CAPÍTULO 35
Depois de oito anos, em 1976, eu voltava a trabalhar com a indústria fonográfica norte-americana, que vivia um crescimento sem paralelo, invadindo o mundo inteiro com seu fantástico rock’n’roll. E parecia que nem o céu era o limite. Nessa atmosfera, a Warner Music conseguiu rapidamente ultrapassar a CBS, a RCA e a Capitol, e tornar-se a primeira no ranking, com uma participação esmagadora de 25% no mercado norte-americano. A música era ouvida em todos os lugares: nas salas, nos corredores, nos elevadores. Só se falava de música nos almoços e nos jantares, num contraste dramático com o ambiente que reinava nos escritórios dos meus patrões anteriores, os severos holandeses, calvinistas e conservadores da PolyGram.
Não existiam os gigantescos manuais de conduta, os chamados “livros brancos” de centenas de as quais a matriz impunha aos executivos regras de comportamento gerencial e pessoal para enfrentar uma infinidade de situações hipotéticas que raramente sucediam na vida real. Os irmãos Ertegun, Mo Ostin, Jac Holzman e David Geffen eram brilhantes e entusiastas, e seus colaboradores tinham toda a liberdade para tomar decisões sem necessitar de burocracia. O contato com os artistas era constante… Eu me sentia em casa na empresa: a música era o que importava. A personalidade de Steve Ross, o chairman, difundia essa atmosfera de felicidade, entusiasmo e criatividade. Sua compreensão da personalidade dos artistas em geral, tanto da música como do cinema, era impressionante. E ainda tinha enorme capacidade de atrair excelentes executivos, além de tomar decisões de maneira rápida e dinâmica.
A origem da Warner Communications não era nada convencional. Em 1954, um estudante chamado Steve Ross, recém-formado em direito, tomou a direção de uma pequena empresa funerária familiar, nos subúrbios de NovaYork, e a transformou, em menos de 26 anos, no maior conglomerado de entretenimento do mundo. Eu soube da história por acaso, a partir de um telefonema do Steve, que após me perguntar como iam meus negócios, me disse:
— André, um casal de velhos amigos muito queridos vai passar uns dias no Rio e eu agradeceria se você cuidasse deles com carinho... É a primeira vez que viajam para a América do Sul e talvez se sintam um pouco desnorteados.
No dia combinado, mandei um carro apanhá-los no Galeão e os convidei para jantar no Antiquarius. O casal devia beirar os setenta anos, parecendo avós inteiramente dedicados aos netos, um pouco tímidos e de pouca conversa. Enfim, cidadãos perfeitamente deslocados neste nosso ambiente tropical. A conversa andava devagar e convencional. No entanto, à medida que a garrafa de vinho se esvaziava, a atmosfera ia se tornando mais relaxada e, ao final do jantar, acabei sabendo que o velho, advogado, agora aposentado, trabalhara muitos anos para a família da mulher do Steve Ross, donos de uma funerária. O casal me convidou para jantar no dia seguinte e, com um conhaque na mão, meu anfitrião estava bem mais feliz e disposto a me dar algumas pistas da sua vida pessoal. Os pais dele haviam emigrado da Ucrânia para os Estados Unidos. Ele descreveu sua infância de pobre menino judeu no Brooklyn, trabalhando durante o dia, estudando à noite e pouco a pouco se envolvendo com as máfias italiana e judia, sendo gradualmente promovido naquele mundo. Na véspera de irem para Buenos Aires, tivemos um último jantar, durante o qual, de repente, o velho disse:
— André, tenho certeza de que a verdadeira história da companhia na qual você trabalha vai lhe interessar...
E contou uma incrível história, que vou tentar descrever da melhor maneira possível, complementando com algumas informações colhidas no livro Master of the Game, de Connie Bruck — Steve Ross , que eu não conhecia na época, casou com a filha de um íntimo amigo meu, dono de uma funerária no Brooklyn. Ele tinha umas dez limusines para levar os defuntos para o cemitério.
Como essas limusines ficavam a maior parte do tempo na garagem, o Steve teve a idéia de usá-las à noite para levar os vivos para passear em Manhattan, continuando a levar mortos de dia. Os carros passaram a ficar ocupados praticamente dias e noites. A frota aumentou e se tornou imperativo encontrar um estacionamento próprio em Manhattan.
“Steve foi conversar com a Kinney, empresa cujo sócio mais conhecido era Lucky Luciano, importante chefão de uma famiglia da máfia do Bronx. A famiglia estava ligada ao recolhimento do lixo em Downtown Manhattan e à limpeza de edifícios; e tinha uma duvidosa reputação por suposto envolvimento em chantagens, jogos clandestinos etc. Também era dona de estacionamentos em Manhattan. Steve lhes ofereceu uma participação na funerária, incluindo as limusines, em troca do acesso grátis a seus estacionamentos em Manhattan.
“Um ano depois, Steve ampliou os negócios com eles, montando uma companhia de aluguel de carros para atender exclusivamente à clientela chique de NovaYork, com 50%-50% de capital com a Kinney. A intenção era superar a Avis e a Hertz na cidade, e, para isso, a nova locadora não cobrava dos clientes a permanência nos estacionamentos da Kinney. O sucesso foi tamanho — tanto no negócio das limusines quanto no da locadora — que os estacionamentos tiveram que multiplicar seus espaços para mais de sessenta, só em Manhattan. O negócio seguinte da dupla Steve Ross e Kinney foi conseguir os direitos exclusivos de recolhimento do precioso lixo de Wall Street. A fortuna estava nas famosas cartelas de cartolina da IBM, de excelente qualidade e utilizadas em computadores. Eram recicladas e transformadas em ótima matéria-prima para imprimir jornais, que depois era vendida no mercado negro, na América Latina, a editoras de periódicos, cuja quota de papel era controlada — às vezes racionada — por governos ditatoriais, como os da Argentina ou do México. Nessa altura, Steve convenceu os parceiros da Kinney a preparar a empresa para entrar em Wall Street num futuro próximo, ou seja, entrar na Bolsa, com os estacionamentos, o lixo e a locadora — coisas que não inspiravam muita confiança à sisuda entidade chamada intimamente ‘The Street’, apesar de ser um negócio bem-sucedido.
“Portanto, uma certa quantidade de maquiagens tinha que ser executada antes do pedido de inscrição. Como se mostrou infrutífera uma investigação do FBI, a entidade deu luz verde para a Kinney continuar com os planos de ingressar em Wall Street, com o seguinte comentário: ‘Muitos rumores têm circulado, segundo os quais a Kinney estaria ligada à máfia. Porém, não encontramos a menor evidência para confirmar tais rumores, apesar da presença na empresa do sr. Kimmel, vice-presidente e um dos maiores acionistas. (Kimmel tivera muitos problemas com o FBI, porém nunca foi condenado.) A entrada da Kinney em Wall Street foi um sucesso. Mas Steve Ross não tinha intenção de se transformar no Rei das Funerárias e dos Estacionamentos..." Apaixonado pelas indústrias cinematográfica e musical, ele decidiu se aventurar no que achava ser o negócio do futuro: a indústria do entretenimento. Steve comprou uma editora que publicava a revista Mad, uma companhia de administração de artistas, a Ashley Famous, e começou a investigar a situação de algumas companhias de cinema, como a MGM e a ABC. Depois de olhar a contabilidade das empresas, decidiu que a Warner Seven Arts, do lendário Jack Warner, seria seu primeiro objetivo. No entanto, o velho Jack Warner, quase falido, tinha vendido a maioria das ações para uma gente envolvida em corridas de cavalos, jogos etc. Sobretudo para o Sinatra, que deu uma incrível reviravolta na carreira depois do affair com Ava Gardner, surpreendendo ao sair da Capitol Records — onde tivera o que muitos consideravam sua melhor época de intérprete — e fundar a própria gravadora, a Reprise, em sociedade com Sammy Davis Jr. e Dean Martin, com aparente financiamento pela caixa da máfia. “Steve foi primeiro negociar a compra das ações que estavam nas mãos da máfia e no bolso do Jack Warner, pagando, na época, em torno de US$40 milhões. Feito isso, era preciso sentar com Sinatra para comprar o resto das ações. Steve manteve longas e penosas negociações com o advogado de Sinatra. Finalmente chegaram a um acordo — embora o advogado do Sinatra tenha advertido que o cantor, imprevisível, poderia acabar recusando a transação.
Um jantar foi marcado na casa da mãe do Sinatra, e os dois se apaixonaram um pelo outro... Fechado o negócio, iniciou-se uma longa e íntima relação entre os dois. “Steve, agora, tinha uma companhia cinematográfica e duas companhias de discos: Reprise Records e Warner Records. Comprou, em seguida, a Atlantic Records, do Ahmet Ertegun, a Elektra Records, do Jac Holzman, e finalmente a Asylum Records, do David Geffen, para completar o grupo fonográfico conhecido por WEA Records.
Ele consolidou o cinema, o disco, a editora e a administradora de talentos sob o ‘guarda-chuva’ de Warner Communications. Nesuhi e Ahmet o convenceram a lançar o futebol profissional nos Estados Unidos e, assim, nasceu o Cosmos, com Pelé e Beckenbauer. Como não havia outras equipes profissionais com as quais competir, ainda financiou Mick Jagger e Elton John para criar uma liga profissional com bons jogadores europeus e sul-americanos. Em seguida, foram lançados a MTV e um canal de TV a cabo cobrindo Manhattan. E, finalmente, Steve comprou a Atari, a companhia precursora dos videogames atuais, que foi um sucesso meteórico e logo depois um fracasso financeiro inédito nos Estados Unidos até hoje.” O velho, que estava me contando em parte essa história, tinha sido um dos poucos advogados que haviam trabalhado para Steve durante aqueles anos todos, desde a época da funerária. Ele acendeu mais um cigarro, bebeu mais um conhaque, agradeceu pela hospitalidade e viajou para Buenos Aires com a mulher. Nunca mais eu soube dele.
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