac —, coube à Esquadrilha da Fumaça da França dar início ao tradicional desfile militar das Forças Armadas francesas, cortando o céu azul com jatos de cores azul, branca e vermelha, sobrevoando do Arco do Triunfo até a avenida dos Champs-Élysées, em direção à praça da Concórdia.
Numa rara homenagem ao Brasil, os cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras e a Banda de Fuzileiros Navais foram convidados para abrir o desfile. A exibição dos soldados brasileiros foi muito comovente, pois se, por um lado, o corte de seus uniformes não era perfeito e o sincronismo dos seus passos tampouco, por outro, a sua ginga trazia emocionantes lembranças de suas raízes mestiças, que contrastariam de maneira muito humana, logo depois, com a severidade e a disciplina do desfile dos militares franceses e do seu aparato bélico. Para encerrar o impressionante momento cívico, a Esquadrilha da Fumaça do Brasil nos brindou com fumaças de cores verde, amarela e azul, as cores da bandeira brasileira, com uma exibição impecável.
Na noite do “14 de Julho”, a torre Eiffel foi iluminada por um fantástico show de fogos de artifício de 15 minutos, nas cores da bandeira francesa, e, por mais 15 minutos, foram projetadas as cores da bandeira brasileira, ao som de músicas de Tom Jobim e Villa-Lobos. O espetáculo foi assistido por quatrocentas mil pessoas ao vivo e por milhões de telespectadores na França inteira.
Muitas vezes procurei localizar meu grande amigo de infância Hubert de Forceville. Em vão! Nem o Google nem as listas telefônicas me indicavam seu paradeiro. Até que, um dia, chegando ao escritório do comissariado francês, uma secretária me passa um recado, segundo o qual “um tal de Hubert de Forceville tinha me visto na televisão e queria entrar em contato comigo”! Fiquei muito emocionado ao pegar o telefone. Cinquenta anos de vidas tão diferentes poderiam trazer uma infinita felicidade ou uma profunda tristeza — ou um pouco das duas coisas... Foi uma infinita felicidade! O jantar transcorreu como se a vida não nos tivesse separado. E, pouco a pouco, um sentimento de bem-estar foi entrando em meu coração e fui percebendo o quanto a atmosfera daquela família me havia faltado ao longo dos anos... Lágrimas escorriam — quentes e abundantes —, como se um enorme e antigo saco de sofrimentos escondidos se soltasse de minha alma.
Olhamos fotografias da nossa juventude, conversamos sobre a mãe de Hubert, que eu adorava e tinha adotado como segunda mãe, sobre o desembarque dos aliados na Normandia, sobre as peladas de futebol, sobre as primeiras namoradas, sobre a falta que eles sentiram quando eu parti para o Brasil, sobre a imensa perda que, naquela época, eu também sofri, e sobre todas as emoções que todo emigrante expulsa do seu coração para poder se concentrar plenamente em seu futuro incerto e enfrentar o que seria seu novo mundo; no meu caso, o Brasil.
O ano estava acabando. Santos Dumont havia sido amplamente homenageado, assim como Oscar Niemeyer. Lévi-Strauss e Henri Salvador haviam sido, respectivamente, porta-vozes entusiastas das exposições do patrimônio e da música brasileira. Em Paris, o “Espaço Brasil”, cuja curadoria obedecia ao slogan “Modernidade e diversidade”, foi um projeto inteiramente idealizado e financiado pelo Ministério da Cultura. No transcurso de quase três meses, dentro de um pavilhão de moderníssimo conceito arquitetônico desenvolvido por arquitetos e por construtores brasileiros, o “Espaço Brasil” abrigou as manifestações artísticas de Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e Tocantins, entre outros estados do interior brasileiro, sob a supervisão executiva da produtora Dueto.
O Lenine havia realizado um concerto comovente, acompanhado por uma orquestra sinfônica e um coro de 1.500 crianças francesas vindas das pobres periferias parisienses, no Zenith lotado por quatro mil pessoas. Elza Soares a Deusa de Chocolate e perfeita “Macunaíma”, tinha cantado na sala principal do templo das artes clássicas do venerado Ópera de Paris. Uma imagem — em maravilhosas cores azuis e de tamanho gigante — do Cristo Redentor no nosso Corcovado havia sido projetada sobre a catedral Notre-Dame de Paris, enquanto uma missa solene era nela rezada, com interpretações de música barroca brasileira.
O castelo de Versailles, residência dos reis da França, havia sido o palco de um solene jantar oficial nos resplandecentes salões. O Navio-Escola Cisne Branco havia percorrido os portos franceses.
Setecentos músicos brasileiros haviam participado de inúmeros festivais. A dança e a pintura contemporâneas haviam surpreendido o público. O turismo francês para o Brasil já estava aumentando em mais de 25%. A demanda por professores de português na França havia triplicado. As grandes lojas Galeries Lafayette e Printemps alardeavam maravilhosas vitrines com produtos e moda brasileira. O metrô de Paris estava repleto de anúncios dos eventos em curso e futuros. Múltiplos acordos de desenvolvimento tecnológico e comercial tinham sido confirmados entre os empresários dos dois países. Dezenas de colóquios, entre intelectuais e ONGs dos dois países, tinham debatido assuntos relacionados às desigualdades sociais e à integração racial. Centenas de horas de especiais de TV haviam sido dedicadas ao Brasil. Dezenas de revistas haviam publicado números especiais.
Centenas de artigos de jornais tinham comentado, entusiasmados, os eventos. Os franceses tomavam consciência de que o Brasil não era somente Carnaval e futebol.
Um dos poucos eventos midiáticos que não pudemos promover a tempo foi o vôo de uma réplica do avião Demoiselle, do Santos Dumont, que pretendia contornar a torre Eiffel.
No entanto, a imprensa e a TV brasileiras continuavam estranhamente mudas na cobertura desse enorme sucesso, que poderia ter levantado — graças a esses meios de comunicação — a auto-estima do público brasileiro.
Eu havia visitado ou conversado com os jornais Estadão, Folha e O Globo, com a Editora Abril e com a TV Globo... Enviara às redações a programação dos eventos, os inúmeros recortes de jornais franceses... Tudo em vão! O silêncio era total! Teria sido um boicote ao governo Lula? Não posso crer, pois o evento tinha muito mais a ver com o talento do povo brasileiro do que com uma disputa político-partidária. Seria uma atávica e incrível rejeição ao sucesso, como dizia Tom Jobim? Seria por ter vergonha de nossa grandeza, de nossa beleza, de nossa originalidade? Não quero crer, pois seria um pecado capital não ter o devido orgulho do que temos de melhor. O que quer que tenha sido, foi lamentável, pois, parafraseando alguém que muitos admiram até hoje,“Era a hora da imprensa se perguntar o que podia fazer pelo seu país...”.
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