CAPÍTULO 34
Tia Léa, que cuidava da parte financeira da carreira do Caetano, do Gil, da Bethânia e da Gal, ficava preocupada de me ver solteiro havia já quatro ou cinco anos. E sempre me dizia:
— André, a minha filha tem uma amiga maravilhosa! Você tem que conhecê-la… Você vai gostar muito dela… E eu respondia regularmente:
— Léa , você sabe... Essas coisas nunca funcionam assim... Só nos romances do século XIX, bem à moda antiga…
Mas de tanto a Léa insistir, acabei encontrando Mônica Neves, que trabalhava na TV Educativa, de onde foi demitida por ter co-produzido um programa sobre a Central Nuclear de Angra dos Reis, no qual demonstrava seus estragos ambientais. Mônica era cheia de energia, de uma beleza exuberante, inteligente, e, como boa mineira, tinha grande atração pela natureza — coisa que me era totalmente estranha. A gente acabou comprando um sítio maravilhoso em Lumiar no topo das montanhas, quase inacessível, aonde se chegava viajando em um jipe 4x4, em marcha reduzida. Nesse sítio, construímos uma grande casa de pau-a-pique, com fogão a lenha, lareira, muitas velas, um riacho gelado, e que passaria a ser nosso “quartel-general” de muitos fins de semana. Trabalhei na terra, plantei árvores… Pela primeira vez na vida, convivi com a natureza. Foi lá, nesse ambiente pastoral, Mônica e eu junto à lareira, enrolados num cobertor e à luz de velas, que, uma noite, abri a revista Billboard, que naquela edição festejava seus noventa anos de existência, e tive a emoção dever meu nome mencionado como uma das noventa pessoas vivas mais importantes da história fonográfica. De Lumiar — por assim dizer, cheio de lama —, eu frequentemente saía direto para o Galeão, para alguma reunião na sofisticada Nova York.
Em 1973, voltou a aparecer na minha vida um personagem que eu tinha conhecido na época da bossa nova, por meio do Vinicius de Moraes. Seu nome: Nesuhi Ertegun. Turco da Turquia, filho de um eterno embaixador desse país em Washington no início do século XX, simpático, sofisticado, baixinho, com uma barriga proeminente e uma expressão corporal muito particular, movimentava os braços por cima da cabeça de maneira às vezes veemente e extravagante. Apaixonado por futebol, sabia de cor os nomes dos jogadores do clube Canto do Rio e de outros clubes pelo mundo afora, desde 1940. Ele e Vinicius, diplomata servindo no consulado, se conheceram em Los Angeles. Nesuhi era dono de uma loja de discos especializada em jazz, que o Vinicius visitava regularmente. Tornaram-se tão amigos que, anos mais tarde, Nesuhi vinha frequentemente ao Rio visitá-lo.
Por outro lado, Jorginho Guinle, feroz amante de jazz, baterista frustrado, também comprava discos naquela pequena loja de Los Angeles. Com isso, entre o Vinicius e o Jorginho, Nesuhi acabou fazendo parte da vida musical e social da cidade durante suas breves estadas entre nós. Em 1958, Nesuhi, já em Nova York, tornou-se sócio do irmão Ahmet, que fundara anos antes um selo independente, Atlantic Records, especializado, com grande sucesso, em artistas de soul e rhythm’n blues, tendo Ray Charles e Aretha Franklin como chefes de fila. Nesuhi era responsável pelo desenvolvimento de um catálogo de jazz que contaria com nomes como Modern Jazz Quartet e John Coltrane.
Quando Ahmet Ertegun e Jerry Wexler venderam a Atlantic para a Kinney Corporation, Nesuhi foi encarregado das relações internacionais do recém-formado grupo, com a missão de abrir filiais ao redor do mundo. A divisão fonográfica da Warner Communications rapidamente se tornou a companhia de discos norte-americana mais interessante do mercado, com três selos, Warner, Atlantic e Elektra, que se comportavam ainda como gravadoras independentes. Após a compra, os donos desses selos ficavam na liderança, com polpuda participação nos lucros das marcas. Eram independentes de luxo, pois podiam contar com o capital da Warner Communications para contratar artistas de qualidade e em quantidade: Led Zeppelin; The Doors; Yes; Crosby, Stills, Nash & Young; Eric Clapton; Carly Simon; James Taylor; The Rolling Stones; Ray Charles; Aretha Franklin; Queen e outros, sem esquecer, evidentemente, o Sinatra. O Nesuhi já tinha aberto filiais na Inglaterra, na Alemanha, na Austrália e na França, quando veio ao Rio passar a semana anterior ao Natal de 1975.
Como sempre, jantamos, e eu perguntei se pretendia um dia abrir uma gravadora no Brasil. Ele respondeu:
— Sim, claro. O Brasil será o primeiro país da América Latina.
— E quando, Nesuhi ?
— Quando você estiver pronto, Haidar.
— Nesuhi , eu estou pronto.
A minha contratação para dirigir a Warner no Brasil foi simples e rápida. Agora Nesuhi era meu patrão, e tínhamos em comum gostar de música, de jazz e ter nascido não muito longe um do outro — ele, em Istambul; eu, em Damasco. Administrávamos com bom humor a inimizade ancestral entre turcos e sírios.
— Haidar, estou em Genebra, na Suíça. Toma o avião e vem almoçar comigo que a gente tem que conversar.
Dois dias depois, estava almoçando com Nesuhi, Claude Nobs e um poeta e importante pintor moderno turco chamado Abidin, amigo de longa data dos Ertegun. Nesuhi me apresentou como Haidar Midani e, no transcurso da conversa, Abidin me perguntou:
—Você se chama mesmo Haidar Midani?
— Sem a menor dúvida!
— E qual é o nome do seu pai?
— Nazem Midani . Aí, Abidin virou-se para Nesuhi:
— Nesuhi , você sabe por que o pai do Haidar se chama Nazem?
Nesuhi levantou os ombros, os braços, fez uma careta característica, com os olhos indo da direita para a esquerda, como se dissesse: “E como vou saber do pai do Haidar?”
— Então, preste atenção. As famílias Ertegun e Midani cortaram seus pescoços e suas cabeças mutuamente durante as intermináveis guerras de fronteira entre a Síria e o Império Otomano, até que, no final do século XIX, finalmente abaixaram as armas e, em sinal de paz e reconciliação, a família Midani convidou tua família para dias de celebração em Alepo. Acontece que, no dia da chegada, o pai do Haidar estava nascendo. E o avô do Haidar deu ao filho o nome de Nazem em homenagem a teu tataravô Nazem Ertegun !
Nesuhi olhou para mim e eu olhei para ele, mais do que espantados ao entendermos que nossa relação tinha começado alguns séculos antes de termos sonhado estar neste mundo e trabalhar com discos.
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