segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 32



CAPÍTULO 32 

Os artistas tinham sepultado os festivais em 1972. Mas um pequeno grupo de nossos contratados vinha tendo muitas conversas lideradas pelo Erasmo, elucubrando sobre a possibilidade de se lançar, com êxito, um festival não-competitivo. Levei o assunto a debate no grupo de trabalho. Discutimos horas, até chegarmos a uma hipótese atraente e concreta. 

A ideia era de fato muito simpática, simples e dinâmica, e incentivava a criatividade. Um artista subiria ao palco e cantaria sozinho um sucesso próprio, já muito conhecido. Depois, cantaria uma composição inédita. Em seguida, convidaria um outro artista a subir ao palco e juntos cantariam uma canção que teriam composto em parceria para a ocasião, ou uma canção de um outro compositor, que nenhum deles tivesse interpretado antes. 

Saindo o primeiro artista, o segundo cantaria uma música de sua autoria muito conhecida, e assim por diante. Os artistas se mostraram simpáticos à proposta. Agora era hora de trabalhar para a realização do evento, programado para durar três noites, e cujo título e slogan estavam definidos: “Phono 73… Existem várias maneiras de se fazer música brasileira. Eu prefiro todas.” 

Por meio do Lívio Rangan , dono de uma importante agência de publicidade em São Paulo chamada “A Gang”, fiel amigo, sempre presente nas horas necessárias, conhecido pelos sofisticados desfiles de moda que organizava em nome da Rhodia, fiquei sabendo que o complexo do Anhembi seria inaugurado dentro em pouco. Propusemos à diretoria do empreendimento inaugurar o prestigioso e confortável auditório do Palácio das Convenções do Anhembi com a Phono 73. A proposta foi entusiasticamente aceita; conseguimos a sala de concertos, os camarins, a luz e as equipes de apoio gratuitamente. A data e o lugar acertados, passamos à fase do planejamento e dos orçamentos, dos concertos e das gravações, que, ao serem lançadas em discos, poderiam amortizar grande parte dos investimentos. O Armando ficou responsável pela coordenação-geral do evento. Jairo Pires, Roberto Menescal e Guilherme Araújo foram, respectivamente, os produtores de cada uma das três noites do espetáculo. E seus colaboradores, Mazzola, Paulinho Tapajós e Guti de Carvalho, tinham a responsabilidade de gravar e levar as fitas com as gravações ao vivo de cada noite para o estúdio da gravadora no Rio. Responsáveis pela direção de estúdio, Sérgio de Carvalho, Edu Melo e Souza, Mazzola e Nelson Motta supervisionavam a mixagem, efetuavam eventuais retoques e ajustes, e procediam à edição final em formato de LP, trabalho feito logo no dia seguinte a cada um dos três concertos. Dali, alguém saía direto para a fábrica, que imediatamente fabricava os discos; o concerto da sexta-feira estava nas lojas na segunda à tarde, e assim por diante. 

Umberto Contardi e o técnico de gravação Ary Carvalhaes ficaram com a difícil tarefa de encontrar, na cidade de São Paulo, a infra-estrutura necessária de microfones, equipamentos de gravação, rolos de fitas, fiações, holofotes etc., tarefa bem complexa devido à escassez de equipamento e material disponíveis naquela época no Brasil. 

A Rádio Bandeirantes foi encarregada pelo Armando de assegurar as retransmissões dos concertos ao vivo no ar, e foi deles o único aparelho de transmissão não desligado pelos censores no episódio do “Cálice” — do Chico e do Gil —, como veremos mais adiante. Convidamos Ziembinski , que tinha começado sua carreira teatral como iluminador de palco na Polônia, para dirigir a iluminação. 

Chamamos o David Zing para a cobertura fotográfica e o Guga de Oliveira — irmão do Boni e dono da produtora Blimp — para filmar o evento em 35mm. Quinze dias antes do início dos concertos, começaram os ensaios no Rio, enquanto Armando fazia reservas nos hotéis de São Paulo e organizava com uma empresa de ônibus o transporte dos artistas e até dopúblico. Eu, com muito pesar, não pude estar presente aos concertos, convocado a Amsterdã para defender a aprovação do projeto de construção dos nossos estúdios. Porém, tendo participado de toda a organização, tinha toda a confiança de que os meus colaboradores estariam — como de fato aconteceu — à altura de suas responsabilidades. 

Transcrevo o artigo escrito por Tom Cardoso, publicado no Valor Econômico de 27 de junho de 2003: O festival reuniu uma constelação de talentos da MPB e foi um verdadeiro soco no estômago da ditadura. “Nunca vi nada mais Z que o público classe A.” Era Caetano reagindo às vaias da plateia, após subir ao palco acompanhado de Odair José , ícone da cafonice... Aconteceu de tudo naquelas quatro noites 67 do festival. Os Mutantes tocaram pela primeira vez sem a Rita Lee, que, por sua vez, comemorou sua independência artística cantando ao lado da amiga e cantora Lucia Turnbull. Raul Seixas apresentou seu mais novo parceiro, um tal de Paulo Coelho, e Gilberto Gil e Chico Buarque driblaram o AI-5 com a metáfora política de “Cálice”. (Este foi o momento mais dramático de todo o festival, os censores vestidos de terninhos caretas no meio dos cabeludos corriam por todos os cantos desligando os microfones desde a cabine de gravação, e o MPB4, acompanhantes do Chico, levava os seus para que Chico e Gil pudessem continuar a serem ouvidos, até que o silêncio se fez sob os protestos do público enfurecido.) Assim nascia nos dias 10 a 13 de maio de 1973 a Phono 73, que acabaria entrando para a história não só pelo raro encontro de grandes talentos, mas por ter dado uma histórica dor de cabeça aos militares... Gal Costa e Maria Bethânia, apolíticas, foram responsáveis pelo momento mais emocionante da noite. Cantaram juntas “Oração de mãe menininha”, e no final, de mãos dadas, se beijaram na boca… Quando Elis entrou no palco para cantar “É com este que eu vou”, alguém na plateia começou a provocação: “Vá cantar para o Exército!” Caetano atrás das cortinas imediatamente tomou as dores de Elis :“Respeitem a maior cantora do Brasil!”, rebateu. (Elis, parada como estátua de mármore, esperou que a vaia acabasse para cantar majestosamente frente a um público já arrependido, que a ovacionou.) Mas a maior surpresa do festival ainda estava por vir. 

Quando Midani procurou Caetano para que escolhesse um parceiro para seu show, o baiano logo pensou em Hermeto Pascoal .“Eu disse ao Midani que tinha ficado muito feliz com o convite de Caetano, mas que preferia fazer o show sozinho para provar que minha música era tão popular quanto a dos cantores baianos”, disse Hermeto. “O festival acabou sendo muito importante para minha carreira. Consegui até incomodar os militares. Eles queriam saber se as panelas que eu usei na minha apresentação eram para protestar contra o regime!” A presença do Odair José em um show de MPB irritou o público, que mandou a mais forte vaia já ouvida até então nos corredores do Palácio das Convenções do Anhembi. O Caetano, perplexo, fez um discurso inflamado condenando como em 1968 a falta de apuro artístico da plateia. 

Um dos maiores festivais da história era encerrado ao som de “Pare de tomar a pílula”! Jair Rodrigues promoveu-se a anfitrião da primeira noite, e o fez incansavelmente. Wanderléa rasgou sua bem-comportada imagem de namorada do Brasil. Erasmo, sempre sóbrio e emotivo, precedeu um Raul Seixas totalmente enlouquecido, pintando em seu peito os primeiros símbolos da futura Sociedade Alternativa. MPB4, Vinicius e Toquinho e Nara Leão levaram o charme e o encanto de um Brasil mais poético. Ronnie Von, Simonal, todos deram a sua melhor contribuição. Outro aspectoque chama a atenção, ao voltar a ouvir essas fitas recentemente, foi constatar como os então novatos e recém-contratados Ivan Lins, Fagner, Macalé, Sérgio Sampaio — este com “Eu quero é botar meu bloco na rua” — e Jorge Mautner já estavam chegando ao público com personalidades fortes, composições determinadas e convicção artística. O Gil genialmente cantou — e, sobretudo, improvisou longamente — a música “Estão matando o nosso samba”, com “voz de preto velho”; depois cantou com Elis, e deve ter cantado com outros, pois sempre foi e sempre será um incansável missionário da arte musical. E, por fim, Deus criou Jorge Ben Jor! Jorge, fechando o espetáculo de uma das noites, transformou aquele moderno e imponente Anhembi numa infernal construção dedicada ao culto da paixão, da entrega à emoção, ao abandono, à dança... O público pulava como em transe! Todos os artistas invadiram o palco para compartilhar e rezar com ele naquele momento divino. O Gil se juntou ao Jorge ao microfone, e o Caetano, numa demonstração de respeito religioso, beijou o chão que o Jorge estava pisando. 

A venda dos três discos atingiu umas 250 mil cópias no lançamento e, evidentemente, isso não bastou para recuperar o investimento de tamanha produção. Mas, como não gastamos a verba publicitária prevista inicialmente, algo em torno de 15% sobre a venda, foi relativamente pequeno o prejuízo a debitar nos lucros daquele ano.

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