sábado, 27 de julho de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Um episódio me parece muito significativo. Numa das noitadas de conversa e cerveja do 2002, Waly, Luis Tenório (um amigo de Dedé desde Salvador que, mais tarde, se tornaria um renomado psicanalista) e eu ficamos acordados até o dia nascer e continuamos falando sem parar até quando o sol já ia bem alto. De repente, percebemos um alarido vindo da rua. Olhando do nosso vigésimo andar, vimos tratar- se de uma passeata de protesto estudantil contra a ditadura. Decidi descer para ver de perto. Waly e Tenório me acompanharam. O cortejo seguia pela avenida Ipiranga e, ao alcançar a praça da República, foi interceptado por destacamentos policiais em imensos carros blindados - os chamados "brucutus" - e dispersou-se numa correria. Muitos estudantes eram alcançados por policiais, que os espancavam. Meus dois amigos seguiam a meu lado calados e tensos. Eu estava usando um casaco militar europeu antigo (um "casaco de general") sobre o torso nu, jeans, sandálias e um colar índio feito de dentes grandes de animal. Meu cabelo estava enorme e emaranhado, indo alto acima da cabeça e quase chegando aos ombros. Minha figura era surpreendente para a hora e o local (os homens de cabelos muito longos ainda eram raros) e se mostrava mesmo assustadora para a maioria das pessoas de quem me aproximava. Eu interpelava os passantes, protestando contra sua indiferença medrosa (e, quem sabe?, seu apoio íntimo) em face da brutalidade policial. Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes, dos soldados e de mim. Eu estava seguro de que, naquela situação, ninguém me tocaria um dedo. Sentia-me possuído por uma ira santa. Na verdade, as pessoas não saberiam como situar essa estranha aparição em meio à instabilidade produzida pelo confronto entre estudantes e militares. Ninguém me enfrentaria absolutamente naquela circunstância: todos me ouviam com o ar assustado de quem está disposto a engolir qualquer desaforo para safar-se. E desaforos era o que ouviam. Por outro lado, os soldados dificilmente focariam sua atenção em mim: eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos, na verdade tangenciando o olho do furacão, e minha aparência não seria computada como sendo a de um dos manifestantes. Eu falava alto e exaltadamente, mas nenhum soldado se aproximaria de mim o suficiente para me ouvir. Voltei para casa ainda ralhando com os passantes, enquanto os grupos em confronto se dispersavam - não sem que o brucutu levasse alguns presos. Eu estava consciente de estar encenando um happening. Era uma performance extravagante e séria que se dava à luz do sol. Sempre que leio comentários a respeito do narcisismo dos manifestantes do Maio francês, do caráter mais teatral do que político daquelas manifestações, penso em como tinha sido afinal de contas coerente que eu tivesse aceito a sugestão de Guilherme de fazer de "É proibido proibir" uma canção. Mas nessa estranha descida à rua, eu me sabia um artista realizando uma peça improvisada de teatro político. De, com licença da palavra, poesia. Eu era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava nesse momento necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos.
Nesse clima de ânimos exaltados e ruas conflagradas é que o auasca – assim é que se chamava a bebida que Carlos Marques trouxera da Amazônia - fez sua aparição. Gil, depois dessa experiência solitária no vôo Rio-São Paulo, propôs que fizéssemos todos uma "viagem" em conjunto. Ele veio para o meu apartamento com a garrafa e serviu a cada um a quantidade que Marques ("Marx") tinha recomendado: pouco mais de meio copo.
Minha primeira experiência com uma droga que não fosse álcool ou tabaco tinha sido uma catástrofe. Aos catorze anos, no primeiro Carnaval que passei em Santo Amaro depois de voltar do meu ano no Rio, Luis César, um companheiro do ginásio que já fora meu colega no curso primário, propôs que tomássemos um porre de lança-perfume juntos. O lança-perfume era um sinônimo de felicidade para mim. Vendido em garrafinhas de metal dourado ou de vidro com um dispositivo para fazer, com uma pressão do polegar, esguichar um jato fino de perfume que gelava a pele que tocasse, esvanecendo-se em segundos, ele era
um elemento que ampliava a magia do Carnaval, porque trazia antevivências de paixões amorosas (em princípio, ele existia para ser apontado por nós para meninas que se sentiriam fugazmente geladas, perfumadas e lisonjeadas - ou assim esperávamos) e uma sugestão olfativa de sonho. Meu pai comprava uma garrafinha para cada um de nós (que respeito ele tinha pelo Carnaval!), mas diversas vezes o ouvi recriminar o uso que se fazia do seu conteúdo como entorpecente e frisar que podia causar uma parada cardíaca. Sem embargo, eu ouvia de alguns conhecidos mais velhos (inclusive meus irmãos) elogios à maravilhosa sensação do "porre". Assim, quando Luis César me propôs a experiência, embora eu resistisse por muito tempo, chegou um ponto em que a curiosidade foi maior que o medo. Aspirei o lenço embebido no líquido e, em um segundo, era a pessoa mais infeliz sobre a face da terra. Toda a praça iluminada mergulhou numa escuridão que se originava em mim, e um zumbido em meus ouvidos, de intensidade regularmente oscilante mas também regularmente crescente, me levava a sentir-me perdendo o mundo - e perdendo-me para o mundo. O mais feroz pavor infantil de aniquilamento tomou conta de mim nesses segundos que pareceram durar uma eternidade, pois, à medida que eu afundava mais e mais na escuridão e na zoeira, eu era como que gradualmente desfeito de tudo, menos da lucidez para observar, dilacerado, o horror que estava me acontecendo. Luís César foi e voltou de seu mergulho sem demonstrar grande gozo ou grande sofrimento. Suas primeiras palavras denotavam um mero aumento da curiosidade a respeito do que se podia extrair de interessante do lança-perfume como droga. A imensurável alegria que ia se apossando de mim, à medida que eu percebia que estava voltando à vida, não foi bastante para impedir que, imediatamente depois de refeito, eu entrasse numa espécie de depressão que estragou meu Carnaval de 57 - e, em certa medida, todos os meus dias dali em diante. Eu visitara um inferno onde o absurdo insuportável de uma alma sem corpo - e de uma consciência sem objeto - se me apresentara como uma evidência terrível: odiei para sempre a idéia de que possamos seguir sendo nós mesmos depois da morte.
Ainda hoje, cada vez que ouço alguém falar de espíritos de parentes ou conhecidos mortos que tentam se comunicar com os vivos, me angustio só de imaginar a situação. Sinto pena dos mortos e raiva dos vivos que aventam com leviandade uma possibilidade tão horrorosa.
Gil, Dedé, Sandra, Péricles Cavalcanti, Rosa Maria Dias, então mulher de Péricles, Waly, Duda e eu, cada um tinha sua dose de auasca. Todos tomaram.
Menos eu, que, anos depois dessa experiência com o lança-perfume - e pouco mais de um ano antes dessa noite -, tivera um sofrimento igualmente infernal por causa de maconha.
Tinha sido uma negra americana que vivia em Salvador - ou ali tinha um apartamento alugado aonde vinha de Nova York para passar semanas -, uma mulher muito interessante cujas atividades na cidade nunca conseguimos precisar, quem nos iniciara, a mim e a um grupo de amigos baianos, na marijuana. Ela tinha grandes quantidades de erva de primeiríssima qualidade - "cabeça de negro" – e deu um cigarro a cada um. Sem saber que isso era muito, fumei o cigarro inteiro puxando com força e segurando a fumaça no pulmão, como ela ensinava. Como eu nada sentisse, procurei seguir suas instruções à risca. Depois de findo o cigarro, ainda dizendo que não sentia nada, levantei-me para ir até a janela. De vez, a luz caiu (era dia), meu coração disparou, minha boca secou e meu corpo ficou dormente - sobretudo as pernas. O susto foi muito grande e cheguei à janela esperando que aquilo passasse logo. Vi as pedras do calçamento como que coladas ao parapeito do terceiro (ou quarto) andar em que estávamos. Percebi que aquilo estava apenas começando. Nenhum dos meus amigos igualmente iniciantes teve reação parecida. Imediatamente demonstrei meu desespero e eles, a partir daí, passaram a se concentrar em cuidar de mim.
Eu me sentia longe e tinha uma saudade enorme das mesmíssimas pessoas que estavam ali comigo. Sentia uma saudade desesperada, da Bahia, de mim mesmo, de Dedé, da vida. Me deram doce, leite, laranjada. Nada me fazia melhorar. Por umas cinco horas sofri como louco. Quando comecei a perceber que voltava, um amor (não há outra palavra) muito intenso tomou conta de mim, tendo como objeto as pessoas que estavam ali - todas e cada uma -, as paredes, os móveis, o chão da casa, depois, o bairro da Barra, o mundo. Não era apenas a felicidade de recuperar em mim essas coisas: eu sabia que o sentimento também era sublinhado pelo tipo de embriaguez produzido pela droga. Mas as horas intermináveis de angústia - e a modificada sensação do tempo fez com que elas parecessem milênios - me deixaram traumatizado e eu me prometi que nunca mais fumaria aquilo outra vez. Essa sessão de maconha me trouxera à memória com vivacidade o horror vivido com o lança-perfume. Agora eu estava ali, diante do único copo de auasca que não fora esvaziado.
Tinha ouvido a argumentação de Gil para me convencer: diferentemente da maconha, o auasca não produzia queda de percepção da luz, dormências, embriaguez ou taquicardia. A gente ficava lúcido e aos poucos começava a perceber as coisas com mais intensidade, as cores, as texturas, as relações entre as formas, e às vezes víamos coisas que sabíamos não serem "reais", embora as víssemos com nitidez. Por um desejo de libertar-me do medo, por curiosidade, por necessidade de compartilhar, peguei o copo e engoli todo o conteúdo que me era destinado. A beberagem espessa e amarelada tinha gosto de vômito, mas não me causou náuseas. Fiquei tranqüilo esperando. De fato, nada aconteceu de comparável ao tapa da maconha. Apenas comecei a achar cômica a música do Pink Floy d que Gil pusera no toca-discos. Ela me soava superficial e gaiata e eu ria entendendo muito bem por que ela me soava assim. Logo o carpete de náilon do quarto do som apresentou seu modo peculiar de ser: cada tom de cor neutra - palha, areia, gelo, cinza e mil sub-brancos - dizia de si muitas coisas, fosse sobre a velocidade das vibrações que produziam sua aparência, fosse sobre a tolice dos homens que buscavam fingir beleza, fosse sobre a unicidade do momento em que estávamos nos encarando. Eu me demorava observando os objetos e me maravilhava de quão fundo os podia entender. Sabia tudo sobre aquele pedaço de madeira que aparecia sob o tapete. Captava o sentido das variações de densidade, entendia a história de cada pedaço de matéria. Comovia-me com o drama de cada ser inanimado que se me apresentava: não era como se eles tivessem consciência, antes era como se eu fosse uma consciência que tudo atravessa, sendo inclusive consciência profunda dos entes sem consciência. As vezes me parecia possível perceber como é que as moléculas se juntavam para resultar nessa ou naquela manifestação perceptível: pano, plástico, papel. Eu acompanhava o trabalho dos átomos, do acaso e das convenções na criação dos seres reconhecíveis. E não me sentia mal. Pelo contrário. Consciente de que já estava sob a ação da droga, eu simplesmente observava com uma curiosidade quase alegre as mudanças que minha gradativa mudança impunha ao mundo. As outras pessoas começaram a se mover de modo a me chamar a atenção. Por algum motivo, eu me isolara inicialmente e não tivera vontade de nada dizer nem perguntar a ninguém. Sandra entrava e saia do quarto do som com os olhos duros e o rosto sério. Ela estava assustada. Eu a achava parecida com um índio. Gil estava com lágrimas nos olhos e falava alguma coisa sobre morrer, ter morrido, não sei. Dedé circulava pela sala dizendo que se via a si mesma em outro lugar. Eu fiquei muito feliz de observar que as pessoas eram tão nitidamente elas mesmas. Fechei os olhos. Uns pontos de luz coloridos surgiram no espaço ilimitado da escuridão.
Eles se organizavam em formas agradáveis. Eu disse a Gil: "É tão bonitinho! É tudo simétrico!". E eu mesmo achava graça nas palavras escolhidas. E mais ainda: entendia que esse "é tudo" se referia àquilo que de fato é. Eu não estava dizendo "o que eu vejo é bonitinho e é simétrico", mas "o que é é bonitinho e simétrico". Eu tinha toda a calma do mundo para interpretar nesses termos o que eu mesmo dizia. Voltava então a fechar os olhos. Os pontos estavam mais e mais ricamente organizados. Eram luzes concentradas de cores gostosamente definidas. O modo como eles se organizavam parecia ao mesmo tempo
inevitável e livremente decidido por mim. 
Eu queria o que acontecia: eu desejava tal ou qual movimento e isso era imediatamente fatal. Formas circulares eram compostas por lindos pontos luminosos dançantes. Aos poucos eu sabia quem era cada um desses pontos. E em breve eles de fato se mostravam como seres humanos. Eram muitos, de ambos os sexos, todos estavam nus e tinham aspecto de indianos. Essas pessoas dançavam em círculos de desenhos complicados, mas eu não só podia entender todas as sutilezas dessa complicação como tinha tranquila capacidade de concentração para saber sobre cada uma das pessoas tanto quanto eu sei de mim mesmo ou de meus próximos mais amados.
Dizer que essas figuras dançavam em círculos é tentar traduzir para uma linguagem ordinária a sensação de completude absoluta que as formas por elas descritas produziam. Eu alternava com abrir e fechar os olhos - observação do mundo exterior e vivência desse mundo de imagens que se tornava cada vez mais denso. De fato, aos poucos eu reconhecia que os seres vistos com os olhos fechados eram indubitavelmente mais reais do que meus amigos presentes no quarto do som ou as paredes desse quarto e os tapetes. A própria concepção de espaço - o quarto no apartamento, na cidade, no mundo; as distâncias entre as pessoas, a dimensão dos móveis - se mantinha ao preço de um reconhecimento irônico de sua precária convencionalidade. O tempo era igualmente criticado por essa instância mais alta em minha consciência lúcida: com benevolência e sem nenhuma angústia, eu sabia que o fato de estar ali vivendo aquele momento era irrelevante diante da evidência de que eu já tinha - ou teria - nascido, vivido e morrido - e também jamais existido -, embora a percepção do meu eu naquela situação fosse uma ilusão inevitável.










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