A minha família paterna afirma, com orgulho e com documentos em mãos, que todos os Midani somos descendentes de um dos setenta fi lhos adotados por Salah al-Din mandou seus homens de confiança percorrerem o Império, para selecionar setenta rapazes que se distinguissem por sua inteligência e sua perspicácia, para que fossem educados e, futuramente, se tornassem governadores e administradores do Império por ele fundado, que se estendia da Turquia até o Egito, inclusive.
Não importa que, hoje, milhares de pessoas possam se dizer descendentes de Saladin . O importante, para a família Midani, é sempre recordar sua ascendência aristocrática.
O berço da família se situou originalmente na província síria El Midan, que faz fronteira com a Turquia atual e cuja capital é Alepo, conhecida por ser uma das mais antigas cidades do mundo oriental. A única e a mais tradicional ocupação da família era guerrear incansavelmente contra as tribos que invadiam suas terras, perdendo, nessa tarefa, durante séculos, muitas vidas. Mais conhecido entre nós como Saladin , o grande estadista e guerreiro que conseguiu unir as numerosas tribos do Oriente Médio e expulsar os cruzados e suas cruzadas daquela região. E muitas cabeças, decapitadas em sucessivas derrotas até a derrocada fi nal frente às forças militares do Império Otomano. Os séculos se passaram e, a partir da década de 1920 e de 1930, a Síria viveu sob o protetorado francês.
— um eufemismo, como se protetorado fosse menos trágico que colônia.
O sol está se pondo na planície do Golan, ao sul da Síria, numa das fazendas do meu avô. Um empregado muito ofegante, atordoado, irrompe na sala de jantar sem ter sido anunciado e sopra ao ouvido do meu avô algo que o faz empalidecer:
— Impossível… A gente não ouviu nada! — Meu avô se levanta e sai…
Havia algum tempo, um soldado francês tinha sido assassinado em um dos vilarejos. Em represália, o exército de ocupação mandou executar um camponês daquela aldeia...Tempos depois, outro soldado francês foi abatido. Em represália, alguns camponeses foram executados, com a promessa de que, se houvesse uma “próxima vez”, a aldeia inteira seria destruída, e homens, mulheres e crianças seriam mortos. E é claro que, nessas situações, sempre há uma próxima vez... E aquela foi a “próxima vez”. E palavra de militar sendo palavra de militar...
Ao anoitecer, uma patrulha cercou a aldeia, que ficava a uma distância de cerca de um quilômetro da casa de meu avô. Para evitar que a execução fosse ouvida pelas aldeias vizinhas, o comandante francês havia colocado os soldados congoleses ao redor da aldeia para matar, com seus machados, todos os camponeses e suas famílias sem perturbar o silêncio da noite. O Congo, como colônia francesa, tinha que contribuir com soldados para defender o Estado francês.
Era o que se chamava “quota de sacrifício”, porque cabiam muitas vezes a esses soldados as missões mais perigosas ou, neste caso, as mais sujas. Diz a História que os congoleses, por sua vez, eram submetidos à lei marcial — seriam fuzilados se não obedecessem às ordens.
Uma vez sagrando-se vencedor, Saladin Com o passar do tempo, os conflitos no Oriente Médio, entre colonizador francês e colonizador inglês, iam se multiplicando. Os desentendimentos entre árabes sunitas e chiitas prosseguiam. A luta entre palestinos e sionistas estava nos seus primórdios. A resistência dos colonizados árabes contra os colonizadores franceses e ingleses se exacerbava. A confusão reinante e as primeiras vitórias fulgurantes dos alemães na Segunda Guerra Mundial inspiraram importantes líderes árabes — entre os quais meu avô — a fazer parte de uma comissão para negociar, em 1935, um acordo com a Alemanha, segundo o qual se aliariam estratégica e diplomaticamente àquele país, obtendo, em troca de ajuda para expulsar os franceses e os ingleses, a garantia de sua independência e, particularmente no caso sírio, a devolução dos territórios libaneses.
Nessa mesma época, é também hora do jantar em Damasco.A França, no afã de melhorar suas relações com a Turquia, dá uma recepção ao embaixador e ao plenipotenciário turcos. Durante o jantar, o general francês se levanta, faz um brinde à delegação turca e, para demonstrar o desejo concreto de estreitar as relações entre os dois países, presenteia a Turquia com o porto de Alexandréte, único porto sírio de acesso ao mar, no norte do país.
Isso aconteceu na frente do sheik Tajedine, primo do meu avô e presidente fantoche de uma Síria ocupada, o qual não havia sido informado ou consultado.
A família de minha mãe era bem mais modesta, apesar de ser descendente do pintor Pizarro, o único judeu que a Igreja Romana da época admitiu em suas igrejas para pintar obras magníficas em homenagem à glória do Deus católico. Pizarro, ao se aposentar, viajou da Itália para a cidade francesa de Montpellier, onde criou sua família e afrancesou seu nome para Pissere.
Muitos anos mais tarde, minha avó materna, Leontine Pissere, ainda vivia em Montpellier e estava estabelecida tranquilamente com um comércio de lingerie de certa tradição, onde a alta burguesia local se abastecia. A história conta que ela matou três maridos, um deles o pai de minha mãe (nos documentos, minha mãe aparecia como filha natural de pai desconhecido, humilhação social trágica naquela época, numa cidade do interior da França). Ao se aposentar, já idosa, com seus oitenta anos bem contados, minha avó veio morar em Cabourg, onde viveu refém de minha mãe, que talvez estivesse se vingando dos maus-tratos da juventude.
Meus pais se conheceram na Universidade de Montpellier. Casaram e foram morar na festiva cidade de Nice, na Côte d’Azur, torrando todo o dote. Sem dinheiro, se mudaram para Damasco, onde nasci, em 1932.
Peguei pólio logo após o nascimento, e minha mãe, com a desculpa de que eu receberia um tratamento mais adequado na França, me levou para Paris. Era também um motivo para abandonar meu pai , que enfrentava problemas com a bebida. Ela nunca mais voltou à Síria e só revi meu pai muitos anos depois.
Passei por cinco ou seis intervenções cirúrgicas até os oito anos de idade, com longos períodos de convalescimento no hospital. Na época, era de praxe usar-se éter como anestesia. Eu aspirava éter, e o mundo da minha cabeça se transformava numa cor esverdeada, parecida com o que deve ser uma bad trip de ácido ou mescalina. O som amplificado que provinha das batidas do coração assaltava a minha cabeça implacavelmente, como se ela estivesse numa câmara de reverberação, ouvindo o estalar de uma metralhadora.Tinha a noção muito clara de que a minha vida estava escapando e, no entanto, o pior estava por vir, depois de cada intervenção, ao acordar com avalanches de vômitos por cinco ou seis horas. Nesse cenário triste, a gente abria os olhos e o que se via eram as outras crianças, companheiras de dormitório, todas com graves deformações físicas, gemendo com a dor, o tédio e o gesso que, certas vezes, as cobria da cabeça aos pés.
Havia ainda que suportar os curativos à base de nitrato de prata, que os cirurgiões passavam na carne ferida para acelerar a cicatrização; e os gritos de dor ressoando através dos corredores do hospital. Suportávamos mal a solidão que todos sentíamos, pois as visitas de parentes eram permitidas somente duas vezes por semana, por três ou quatro horas.
Apesar de tudo, de vez em quando, surgiam raros momentos de felicidade, quando conseguíamos sair do torpor inventando aventuras fantasmagóricas, nas quais a gente se transformava em príncipes encantados e em reis de impérios que derrotavam as forças do mal, sem os entraves e as limitações impostos por nossa condição real.
Saindo do hospital, ainda tínhamos que agüentar as ironias dos colegas da escola e da rua:
Olha o pé torto...
Olha que ele manca…
Vem aqui que a gente entorta mais ainda a tua perna de merda…
Vem jogar futebol se puder...
As investidas não partiam de um ou outro; eles se juntavam em grupo de cinco ou seis. Então, não tinha jeito: a gente tinha que apanhar... se quisesse tomar satisfação!
À exceção desses momentos, vivia como toda criança de pequena classe média podia viver, num então pacato subúrbio de Paris chamado Suresnes. As pessoas eram proprietárias de suas pequenas porém confortáveis casas.A maioria delas tinha comprado um reduzido pedaço de terra para cultivar legumes ao longo do rio Sena. Eram lugares mágicos, com poços de água, treliças cobrindo as plantações e assegurando a sombra durante o verão. Eu me recordo das garrafas de vinho branco, deixadas na água fresca daqueles poços, para se beber ao final do dia com os vizinhos — vinho que ainda se cultivava nesses subúrbios de Paris.
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