segunda-feira, 14 de novembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Felicíssimo, fui à supermissa do Aterro do Flamengo como quem vai a um show dos Rolling Stones. À noite encontrei Rogério Duarte no Baixo Leblon. Contei alegre a novidade, ele desejou felicidades, sorriu beatificamente mas advertiu: “Cuidado, porque aumenta o apego.” Um dos grandes de nossa geração, influência decisiva em Gil e Caetano, no tropicalismo, profeta do underground, poeta, matemático, designer, filósofo, violonista clássico, Rogério, um dos nossos grandes rebeldes e visionários, para estupor geral, tinha se tornado Hare Krishna. Uma tarde ele entrou de surpresa no escritório de Ipanema e me contou que estava a caminho da fazenda que herdara no interior da Bahia, para ser, como disse, um refazendeiro. Ia fazer uma imensa plantação de maconha, profissional. Quando estava quase chegando, teve uma iluminação, recebeu um chamado, voltou para Salvador, largou tudo, entrou para uma comunidade Hare Krishna. Acordava de madrugada para cantar mantras horas seguidas, não fumava nem bebia nem comia carne, lia os livros sagrados, que traduzia do sânscrito. Não sofria mais, estava perdendo o apego às ilusões e ao mundo material, se livrando da angústia, da paranóia, da culpa. O que ouvi fazia sentido: entendi a ausência do sofrimento como a maior felicidade possível. A conversão de Rogério foi um escândalo nos meios artísticopolítico- intelectuais.

O mais desconcertante era que ele demonstrava intensa alegria e serenidade, argumentava com a inteligência mais aguda do que nunca sobre a lógica do Krishna e sua sabedoria, sobre o valor da renúncia e da disciplina. Não parecia em nada um fanático, antes, dava curso à sua radicalidade de sempre, só que em outra direção. Fiquei impressionadíssimo. Todo mundo estava dizendo que Rogério tinha pirado, que estava maluco, mas eu o achei ótimo. Conversamos horas sobre as origens do sofrimento, sobre o desejo e a renúncia, a precariedade humana e a aceitação do destino. Aceitei seu convite para um almoço que ele e outros krishnas bons de fogão estavam oferecendo num apartamento em Ipanema. Rogério queria introduzir seus amigos no reino da paz, do prazer e da alegria e prometeu um banquete. Para corpo e alma. Convidou muitos amigos artistas e intelectuais, mas ninguém foi: só Luiz Carlos Maciel, Júlio Barroso e eu. Era mesmo um banquete indiano, com dezenas de pratos deliciosos, doces e salgados, sucos, folheados, assados, cremes, sopas, pães, pastéis, tudo orgânico, apimentado, saboroso. Júlio também adorou, as doutrinas, a radicalidade, a comida. Ficamos horas comendo e filosofando, Rogério ria feliz com os elogios e dizia, com sotaque baiano e alegre cumplicidade: “Krishna pegou vocês pela barriga!” Pegou mesmo, mas estive mais perto de uma indigestão do que de uma conversão. Li e gostei muito do que Rogério me deu, refleti, aprendi, achei até que tinha descoberto novos caminhos, me senti até mais leve e sereno. Achei que tudo aquilo tinha lógica e fazia sentido, mas não servia para mim. Por falta de desapego e de disciplina, pela terceira filha, por minha carne fraquíssima, não podia me dar ao luxo de aplacar minhas angústias e medos no conforto espiritual de Krishna. Melhor uma análise lacaniana. A morte de Vinícius de Moraes, em julho de 1980, marca o fim de uma era musical brasileira.

A bossa nova conquistou o mundo e o “poetinha” foi a maior influência dos melhores letristas da MPB. No enterro, no Rio de Janeiro, fiquei o tempo todo com minha “afilhada” Maria, de dez anos, filha do poeta e de Cristina Gurjão. Através do conceito do “tempo lógico” lacaniano, que se opunha ao “tempo cronológico”, tentei explicar-lhe que Vinícius não tinha vivido 67 anos mas, pelas minhas contas, uns 300, trezentos e poucos. E que viveria para sempre nas suas músicas. Na virada da década, com a anistia e a abertura política, a música brasileira mudou. Com dez anos de atraso começa a nascer o rock brasileiro — não como um gênero musical, um ritmo, mas como um movimento artístico, uma música de geração, de atitude, de massa, só possível na semiliberdade da lenta redemocratização.

A jovem guarda era ingênua e inofensiva demais para ser considerada rock. Erasmo era um grande compositor de rock, mas seus maiores sucessos eram canções românticas com Roberto. Desde Os Mutantes, que nunca chegaram a ser um sucesso de massa, o que houve de mais próximo foi o Secos e Molhados, que embora não tocasse só rock tinha a atitude de uma banda de rock, e durou pouco mais de dois anos. Raul Seixas e Rita Lee eram casos isolados, únicos, de roqueiros bemsucedidos. A década foi completamente dominada pela MPB, e no final pela onda internacional da disco-music e pelo funk-soul americano. O rock
que explodiu nos Estados Unidos e na Inglaterra durante toda a década de 70, os progressivos, os mods, os punks, os new-wavers, nunca tiveram vez no Brasil supernacionalista dos militares — e ultranacionalista das esquerdas. Mas quem tinha nascido junto com o golpe militar de 1964 agora tinha 16 anos, não se interessava por política, desfrutava relativa liberdade e prosperidade e queria uma nova música.

Nos subterrâneos da terra do samba, as guitarras roncavam. Depois de uma temporada de salsa e merengue na República Dominicana, Júlio Barroso já estava morando há meses em Nova York, quando fui visitá-lo. Estava feliz da vida, mais animado do que nunca, dividia com um negão e um porto-riquenho um apartamento na Rua 1 com Segunda Avenida, numa zona pesada do Lower East Side, o “wild side” de Lou Reed, com suas paredes grafitadas, seus bares vagabundos e seus traficantes de heroína. Júlio parecia muito à vontade na área, era conhecido nos bares e cafés, trabalhava na “Between-the-bread”, uma sanduicheria sofisticada na Rua 52, tinha muitos amigos e namoradas, parecia um local. Com um sotaque macarrônico, falava um inglês fluente e eficiente, sabia tudo que estava acontecendo e no dia que cheguei me levou à noite a uma nova casa de música e dança, o Ritz, instalada e fervilhando num imenso ex-cinema dos anos 40 no West Side. Em pé na primeira fila, colados no palco e espremidos pela massa, assistimos extasiados ao show de Kid Creole and the Coconuts, a nova paixão de Júlio, uma sensação nas noites nova-iorquinas. Kid Creole era August Darnell, um crioulo americano de origem caribenha, alto, magro e elegantíssimo, um músico, cantor e compositor que produzia um dos sons mais bonitos do momento, fazendo a fusão entre a disco-music e ritmos afro-tropicais, jazz, suingue e cabaret, big bands e grupos de rock; e as Coconuts eram três louras gostosíssimas, com biquínis mínimos de onça, rebolando e fazendo os backing vocals. A onda disco era passado, a revolta punk também, a novidade para os anos 80 era a new wave, o do-ityourself, o ritmo rápido do novo rock voltava ao básico, associado à moda e à vida noturna, a uma nova atitude: os brilhos e excessos dos anos 70 banidos para sempre, substituídos pelos figurinos urbanos reciclados dos anos 50 e 60.

Voltei ao Brasil maravilhado com a vitalidade daquilo tudo, fascinado com Kid Creole and the Coconuts. E, incendiado por Júlio, voltei ao Brasil disposto a fazer não uma discoteca mas uma danceteria, como as novas casas new wave em Nova York, o Mud Club, a Danceteria (que virou nome genérico para o novo formato de casa noturna), o Peppermint Lounge. Mas tudo aquilo, o clima, as músicas, as roupas escuras e a palidez, não tinha nada a ver com o Rio de Janeiro, solar e exuberante. Mas era a cara de São Paulo, que depois de ser acusada por Vinícius de túmulo do samba se consagrava como berço do rock. Procurei meu primo Ricardo Amaral para lhe propor a idéia de nos associarmos numa danceteria new wave em São Paulo, onde ele tinha o Papagaio, uma das primeiras discotecas da cidade, fechado, com a decadência da onda disco. Ele e seu irmão e sócio Henrique toparam na hora, desenhei o projeto com Ciro Del Nero e em pouco mais de duas semanas reformamos completamente a casa: o Pauliceia Desvairada tinha paredes grafitadas, cadeiras estofadas em estampas de onça e de zebra, toda a iluminação feita com tubos de néon azuis-vermelhos verdes e amarelos; um palco com o skyline de São Paulo ao fundo imitando Nova York noturna; uma parede de TVs exibindo videoclips, poemas, frases, piadas e imagens abstratas; a sala de entrada com uma colagem de manchetes-baixaria de jornais populares; música ao vivo com o Tutti-Frutti (a ex-banda de Rita Lee, liderada por Luiz Sérgio Carlini) e som na caixa com o DJ Júlio Barroso, que chegou de Nova York na véspera da estréia, cheio de discos contrabandeados. No Hotel Hores Maipú, se registrando na recepção, Júlio escreveu com a maior naturalidade no item “profissão”: poeta.

Na manhã da festa, 8 de dezembro de 1980, um choque: John Lennon é assassinado em Nova York. À noite, a abertura do Pauliceia esvairada foi um espanto: 500 pessoas, black-tie, convidadas pelos meus sócios, a festa da semana em São Paulo. De cara, todo mundo se assustou um pouco com a luminosidade dos néons, com a cafajestice dos estampados, com a sujeira dos grafites, com a grossura das manchetes da Luta Democrática e Notícias Populares, com a parede de televisões e suas imagens e textos. E mais ainda quando, com a pista em xadrez preto-e-branco ainda vazia, Júlio abriu a noite com a suave e nostálgica “Amarcord”, obra-prima de Nino Rota, sob as luzes frias e coloridas do néon e a perplexidade dos convidados. Júlio ilustrava musicalmente uma visão que Fellini filmaria. Depois tocou Cole Porter e Eric Satie, com os néons iluminando a pista vazia. Um filme. Todos olhavam espantados para a cabine de som, onde Júlio sorria ao lado de uma surpresa: de fones nos ouvidos e pernas de fora, uma DJ. Nunca ninguém tinha ouvido falar de uma garota discjockey no Brasil, era a primeira vez que se via uma. E que além de tudo era gatíssima, uma loura carioca de olhos verdes, com um corpo esguio e bronzeado, roupas colantes e uma imensa boca vermelha e sorridente. Mas Luíza Cunha não era DJ de verdade, era — desde o Dancing Days do Morro da Urca — a secretária do escritório de Ipanema, eficientíssima. Em contas, telefonemas, arquivos, cobranças e providências. Mas não entendia nada de música. Por isso mesmo achamos que seria muito divertido inventar a “primeira DJ brasileira”. Luíza, além de dançar, sorrir e seduzir, só teria que colocar os discos indicados por Júlio. O público adorou.  Em off, gritei no microfone, imitando o suingue de um toaster jamaicano que conhecemos em Nova York: “He’s the groove, he’s the man, he’s the Pope in Vatican... ... Juuuuuuuuuulio Barrrrrooooooooso!”



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