Roberto Santana me apresentou a Gil num encontro casual na rua Chile (eu ia sozinho no sentido praça Castro Alves - praça da Sé e eles dois vinham ao meu encontro) e nós todos nos sentimos inteiramente à vontade, cada um querendo falar mais do que o outro. Gil parecia tão feliz de me conhecer quanto eu a ele. Dir-se-ia que ele também vinha me vendo em algum vídeo transcendental e esperava por esse encontro tanto quanto eu. Meus elogios à sua técnica e musicalidade logo nos levaram à apreciação dos mestres da bossa nova (principalmente João, Jobim e Carlos Lyra), tema de nossa paixão comum, e a conversa (sem violões) dispensou um teste de minhas capacidades musicais para e stimular o interesse de Gil: ele se entusiasmava com observações de ordem geral que esclarecessem o significado da música - o que não é muito comum em músicos -, de forma que o que eu dizia já valia por uma boa sequência de acordes. Algumas vezes, ao longo dos anos, ouvi, comovido, Gil dizer que ao me encontrar se sentiu saindo de uma espécie de solidão: ao me ver e ouvir teve certeza de que achara verdadeira companhia. Tenho a impressão de que, por valorizar em mim uma visão de mundo que englobava a música, para a qual ele era tão dotado (eu próprio, a essa altura, não imaginava que me profissionalizaria
no setor) - uma visão que lhe parecia uma ampliação da sua mesma - , ele criou a imagem de mim como mestre e - como fazem os grandes quando julgam ver grandeza em quem admiram - relevou minhas deficiências ou melhor: interpretou-as sempre de forma a lhes dar um sentido superior. Viu, por isso, qualidades na minha música que possivelmente nenhum outro músico de talento igual ao seu veria então - e assim não apenas me estimulou e encorajou como também me ensinou tudo o que me era possível aprender, tornando-se, ele sim, meu verdadeiro mestre.
Não que Gil me desse aulas de harmonia ou de técnica violonística. Mas vê-lo tocar violão e cantar me desinibiu para a música como nada o poderia ter feito. O que me possibilitou arriscar-me a ampliar o repertório de acordes e de "batidas" no violão barato que minha mãe tinha me comprado e para cujo domínio eu não alimentava esperanças. Gil trazia o mistério celestial da beleza da bossa nova para o alcance dos meus dedos - eu me permitia apenas querer roçá-lo de leve: acreditava poder tirar uma lasquinha sem profaná-lo. Gil não se negava - ao contrário - a explicar as relações entre os acordes, a descrever o modo como se posicionavam os dedos ou ensinar -me harmonias de canções inteiras, mas fazia tudo isso casualmente, em meio às conversas despreocupadas. Hoje me assusta a rapidez com que progredi do básico tônica/dominante/tônica para acordes alterados e para a noção de vozes internas que caminham. Eu não tinha ideia do quanto estava me tornando mais "musical": julgava que apenas aprendia mal - na medida do meu talento imutável - um ou outro aspecto do saber musical a que Gil tinha acesso por direito congênito. Até hoje acho que a forma desequilibrada como trato a música - como autor e como ouvinte - (exibindo complexidade quando já não se espera senão primarismo, e ingenuidade quando a expectativa seria de sofisticação) se deve ao fato de eu ter me negado a me impor um método, por não ter em minha capacidade musical a fé que Gil tinha. Na verdade, nunca mais fiz progressos comparáveis àquela arrancada. Mas nada eu poderia hoje em música se Gil não reafirmasse essa sua fé a cada instante, apesar de mim mesmo. Gil tirou de mim muito mais música do que jamais sonhei poder engendrar.
Algumas vezes, apesar da felicidade de poder estar mais próximo de João Gilberto por causa dos ensinamentos de Gil, eu entrava em crise por não me achar no direito de fazer música. Uma das coisas mais deprimentes de um país desorientado em sua história - de um país incompetente como disse Hannah Arendt dos países subdesenvolvidos - é a incapacidade de se adequarem os talentos e os temperamentos dos indivíduos às funções que irão exercer. Há uma sensação de desperdício e frustração de que sempre tive consciência e contra a qual sempre quis me insurgir. Este é um ponto central de meus cuidados, foi do tropicalismo e permanece, para mim, irresolvido. Suponho que se eu vivesse em São Paulo ou no Rio teria concluído o curso de filosofia e talvez esse tivesse sido um caminho mais condizente. Ou - tivesse eu conseguido reunir forças para começar por fazer filmes antes de a música me agarrar - quem sabe minha mente generalista aliada a minha vocação visual de ex- pintor (e o pouco de música que haveria sempre) fariam de mim um cineasta mais eficaz do que posso ser músico. De todo modo, eu temia - e esse temor não morreu de todo - que minha entrada na história de nossa música antes a empobrecesse do que contribuísse para seu engrandecimento. No seu livro sobre a bossa nova, o jornalista Ruy Castro coloca o tropicalismo como tendo vindo para jogar a pá de cal na cova daquele movimento de requinte e refinamento. O primeiro pensamento que essa observação provocou em mim foi o de repetir meu velho exame de consciência - e para os mesmos resultados inconclusivos. Antes de Gil sair da Bahia para São Paulo em 65, um desses exames de consciência me fez dizer-lhe, de coração, que tinha decidido não mais fazer música. Gil foi enfático: "Se você não fizer música eu também não faço". E disse que não aceitava a hipótese, que não veria sentido em seguir sem mim. Isso era, para mim, a própria música falando. E recuei.
Gil é um mulato escuro o suficiente para, mesmo na Bahia, ser chamado de preto. Eu sou um mulato claro o suficiente para, mesmo em São Paulo, ser chamado de branco. Meus olhos são, sem embargo, muito mais escuros do que os dele. Por outro lado, embora fôssemos ambos da classe média, Gil, filho de médico (e com apenas uma irmã), conheceu alguns privilégios da burguesia com os quais eu, filho de funcionário público (e com sete irmãos), nem podia sonhar. Seu pai tinha carro e ele estudara em escola privada. As escolas públicas eram freqüentemente melhores do que as escolas privadas naqueles tempos em que o privatismo ainda não era uma mania. Mas se estudar em escola particular não era certificado de melhor educação, era sinal de status social. Gil tinha saído dos padres maristas para a Escola de Administração da Universidade da Bahia, o que denotava um projeto de reafirmação da posição social conquistada por seu pai. Ele se sentia perfeitamente à vontade entre seus colegas na maioria" brancos" saídos da burguesia propriamente dita, sem que isso entrasse em contradição com o ideário de esquerda que ele compartilhava com um bom número deles. A Escola de Administração, é claro, não era um reduto de comunistas. Mas Gil era muito mais parecido com um militante do que eu que estudava na Faculdade de Filosofia, com seus departamentos de Sociologia, Letras e História, onde a esquerda imperava. Nossas visões das questões políticas, no entanto, não diferiam muito no essencial. Nós nos encontráramos na música e não nos sentíamos distantes um do outro em nada mais: saudávamos o surgimento do CPC da UNE - embora o que fazíamos fosse radicalmente diferente do que se propunha ali – e amávamos a entrada dos temas sociais nas letras de música, sobretudo o que fazia Vinicius de Moraes com Carlos Lyra.
Gil nunca parecia consciente do fato de que era preto. Isso não o humilhava ou enaltecia: ele simplesmente se portava como um cidadão desembaraçado. Sua desenvoltura natural fazia com que a negritude nele correspondesse ao tom em que minha mãe se referira a ela. No final da década - sobretudo sob o impacto de Jimi Hendrix - Gil vestiu a máscara do negro com consciência racial, e essa nova persona, em vez de meramente ocultar o homem resolvido além dos conflitos, revelou conteúdos de mágoa e orgulho havia muito latentes sob o antigo véu. Era como se ele se tivesse longamente submetido à crença de que não era preciso bater no peito e gritar "sou negro!" ou protestar contra discriminações, considerando bastante ter uma vida digna e afirmar-se social e intelectualmente como fizera seu pai. Agora, com o aspecto black is beautiful" da cultura pop que ele abraçava como conseqüência de seu refinamento pessoal, ele encontrava africanidades em suas reminiscências domésticas e revolta contra os aspectos raciais da injustiça da sociedade brasileira. É revelador de profunda verdade sobre essa questão no Brasil o fato de Gil ter sido um exemplo perfeito de filho de "preto doutor" baiano e, à medida que os negros pobres foram dominando a paisagem humana da Cidade do Salvador com sua afirmação cultural popular pós-60, e, ao mesmo tempo, perdendo chances de se tornarem profissionais liberais por causa da intensificação das desigualdades sociais e da ruína da educação pública, ter se tornado um líder mítico dessas novas massas negras. Assim, o pequeno burguês bossa-nova de 63 é cantado pelos blocos afro dos anos 80 e 90 como aquele que ficou no lugar de Bob Marley na defesa de seu povo. A mudança de Gil em relação à questão do negro trouxe novo sentido à sua velha paixão por Jorge Ben. E os interesses musicais deste, no momento de deflagração da Tropicália, convergiam com os nossos. Nos anos 70, de volta do exílio londrino, aproximando-se ainda mais de Ben, Gil - que, ao contrário de mim, jamais gostara de Carnaval - fez uma música suplicando aos orixás que fizessem renascer o afoxé Filhos de Gandhi, seu único amor de infância do Carnaval de Salvador, um curiosissimamente lindo grupo carnavalesco surgido nos anos 40,
formado de homens, na maioria negros, vestidos à indiana, usando turbantes brancos, com um deles caracterizado como o líder hindu (óculos, bengala e tudo) a puxar um elefante de papelão sobre o qual uma criança negra também vestida a caráter desfila pelas ruas da cidade - tudo ao som de atabaques e agogôs saídos diretamente dos terreiros de candomblé. Gil compôs a música ao ver que só restavam uns dez ou doze teimosos filhos de Gandhi sem forças para fazer frente aos potentes trios elétricos (que a essa altura já apresentavam o frevo com pitadas de progressive rock, glitter e heavy metal), cuja vitalidade eu mesmo louvara numa marcha-frevo de 68 (o que lhes aumentara o poder). Dir-se-ia que os orixás atenderam os pedidos de Gil, pois o bloco já no ano seguinte saía com mais de mil componentes e até hoje só tem feito crescer em tamanho e garbo.
Isso estimulou o surgimento de novos afoxés que, por sua vez, já incluindo temas de afirmação racial em caráter político, deram lugar ao nascimento de blocos afro como o Ilê Aiy ê e o Olodum, hoje conhecidos nacional e internacionalmente pela vigorosa originalidade de suas baterias. O mito astrológico que diz serem os signos de Câncer e de Leão opostos e complementares - um, o Sol, o outro, a Lua; um condenado à explicitude, o outro, ao mistério - foi usado com proveito tanto por mim quanto por Gil para explicar nossa união e nossa diferença. Walter Smetak, o músico erudito suíço-baiano inventor de instrumentos e amante de esoterismos, dizia que nós éramos, juntos, a encarnação do arquétipo dos gêmeos. Nascemos os dois no mesmo ano de 42, com diferença menor do que um mês. Meu pai se chamava José e o pai dele se chamava José. Minha mãe se chama Claudionor e a mãe dele se chama Claudina. Mas os misticismos que entraram em moda a partir do final dos anos 60 não tomaram de todo conta das nossas cabeças (e da minha ainda menos do que da dele) e essas interpretações e coincidências só servem para enfeitar com toques curiosos nosso companheirismo renitente.
Quando Rogério dizia que "Gil é o profeta, Caetano é apenas seu apóstolo", isso me parecia verdadeiro sobretudo porque praticamente não houve nada de relevante que não fosse primeiro arriscado misteriosamente por ele para, depois de um tempo de elaboração, ser transformado por mim em algo mais perceptivelmente coerente. Foi assim com Jorge Ben; foi assim com o tropicalismo como um todo; foi assim com o reconhecimento da importância de São Paulo como cidade a tomar outra posição no imaginário brasileiro; foi assim com os procedimentos composicionais resultantes do que julgávamos ouvir nos Beatles; foi assim com Hendrix; foi assim com a descoberta do gênio de Milton Nascimento; foi assim com a nova cultura pop da Cidade do Salvador. Mas isso não quer dizer que eu (ou ele) sempre tivesse consciência de que trabalhávamos assim. Muito menos que nossas divergências de opinião e temperamento não nos levassem a expor (ou - o que tem sido sempre mais freqüente - calar) discórdias. Assim, se muitas vezes me senti recebendo os louros que lhe eram devidos e negados, não faltaram nem têm faltado momentos em que preciso desembaraçar minha inteligência e meu poder de discernimento das oscilações de sua intuição e da obscuridade de seu espírito a um tempo teimoso e ultrareceptivo. E ele também deve se cansar de me idealizar.
Talvez sua reação a Tropicália ou Pan is et circensis nascesse de uma defesa de seu ego contra o meu (hoje ouço as desafinações dos metais na primeira faixa com muito mais clareza do que então). Seja como for, nenhum de nós dois é egomaníaco o suficiente para deixar que problemas desse tipo se tornem maiores que a amizade ou a parceria.
Quando o disco ficou pronto, eu exultava com o êxito conceitual, mas o que me parecia um relativo avanço técnico soava como um retrocesso aos ouvidos de Gil. De todo modo, para Zé Agrippino, apenas a faixa dos Mutantes (o tratamento que eles deram à minha parceria com Gil "Panis et circensis") saia do limbo do subdesenvolvimento. De fato os Mutantes - por sua extrema juventude, começando a vida ao mesmo tempo que o neo-rock'n'roll inglês; por sua
condição de paulistas, vivendo na região mais rica e menos característica do Brasil; por sua familiaridade com equipamentos eletrônicos (o irmão mais velho dos dois rapazes é um inventivo engenheiro); mas sobretudo pelo talento dos irmãos Batista e da namorada de um deles - tinham um domínio da linguagem pop (sonora e visual: os teipes da época e alguns dos filmecos feitos com eles parecem produções atuais da MTV) que os distanciava tanto da MPB convencional quanto do iê-iê-iê e do próprio tropicalismo.
Eu achava, contudo, que em "Baby " por Gal e Duprat, ou em "Enquanto seu Lobo não vem" por mim, Gil e Duprat, havia alguma coisa de outra natureza e que me interessava mais. Algo mais fértil e para ser julgado por outros critérios que não o mero cotejo com a produção anglo-americana. O tropicalismo ganhou corpo na história da MPB como um conjunto de atos dos quais a colaboração com os eficientes e inspirados Mutantes foi um dos mais auspiciosos, mas o núcleo estava em outra parte. Depois que voltei de Londres, nos anos 70, Rita Lee se tornou, com um trabalho de excelente qualidade e grande sucesso, a roqueiramor do Brasil. E os Mutantes, sem ela, se inclinaram para o progressive rock, com competência para soar como o Yes ou o Emerson, Lake and Palmer.
Serginho sempre foi um virtuose e Arnaldo, bom instrumentista, um músico de forte marca pessoal; nesse período, juntaram-se a Liminha, um contra-baixista excepcional que, como eles, tinha trabalhado com Ronnie Von e, depois, comigo (e hoje é um produtor de primeira linha em termos mundiais), e formaram um trio que, se nunca se tornou comercial como Rita, elevou o nível técnico e de ambição do rock brasileiro e mesmo latino-americano.
O rock chamado "progressivo" não nos atraía. Amávamos e admirávamos os novos Mutantes sem compartilhar com eles do entusiasmo pelo tipo de música que eles elegeram. Mas a própria Rita trabalhando solo, com sua poesia, sua musicalidade, seu wit e sua elegância, trazia de volta a divisão entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar. A palavra-chave para se entender o tropicalismo é sincretismo. Não há quem não saiba que esta é uma palavra perigosa. E na verdade os remanescentes da Tropicália nos orgulhamos mais de ter instaurado um olhar, um ponto de vista do qual se pode incentivar o desenvolvimento de talentos tão antagônicos quanto o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho, o de Arnaldo Antunes e o de João Bosco, do que nos orgulharíamos se tivéssemos inventado uma fusão homogênea e medianamente aceitável. Somos baianos. Eric Hobsbawm, em suas apreciações do nosso "breve século XX" escreveu que, desde o entreguerras, "no campo da cultura popular [e dando, curiosamente, o esporte como única exceção em que se destaca o futebol brasileiro como "arte"], o mundo era americano ou provinciano". Isso era um dado que os tropicalistas não queríamos negar. Tampouco queríamos encarar com rancor ou melancolia. Reconhecíamos a alegria necessária que há em alguém achar-se participando de uma comunidade cultural urbana individualista universalizante e internacional. Os pruridos nacionalistas nos pareciam tristes anacronismos. Ao mesmo tempo, sabíamos que queríamos participar da linguagem mundial para nos fortalecermos como povo e afirmarmos nossa originalidade. O mero aggiornamento era pouco para nós. Sobretudo porque víamos (ou imaginávamos) que a oposição "americanos ou provincianos" estava – ou estaria, se agíssemos acertadamente - em vias de se modificar. Desse modo embora ainda hoje Rita nos dê lições de profissionalismo e atualidade, o fato é que a Tropicália sugere um horizonte de problemas que é enriquecido por trabalhos como o dela, mas isto não quer dizer que ela os resolve. Na concepção do disco Tropicália ou Pan is et circensis havia um plano, este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção brasileira em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental "Coração materno", um dos maiores sucessos de Vicente Celestino, o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava aos anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de sucesso, operetas e filmes, como o recordista de bilheteria O ébrio de 46. "Coração materno" conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à sua amada, como prova de amor, o coração da própria mãe. O matricídio se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um
oratório. O jovem, depois de rasgar-lhe o peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada levando-o nas mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta: "Magoou-se, pobre filho meu?", e, num último e extremo golpe comovedor, exorta: "Vem buscar-me que ainda sou teu".
Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo – o extremo oposto do que viera dar na bossa nova - era indefensável. A melodia do "Coração materno", como todas as outras de Celestino, era para nossos ouvidos um mero pastiche de ária de ópera italiana. A idéia de gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima estético acima do qual nós nos julgávamos alçados altamente. Mas essa era uma história que, em vários planos, era mais arcaica do que podia parecer. A minha primeira lembrança de patrulhamento do gosto - ou de educação estética por meio da humilhação; ou de esnobismo
cultural - remonta à infância remota, entre os quatro e os seis anos, quando meus irmãos riram de mim por eu externar admiração por Vicente Celestino, suas melodias, sua grande voz. Já então, nos anos 40 - pelo menos dentro de minha família – os dramalhões cantados com voz empostada eram considerados ridiculamente vulgares. Lembro que a vergonha que senti foi funda e, sem dúvida, a marca indelével que deixou, disciplinou minha sensibilidade. Cresci para desgostar de ópera italiana e suas imitações, e ainda hoje, quando se trata de canto lírico, tenho prazer total com sopranos e contraltos e quase nenhum com tenores e barítonos. (Curiosamente, tanto Gil quanto Milton Nascimento têm, nesse particular, gosto igual ao meu). O amaciamento da emissão e a flexibilização do fraseado que Orlando Silva legou a João Gilberto foram e são meu critério preferencial de julgamento do canto. Mas nunca esqueci de todo as canções de Vicente Celestino, que eu já sabia cantar quase antes de falar. Para gravar o "Coração materno" não precisei propriamente reaprender a canção, tive
apenas que conferir a gravação original para evitar eventuais erros tópicos. E lembrava melhor dela (que era indiscutivelmente a que melhor servia aos propósitos tropicalistas) do que de qualquer outra de Celestino.
Por outro lado, ao ler o romance Spartacus, quando ainda no curso clássico, em Salvador, deparara-me com o drama do campônio matricida narrado por um personagem de dois mil anos atrás como sendo, para ele, uma velha história. Impressionou- me, à época, que esse conto popular pudesse ter se mantido igual em todos os detalhes por tantos séculos. Nunca verifiquei se de fato essa já era uma história corrente na Roma antiga ou se ela fora inserida no romance artificialmente pelo seu autor, que talvez a conhecesse de outras fontes. O fato é
que esse conto, usado por Vicente Celestino para comover multidões como exemplo do desprendimento materno - e que reencontrei em Terrible honesty, de Ann Douglas, recontado pelo psiquiatra Frederic Wertham para explicar o impulso matricida como decorrente da necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno demasiadamente sufocante -, mostrou -se representativo não apenas da sensibilidade das massas brasileiras, mas da própria natureza de toda cultura popular.
O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma atmosfera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes de Holly wood), restituindo dignidade e conferindo solenidade à canção execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera e sóbria. No que diz respeito a meu canto, ali eu reconheço profundas influências, algumas inconfessadas, que marcam meu estilo e lhe fazem a fama até hoje: notadamente Silvio Caldas (o anti-Celestino, em sua emissão cheia de "verdade" intensa e despretensiosa) e o radiador Roberto Faissal (aos meus ouvidos ele tinha aquelas mesmas características de Caldas ainda mais acentuadas, e lembro de declamar, sozinho, aos treze anos, letras inteiras de músicas de que eu gostava - inclusive o Hino Nacional! - imprimindo-lhes o tom de Faissal, sua convincente certeza, o que às vezes me levava às lágrimas; essas declamações serviam de treinamento para, depois, cantar as canções com mais precisão e segurança). O resultado da combinação do arranjo de Duprat - que inicialmente se funde aos tiros de canhão da faixa anterior - e minha "leitura" (Caldas, Faissal etc. me autorizariam o uso da palavra sem as aspas) da letra de Celestino é uma peça que comove porque faz o ouvinte passar, consciente ou inconscientemente, por todas as referências que pude explicitar aqui - e por tantas outras que não pude. Estou escrevendo estas notas sem o disco à mão. Na verdade, faz muito tempo
que não o ouço. Assim como não reouvi nenhum dos discos tropicalistas (fosse o meu, o de Gil, o de Gal ou o dos Mutantes) para fazer os comentários. Tampouco procurei Zé Celso ou algum arquivista em busca de fotografias da montagem de O rei da vela (na verdade há um filme, feito pelo próprio Zé). Talvez o vestido de Heloisa de Lesbos no terceiro ato fosse todo branco e não todo preto.
Tropicália ou Pan is et circensis abre com uma composição de Gil e Capinan chamada "Miserere nobis", em cuja letra reconheço o embrião da poética mineira dos anos 70: as referências católicas, as imagens nobres envolvendo um compromisso político mais pressuposto do que explicitado, a dicção solene. Num nível sempre extraordinariamente mais alto do que seus seguidores, Capinan prefigurou toda a lírica "participante" pós-tropicalista. Mas foi Torquato quem escreveu, também sobre uma música de Gil, a letra que para muitos se tornou, mais do que a própria "Tropicália", da qual ela tirava a sugestão, a letra-manifesto do movimento: "Geléia geral". Começando com uma referência direta à figura do poeta ("o poeta desfolha a bandeira"), inventariando signos do trópico ("bananas ao vento", "calor girassol") e da vida brasileira (o Jornal do Brasil, Miss Brasil, a "Carolina" de Chico Buarque), citando Oswald de Andrade literalmente ("a alegria é a prova dos nove"), popularizando a expressão "geléia geral" (cunhada, como já contei, por Décio Pignatari no texto que tanto me impressionara num número da revista Invenção), pondo lado a lado o folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano internacional ("ê bumba iê-iê boi, ê bomba iê-iê-iê"), "Geléia geral" apresentava a versão de Torquato do tropicalismo. Ela pode ter servido para alguns como uma espécie de "Tropicália" facilitada, mas, sublinhada pela melodia vivaz de Gil, trazia a leveza do lirismo de Torquato, a fluência de seus versos e de suas imagens, a melancolia fingidamente escondida - além, é claro, da para mim muito importante afirmação da dimensão poética do movimento, aqui inscrita na atitude que precede a decisão de escrever os versos singelos e não, como no caso de Capinan, no esforço de adensamento da poeticidade dos próprios versos
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