DIVINO, MARAVILHOSO
Um jovem jornalista carioca chamado Carlos Marques (nome que soa exatamente como o de Marx quando pronunciado por um lusófono, de modo que, como era comum aportuguesar-se o prenome do filósofo, nós fazíamos toda sorte de brincadeiras com essa coincidência) trouxe para Gil, de volta de uma viagem ao Amazonas aonde ele tinha ido fazer uma reportagem, uma garrafa do que ele dizia ser uma beberagem indígena sagrada que produzia visões deslumbrantes e estados de alma elevadíssimos. Gil tomou uma dose no dia mesmo em que devia embarcar num avião para trazer Nara, sua filhinha de dois anos, do Rio para São Paulo. Ele conta que, ao chegar ao Aeroporto Santos Dumont, deparou-se com um grupo de militares que ali estavam inaugurando não sei que exposição ligada à força aérea. As mudanças de percepção causadas pela droga tinham justamente começado a se manifestar. Ele chegou a São Paulo contando que captara conteúdos indescritíveis na presença dos militares. Dizia que era como se tivesse entendido o sentido último do momento de nosso destino como povo, sob a opressão autoritária, e, ao mesmo tempo, podido situar-se como indivíduo sozinho, consciente do dever de trazer sua filhinha com cuidado, mas também podendo amar, acima do temor e de suas convicções ou inclinações políticas, o mundo em suas manifestações todas, inclusive os militares opressores.
O golpe de Estado de 64 - que os militares dizem ter dado a 31 de março mas que o Brasil recebeu em 1º de abril, o dia dos tolos - tinha me surpreendido exatamente no momento em que eu cria poder engajar-me numa ação politicamente responsável e socialmente útil. O professor Paulo Freire, um educador católico de esquerda, tinha criado um método de alfabetização de adultos, tido como muito eficaz, o qual se baseava numa concomitante conscientização social e política dos educandos. É preciso esclarecer que, naquela época, ninguém julgaria tratar-se de propaganda política camuflada de educação.
Em primeiro lugar, afora as forças reacionárias que tramavam o golpe que viria, era consensual que o Brasil necessitava de "reformas de base", visão partilhada pelo próprio governo federal (que também por isso veio a ser deposto). As aulas ministradas pelas turmas formadas no método Paulo Freire eram antes vistas como educativas no sentido mais amplo de preparar a população para grandes transformações sociais. E, depois, no método de Freire as implicações sociais e políticas envolvidas nos cursos entravam como subsidiárias da meta final, que era alfabetizar, e não o contrário. Claro que a mera educação de grandes contingentes da massa brasileira teria significado uma revolução em si mesma, independentemente da inclusão ou não de noções socializantes no projeto. E, a rigor, não se pode falar em noções socialistas nos planos de aulas só porque eles partiam do reconhecimento dos materiais de trabalho - e das dificuldades diárias de cada grupo a ser educado. Seja como for, a direita e as reações inconscientes que a estrutura social brasileira ceva desde a época colonial responderam com o golpe militar a essa combinação de ameaça de alfabetização acelerada e conscientização política das tradicionalmente marginalizadas classes pobres brasileiras. A União Nacional dos Estudantes adotou a causa, e os Centros Populares de Cultura incluíram em seu programa formar educadores para a aplicação do método Paulo Freire. Apesar da simpatia com que eu via as atividades dos CPCS, nunca me identifiquei com a poesia panfletária e o teatro didático que eles produziam. Essa campanha de alfabetização, com sua clareza de propósitos, me atraiu imediatamente. Eu tinha ido a uma reunião para formação de instrutores voluntários quando a notícia de que um golpe de Estado se daria naquela mesma noite nos fez interromper os trabalhos. Alguns participantes quiseram continuar, argumentando que sem dúvida tratava-se de um boato infundado. Mas os mais experientes, baseados no peso das fontes das quais surgira o alerta, desfizeram imediatamente a sessão, recomendando-nos que fôssemos para casa, enquanto eles averiguariam se havia algum esquema de resistência em que se engajar. Saí perplexo do prédio da Escola de Economia – pois era numa sala dessa escola que a reunião se dava e fui andando até o Relógio de São Pedro, um pequeno largo triangular em meio à avenida Sete de Setembro, em cujo vértice ergue-se um grande relógio de ferro trabalhado que, juntando a si o nome do santo de uma igreja próxima, passou a nomear o largo e suas adjacências.
Acho que, nessa noite mesma, encontrei ali, à porta de um bar (ainda não se dizia "lanchonete") de nome Biklour (!), Gil, Roberto Santana e outros conhecidos falando justamente sobre episódios de enfrentamento da repressão policial quando de manifestações estudantis mais estridentes. Eles riam muito e eu sentia medo. Não lembro se eles já estavam cientes do golpe iminente (na verdade, consumado), mas estou certo de que não fui eu a dar-lhes a notícia. No dia seguinte, na Faculdade de Filosofia, não houve aula. Circulavam notícias de professores presos ou chamados para prestar depoimento e boatos sobre o paradeiro de colegas desaparecidos. E - o que era mais assustador - tanques nas ruas. Tenho muito vívida em minha memória a sensação que experimentei ao andar do fim de linha do bairro de Nazaré, onde morava, até o antigo prédio da faculdade, no meio da rua Joana Angélica. Vendo os tanques, eu me perguntava se teria coragem de me meter numa revolução, se estaria disposto a dar a vida pelas causas sociais que supunha apoiar. Naturalmente, senti que não daria minha vida por nada. Mas não estava certo do que significava, naquele momento - e a partir daquele momento -, "minha vida".
As ruas silenciosas, os tanques, tudo me dava a impressão de um pesadelo. Eu sentia medo e ódio daquela presença do exército nas ruas, com suas cores encardidas e seu ar anônimo. Infantilmente, apenas desejei que aquilo passasse depressa.
Quando na faculdade me disseram que alguns pensadores prognosticavam pelo menos dez anos de governo militar, eu me senti gelado por dentro. Mas as piadas que começavam a correr - algumas verdadeiras, como a do nosso professor de história da filosofia Auto de Castro respondendo que não era marxista e sim neokantiano (o que era verdade) e os militares tendo que chamar o padre Pinheiro, nosso professor de metafísica e "filosofia geral" (que nos anos 70 deixou a batina e se tornou censor cultural a serviço do regime), para traduzir-lhes o que Auto dizia - me fizeram sentir que a vida continuava.
Nesse mesmo 1º de abril de 1964, fui à noite ao bairro da Graça ver Dedé e Gracinha (Gau, Gal). Eu estava indo freqüentemente ali para ouvir Gal cantar e para aproximar-me de Dedé, com quem eu queria namorar mas que tinha um namorado carioca. Nessa noite, ela me disse que já não namorava com esse tal. Quando todo o mundo disse que ia dormir, eu e Dedé, sem precisar combinar, ficamos sós por mais algum tempo e nos beijamos. Saí deixando em aberto se nos veríamos no dia seguinte ou não, o que chocou um pouco Dedé, uma vez que o beijo, para ela, iniciava um compromisso. Para mim também, é claro, mas eu quis dar um tom de soltura aos nossos encontros subsequentes, deixando a decisão sobre se estávamos ou não comprometidos um com o outro para um momento mais maduro da relação - e mantendo o sabor de liberdade. De fato, a partir desse momento, não nos desgrudamos mais. Eu não estava apaixonado, pelo menos não como estivera por uma menina de Santo Amaro durante anos, como já contei, mas estava muito feliz - e o momento do beijo me comoveu profundamente. Cheguei ao Biklour esfuziante de alegria, sobretudo porque, no caminho, vim pensando nas delícias de poder contar com uma menina bonita que aceitaria minhas carícias, as quais poderiam ser cada vez mais íntimas e ousadas.
Gil, ao me ver, disse imediatamente: "Você começou a namorar com aquela menina da Graça!". Eu conhecera Dedé, como já disse, por causa de Gal - e Gal por causa de Dedé.
Mas depois do primeiro encontro, ficamos algum tempo sem nos ver. Uma noite, fui à reitoria da universidade para participar de uma manifestação (na verdade, apenas para assistir a ela) contra o fato de terem escolhido para ministrar a aula inaugural o banqueiro Clemente Mariani, um milionário baiano de nome conhecido que, por amizade e laços de parentesco, hospedava em sua mansão de Salvador o governador da Guanabara Carlos Lacerda. Lacerda era o maior inimigo do governo Goulart e do ideário reformista. Tendo iniciado a vida como comunista, ele terminara por ver melhor adaptada sua ambição de tornar-se presidente ao projeto do capitalismo internacional - americano -, e fizera oposição ferrenha ao "trabalhismo" e ao nacionalismo de Vargas, chegando mesmo a ser o principal responsável pela queda deste. Ele foi o mais brilhante político da direita brasileira e sua passagem pelo Rio como governador não pode ser considerada menos do que marcante do ponto de vista administrativo. Era um orador vibrante - e culto - e aparentemente era querido pelas solteironas, viúvas e senhoras de meia-idade conhecidas como "mal-amadas". Sem dúvida ele tinha um projeto para o Brasil, pela via capitalista e de colaboração com os Estados Unidos na guerra fria. Os próprios filhos dessas senhoras que eram suas cultoras o abominavam: ele era o inimigo número um das esquerdas e, portanto, dos estudantes. A aula que seu amigo Clemente Mariani proferiria aquela noite não aconteceu pois uma horda juvenil invadiu o salão nobre da reitoria e deu a palavra a um jovem líder de que gostávamos muito, um negro retinto chamado Betinho (hoje membro do PDT de Brizola e conhecido como Caó), que falou do meio da platéia. Encontrei Dedé ali, para minha alegria, e me parecia delicioso que ela fosse tão mais participante do que eu. Ela gritava as palavras de ordem com entusiasmo e parecia conhecer todo o mundo, enquanto eu apenas assistia, mais impressionado com ela do que com a manifestação. Dali saímos em passeata até a praça municipal, onde o prefeito da cidade, o santamarense Virgildásio Senna, subiu ao palanque improvisado para reiterar seu apoio aos estudantes e ao presidente Goulart - e seu conseqüente repúdio à presença de Lacerda entre nós. Poucas semanas depois viria o golpe que Lacerda encomendava, sugeria e afinal colaborou para arquitetar. E, logo em seguida, Dedé e eu estávamos levando clandestinamente não sei que papéis para entregar a Ernest Widmer, diretor dos Seminários Livres de Música da Universidade, o qual agiu, segundo Laís Salgado (que nos tinha incumbido da tarefa), com muita coragem e com surpreendente lealdade aos estudantes brasileiros de esquerda, embora ele fosse um músico suíço de vanguarda cuja posição política era desconhecida.
O primeiro governo militar ficou nas mãos do hoje tido como sensato e mesmo valoroso marechal Castelo Branco, um ex-pracinha que desejava ver o Brasil seguindo as pegadas dos Estados Unidos. O homem que ele escolheu para ser seu ministro do Planejamento (ironicamente um hay ekiano, por princípio inimigo da própria noção de planejamento da economia por parte do Estado), Roberto Campos, um economista saído da diplomacia, tem sido até hoje a grande cabeça da direita brasileira. O ministro da Fazenda era Gouveia de Bulhões, mas o nome de Roberto Campos passou a ser sempre mais repetido. Sabe-se hoje muito sobre a participação da CIA na armação dos governos militares latino-americanos dos
anos 60 e 70. Mas tudo indica que as esquerdas tendiam a superestimá-la. Não parece ter havido um envolvimento dos americanos no 64 brasileiro como veio a haver depois no Chile para a derrubada de Allende. As suposições de que vasos da força naval americana estariam a postos ao largo das nossas águas territoriais para o caso de se fazerem necessários parecem ter origem apenas em descrições de fictícias estratégias rotineiras. Ou pelo menos é o que o jornalista Paulo Francis, muito lúcido e muito desabusado (mas também muito suspeito por
ter tirado abusivas vantagens da moda de apregoarem-se opiniões reacionárias em todos os níveis), nos faz crer com a análise do golpe que apresenta em seu livro Trinta anos esta noite.
Nos dois ou três dias subseqüentes ao 1º de abril de 1964 falou-se em resistência liderada por Brizola, o valente ex-governador do Rio Grande do Sul, cunhado do presidente deposto. Isso trazia ansiedade, mas também servia de antídoto para a depressão. Até hoje ninguém sabe exatamente por que João Goulart não reagiu ao golpe absolutamente. Ele apenas retirou-se para sua fazenda na fronteira com o Uruguai. Os militares entraram assegurando que seu governo seria provisório e breve: apenas o tempo necessário para livrar-nos do comunismo, estabilizar a economia e acabar com a corrupção. Castelo Branco não só tentou se ater a esse programa como de fato inaugurou a ciranda de presidentes militares eleitos indiretamente para cumprir um período limitado. Mas, ao prorrogar seu mandato para além das eleições que deveriam vir em 65, ele assegurou a permanência do poder em mãos militares e destruiu as lideranças civis de direita e centro-direita - mormente Carlos Lacerda - que tinham engendrado o golpe junto com eles. Em 64, nós não teríamos parâmetros para julgar a situação em que estávamos.
Castelo, que, em retrospecto, parece sensato e produtivo, era então a encarnação do mal: ainda não conhecíamos Garrastazu Médici. Nem ao menos achávamos que podíamos acreditar nas palavras de Castelo quando este dizia que não se demoraria na presidência. Uma ditadura militar tinha se implantado e uma semana depois já a víamos estável. Na verdade, a grande imprensa toda saudara a derrubada de Goulart. As passeatas das senhoras católicas (marchas da Família com Deus pela Liberdade) se sucediam em todas as grandes cidades brasileiras. Claro que muitas pessoas comuns comentavam essas demonstrações em tom sarcástico. E piadas antimilitares muito cedo circulavam em todos os ambientes.
Não tínhamos a impressão de que um "verdadeiro" Brasil anticomunista se revelara em oposição ao Brasil imaginário em que tínhamos vivido até então. Parecia-nos mais que, á parte os interessados diretos na manutenção dos privilégios (as "marchadeiras" e seus estimuladores), o grosso da população desprezava os militares e submetia-se apenas por medo e modéstia. Claro que, em larga medida, estávamos enganados. Mas também é claro que as manchetes dos jornais não traduziam o sentimento das pessoas de classe média que eu conhecia, por mais estranho que lhes fosse o ideário comunista.
Entre 64 e 68 o movimento cultural brasileiro não apenas intensificou- se: ele tomou uma feição ainda mais marcadamente esquerdista por unir autores, atores, cantores, diretores, peças, filmes e público numa espécie de resistência do espírito contra a ditadura. Nós, por exemplo, estreamos no Teatro Vila Velha ainda no segundo semestre de 64. Como já contei, Bethânia foi lançada em nível nacional no musical Opinião, um show de bolso de esquerda populista nacionalista. O Cinema Novo cresceu justamente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol, concluído em 64. Política nunca foi o meu forte. Mas vi-me em meio a uma perene exigência de caracterização política das criações artísticas e dos atos individuais.
Quando eu tinha uns sete anos de idade, comentei à mesa que a professora tinha ensinado que os comunistas eram maus. Meu pai - enchendo-me de orgulho por falar comigo de igual para igual - me disse que não ouvisse esse tipo de conversa, pois os comunistas eram em geral homens inteligentes que lutavam pela justiça entre os homens. A cara dele parecia enraivada, mas era evidente que ele não estava zangado comigo e sim com a professora que quisera me assustar. Aprendi para sempre, com esse episódio, a desconfiar dos anticomunistas. Havia no tom de meu pai uma cumplicidade na grandeza (uma profissão de fé pela grandeza e um reconhecimento dela em mim) que me encheu de orgulho. Cresci vendo no anticomunismo uma reação da mediocridade contra tudo o que pudesse haver em mim de grandioso.
Meu pai orgulhava-se de, no fim da guerra (o "Carnaval da vitória"), ter feito meu irmão Roberto, então pequenino, enganchado sobre seus ombros, levar a única bandeira da União Soviética do desfile em Santo Amaro. Ele o fizera acintosamente para mostrar insubmissão ao anticomunismo católico reinante - tomando posição independente no nascedouro da guerra fria. Por outro lado, na parede da sala de jantar de nossa casa, via- se uma fotografia de Franklin Delano Roosevelt. Meu pai dizia que essa homenagem - que durou talvez uns poucos anos - se devia ao fato de esse presidente dos Estados Unidos ter sido um grande defensor da democracia. Assim, o antiamericanismo encontradiço entre os simpatizantes comunistas tampouco era alimentado por meu pai. Encontrei, mais tarde, muitos militantes de esquerda que o eram contra o anticomunismo paterno - assim como os que, ao contrário, apenas continuavam uma tradição de família. Mas me chamaram muito a atenção aqueles que, pressionados por uma voga esquerdizante, tinham violentado preconceitos domésticos e, uma vez relativizados esses valores, exibiam um alivio um tanto ridículo por poderem voltar a concordar com os pais burgueses e as tias beatas.
Hoje que o comunismo parece ter se provado um fracasso histórico, casos desse tipo se multiplicam e têm expressão pública. No final dos anos 60, período do tropicalismo, as idéias da nova esquerda referentes a liberdade sexual, mudanças comportamentais etc. - aliadas à revalorização de Holly wood e do rock'n'roll - davam espaço a que se exibisse desprezo pelos comunistas ortodoxos. O "Partidão" era careta. Além de sempre atrelado ao que parecesse útil a Moscou na política interna convencional praticada em cada pais. A Revolução Cubana, que nos aparecia como uma promessa de socialismo mulato nos trópicos, sem as sombras cinzentas da Europa do Leste, não contara em Cuba com o apoio do PC. Acreditávamos - parafraseando o dito leninista de que "o esquerdismo é a doença infantil do comunismo" - que os estudantes franceses, brasileiros e americanos, em sua identificação com Fidel contra o PC - e com Guevara contra Fidel -, curassem as esquerdas da doença senil do comunismo ortodoxo.
Em 67 e 68, quando o presidente militar era Artur da Costa e Silva - ex-ministro do Exército e competidor de Castelo Branco -, as declarações coletivas de repúdio à ditadura saíram das salas de teatro para as ruas. As demonstrações cresciam e as lideranças estudantis surgiam nas reportagens da grande imprensa. Claro que o maio de 68 na França tinha sido um show jornalístico e o movimento brasileiro se beneficiou disso. Mas nunca entendi bem como Costa e Silva, que era considerado duro em comparação a Castelo, revelou-se tão receptivo às manifestações contrárias ao regime. Na verdade, ele ganhou rapidamente uma fama de pouco inteligente, algo desleixado e amante do jogo. Sua mulher, d. Yolanda, era uma personagem simpática em suas manifestações de gritante mau gosto. Nós, os tropicalistas, dizíamos às vezes, entre nós, que ela era a musa do movimento. Eu guardava uma fotografia dela colorida, de página inteira, cumprimentando Indira Gandhi quando da visita desta ao Brasil. O contraste entre a dignidade milenar do estilo da asiática e a vulgaridade da primeira-dama brasileira - num vestido "rabode-peixe" longo multicor e executando um gesto de munheca típico de vedetes - era tão vivo que quase começávamos a pensar que em tais extremos devia haver algo do que nos orgulharmos. Ela era camp. Ou achar graça nela o era.
Um estudante chamado Edson Luis foi morto por policiais no Rio, numa manifestação no restaurante universitário e isso desencadeou uma onda de indignação que levou lideranças estudantis, religiosas, operárias e artísticas a organizar uma passeata de protesto, pondo mais de 100 mil pessoas nas ruas. Gil e eu viajamos de São Paulo para participar. Havia dúvidas sobre se a demonstração seria reprimida e se o seria com violência. Mas a única presença perceptível do aparelho de repressão era um helicóptero do exército, que seguia do alto a passeata. Alguns dos participantes repetiam com orgulho que a repressão tinha se retraído em face do enorme número de manifestantes - e de nomes de primeira linha da cultura brasileira entre eles. Depois dessa passeata, muitas outras menores se seguiram. Em São Paulo sentia -se uma grande indiferença e até hostilidade por parte da população, enquanto no Rio tinha-se a impressão de que a cidade apoiava as paradas. Papel picado caia dos prédios do centro da cidade e o clima era de total simpatia. Mas a Policia Militar crescentemente reagia a essas manifestações.
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