sábado, 20 de julho de 2019

VIOLA ATRAVESSA OS SÉCULOS, CONTINUA MODERNA E ALIMENTA ANTIGAS LENDAS

Instrumento não se limita à música caipira, dialogando com MPB, jazz e rock, além de frequentar as salas de concerto. Mito do pacto com o diabo une violeiros do Brasil aos gênios do blues

Por Augusto Guimarães Pio 

Engana-se quem ainda pensa que a viola é exclusiva das modas caipiras. O aviso é dos instrumentistas Fernando Sodré e Arnaldo Freitas, que preparam o repertório do show 'O Brasil nas 10 cordas', que estreou no mês de maio, em BH. “Esse paradigma foi quebrado há muito tempo. Desde Renato Andrade, o grande mestre desse belíssimo instrumento, considerado um dos maiores violeiros de todos os tempos”, diz Sodré. Ele se refere ao mineiro reconhecido no Brasil e no exterior, que morreu em 2007, aos 73 anos. Pioneiro, Andrade levou a viola caipira para as salas de concerto. “O instrumento é usado também no chorinho, MPB e até no rock”, esclarece Sodré.

Universal, a viola está presente em lendas que conectam tocadores brasileiros a blueseiros norte-americanos. Tanto no Mississippi quanto no interior de Minas, não é de hoje que se ouve falar em músicos que venderam a alma ao diabo em troca do sucesso e da riqueza.

A lenda, claro, acabou no cinema. Em 1986, foi lançado o filme americano Crossroads, dirigido por Walter Hill, cujo elenco reunia o ator Ralph Macchio, o guitarrista Steve Vai e Sonny Terry (1911-1986), aclamado gaitista de blues.

Com trilha composta por Ry Cooder, o drama se inspira nas histórias envolvendo o mítico bluesman Robert Johnson (1911-1938). Diz a lenda que ele entregou a alma ao diabo para se tornar o ás das cordas. A vida e a morte do músico, aos 27 anos, foram pouco documentadas. Ficou o mistério, que deu origem a muitos causos.


COISA-RUIM

O instrumentista e pesquisador mineiro Chico Lobo diz que a “negociação” entre músicos e o capeta não é exclusividade dos americanos. Na cultura popular brasileira, são muitos os causos de violeiros que fizeram acordo com o coisa-ruim.

“No pacto tradicional, o interessado espera o dito cujo numa noite de sexta-feira de lua cheia, caminha até a encruzilhada deserta, chama sete vezes pelo tinhoso. Se ele não aparecer, reza o pai-nosso de trás para a frente”, conta Chico. Quando várias coisas pra lá de esquisitas ocorrem – porca dando de mamar a cabritinhos, vaca magricela seguida por sete leitões –, ele surge. “O desconjurado tira 10 fios da barba, estica-os numa viola preta e a presenteia ao violeiro. Depois de afinada, está tudo pronto. O sujeito terá fama e sucesso. Só que depois de 99 anos, o desconjurado vem buscar sua parte no pacto: a alma do violeiro”, explica Chico.

“Dizem os antigos que ao ver São Gonçalo do Amarante – santo tocador de viola que trazia moças da vida pras bandas de Deus e as convertia com suas danças e cantos –, o catinguento resolveu tocar e aprender a afinação rio abaixo pra seduzir as donzelas beira-rio”, lembra o pesquisador.

O diabo tem lá seus motivos para querer ser violeiro: a inveja de Jesus, o Menino Deus, pois a viola foi o primeiro instrumento tocado para ele. “Vários mestres de folias de reis narram essa passagem. Esse instrumento musical sempre foi considerado sagrado. O arrenegado quis corromper a viola e o violeiro. Temos uma forma de identificar quem fez pacto com o tinhoso: é aquele que pendura a fita preta em sua viola”, ensina Chico.

Reza a tradição que violeiros tradicionais e devotos do bem penduram em seus instrumentos fitas com cores representando as folias – branco, azul, rosa, amarelo, vermelho e verde. “Outra forma de reconhecer o violeiro pactário é desconfiar de quem não tocava nada, mas de uma hora pra outra aparece ponteando a viola com extrema agilidade”, revela.

Chico Lobo chama a atenção para a importância da figura do violeiro nas comunidades do interior do Brasil. “Ele sempre teve grande destaque social por ser o responsável por conduzir festas de colheita e as festas de mutirão, além de cumprir a função das rezas de folia, das danças da catira e de São Gonçalo.”

O mestre violeiro, que sempre gerou inveja, está ligado a símbolos que atravessaram a história da humanidade. “O mito universal de Fausto se faz muito vivo, presente e temido no mundo da viola tradicional, fincada nos grotões do Brasil. Acredito que muitas dessas ditas lendas envolveram as beiras de rio, como o nosso São Francisco. Daí vem a linha de pensamento que une o pacto do blues no Mississippi ao toque do capeta do rio abaixo em Minas”, conclui Chico.


BOBAGEM

Lendas sobre diabo, blues e viola não seduzem o guitarrista e compositor mineiro Affonsinho. Para ele, o pacto de Robert Johnson para se tornar virtuose não passa de bobagem. “Ainda mais nesse universo da arte que adora estratégias de marketing vestidas de contos de fadas”, comenta.

Affonsinho segue a cartilha de B. B. King, outro mito do blues. “Li a biografia dele três ou quatro vezes, adorei o livro. Quando passei por suas impressões a respeito da história de Johnson, fiquei aliviado. Penso como o ‘Rei do Blues’ quando ele diz: ‘Minha mãe tinha enchido meu coração de amor por um Deus compassivo. Canções gospel falavam sobre esse amor e eu adorava cantar gospel. Tinha escutado dizer que negros deveriam ter esse grande conflito, entre cantar para Deus ou cantar para o mundo. Alguns deles, sem dúvida, se sentem divididos. Mas não eu. Eu gostava de Robert Johnson, o cantor de blues do Mississippi que diziam ter vendido a alma para o diabo em troca de talento, mas considerava essa história uma besteira. Jamais trocaria os sentimentos que tenho por Deus por qualquer outra coisa. Na minha cabeça, nenhum artista de blues jamais o faria’.”

Affonsinho concorda totalmente com B. B. King. “A cada dia, tenho menos tolerância com lendas e contos. Sou músico há mais de 40 anos. Gosto mesmo é de música”, afirma.

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