Foi em 1943 que os de Forceville, que logo passaram a ser meus melhores amigos de infância, entraram no Sainte-Croix e na minha vida. Eles moravam em Bavent, a cerca de trinta quilômetros de Cabourg, numa bela mansão de tradição normanda. A lenda conta que a mansão foi atingida por 36 tiros de canhões, que deixaram 35 buracos. Ou seja, dois tiros passaram pelo mesmo buraco durante as batalhas dos primeiros dias do desembarque aliado.
A BBC irradiava diariamente, das seis às sete da noite, um programa produzido pelos militares franceses e dirigido a nós, os franceses que moravam na França. Divulgava uma infinidade de curtas mensagens em código, coordenando as ações das forças da Resistência francesa, mandando explodir pontes, trens, depósitos de munições alemães, confirmando a noite e a hora da chegada de armas e munições para os membros da Resistência, carregadas por planadores ou pára-quedas, e anunciando a chegada de pára-quedistas aliados na calada da noite. Era também o canal utilizado para os militares franceses mandarem mensagens para as famílias no continente.
Evidentemente, era crime de guerra escutar o programa, e a punição era a morte. No entanto, todas as santas noites, uma boa parte da França ficava trancafiada no lugar mais seguro da casa, escutando bem baixinho esses pedaços de frases, que nada significavam para pessoa alguma, a não ser para a interessada… E, para ampliar mais a atmosfera misteriosa, a iluminação era só de velas e lampiões de querosene. Por ordem dos alemães, os vidros das janelas eram todos forrados com papel escuro, para que os aviões aliados não pudessem identificar as cidades que sobrevoavam. Não tinha uma alma nas ruas, a não ser soldados alemães em suas rondas e buscas.
Num dia do mês de março de 1944, mme. de Forceville escutou uma mensagem enviada pelo marido, alistado nas forças francesas localizadas na Inglaterra, que dizia algo assim:“O gato preto pulou do telhado.”
Isso significava que quem da família estivesse em Paris tinha que deixar a capital imediatamente. Assim, Hubert , seu irmão Gerard e eu saímos do colégio e fomos para Cabourg.
Os dias chuvosos de abril passaram e nada acontecia, a não ser por uma rotina pacata, porém tensa para nossas mães — que sabiam que algo de grave estava para acontecer. E nada mais.A gente jogava futebol, eu sempre de goleiro, com os filhos de pescadores. De vez em quando, íamos até a famosa praia, sobre a qual já falei antes. À tarde, buscávamos o leite de uma vaca vizinha e cortávamos grama para alimentar os coelhos.
Pelo menos, para compensar, a gente comia bem. Porque sempre havia um ovo ou uma carne que os proprietários das pequenas fazendas haviam escondido dos alemães…
Já era fim de maio e a inquietação das mães crescia à medida que o tempo se esticava, lenta e silenciosamente.
Havia uma sala de cinema em Dives, cidadezinha industrial e pesqueira ao lado de Cabourg, que exibia filmes de propaganda sobre a grandeza e a superioridade da raça alemã, além de outros filmes autorizados pela censura… Só havia uma sessão, aos sábados e domingos, às 16 horas. O título do fi lme, Pic Pus, ficou na minha memória, por ser o primeiro filme da minha vida e por ser um policial de gosto deplorável: os cadáveres caíam quando o detetive, o herói da história, abria as portas dos armários...
Voltamos para casa — eu, muito impressionado e, sobretudo, apavorado! Tão apavorado que, no meio da noite, tive pesadelos horrorosos. Os mortos saíam de baixo da minha cama para me matar. As janelas batiam com força sob a pressão do vento frio, a casa tremia, balançava como se fosse cair em cima de mim, e um ruído ensurdecedor ampliava o meu pânico dentro do pesadelo.Até que minha mãe me acordou, muito assustada:
— Dédé, rápido, rápido! Vamos até o porão!
Dessa vez não era um pesadelo, não. Era a vida real. Era a primeira de três noites de intensos bombardeios sobre as colinas atrás de Cabourg, que iriam anteceder o dia do desembarque dos aliados na Normandia. Essas colinas dominam a costa e abrigavam um poderoso conjunto de fortifi cações e canhões de longo alcance, que precisavam ser destruídos antes que os aliados chegassem. E cabia à aviação norte-americana aniquilar as defesas do inimigo… Descobriríamos o que era um bombardeio norte-americano: dezenas e dezenas de bombardeiros B-17 quadrimotores chamados “fortalezas voadoras”, em ondas sucessivas, largavam centenas de bombas nos alvos e, por via das dúvidas, também em tudo o que se encontrava ao redor. Foram três noites de terror, que somente terminariam com o nascer do dia, lá pelas quatro da madrugada de 6 de junho de 1944, quando o bombardeio cessou de repente e se fez o silêncio. Um silêncio de morte.Ameaçador.
O sol se levantava por volta das cinco e meia. Meu primo Paul e eu escapamos do porão da casa e fomos ver o que acontecia na rua. Ninguém... Nem uma alma, nem soldados… Nada! A curiosidade era forte demais; andamos, pouco a pouco, até o cassino de Cabourg, uma construção menor, porém de estilo muito parecido com o hotel Copacabana Palace, e que servia de Estado-Maior para os alemães… Também não havia ninguém.
Parecia que todos os soldados haviam deixado o lugar e se refugiado nas fortifi cações da praia. Dali, com muito medo, contornamos o cassino e apareceu o mar.
Esse mar, que havíamos sempre visto sereno, zangado, cinzento, nunca muito azul por ser um mar normando, porém sempre um mar de água salgada, habitado por peixes, estava agora dividido, da extrema ponta esquerda do horizonte até a extrema ponta direita, por navios de guerra imponentes, de todos os tipos que se possa imaginar — encouraçados, destróieres, porta aviões etc. —, ancorados de tal maneira que a proa de um quase tocava a popa do outro, formando um quebra-mar naquela chuvosa madrugada de ondas violentas.
Para nosso assombro, da barriga de todos eles saíam muitas centenas de pequenas embarcações vindo rapidamente em direção à praia. Chovia e ventava violentamente.A maré estava baixa; se por um lado evitaria que as embarcações detonassem as minas espalhadas pela praia, por outro aumentava em uns bons quinhentos metros rasos o percurso que os soldados aliados teriam que percorrer na areia, sem proteção alguma, até chegar às fortifi cações alemãs uns seiscentos metros acima.
Não tenho mais memória da natureza do espanto que Paul e eu sentimos naquele instante, tais foram o terror, o pavor, o pânico que nos invadiram. Para nós, crianças, apesar de a idéia da morte ser uma abstração, tínhamos consciência de que íamos morrer, com certeza. Imaginem essas embarcações vindo em nossa direção! Ao mesmo tempo, a grandiosidade do espetáculo nos deixava hipnotizados… O silêncio absoluto que pairava sobre essa cena dantesca tinha a mesma dramaticidade de uma trilha sonora wagneriana. Voltamos para casa e mal conseguíamos explicar o que havíamos visto, tão transtornados estávamos, e apavorados com os gritos de minha mãe, morta de desespero por não saber como e por onde tínhamos escapado naqueles 15 minutos.
Uma hora mais tarde, o mundo desabou sobre nós, os poucos habitantes que ainda viviam em Cabourg. Os aviões sobrevoavam a cidade, largando suas bombas; os canhões alemães atiravam sem cessar, e tudo isso fazia um ruído de apocalipse ensurdecedor. E, por escassos dez quilômetros, não fomos liberados pelos aliados. Ao contrário, ficamos cercados pelos americanos, junto com os alemães, dentro de um bolsão. De vez em quando, os americanos ganhavam terreno; por algumas horas, achávamos que seríamos libertados, para, logo depois, os alemães contra-atacarem. E, com isso, as esperanças iam desaparecendo.
Vivíamos no porão atrás da casa, dentro de um buraco cavado na terra, com espaço para cinco ou seis pessoas se deitarem. O buraco estava recoberto por umas barras de cimento armado que o farmacêutico, nosso vizinho, nos dera. Não me lembro de onde vinha a comida, mas suponho que a loja de secos e molhados, por um lado, e a casa de frios, por outro, deviam ser os nossos fornecedores durante a hora da trégua diária, ao meio-dia em ponto, quando cessavam os combates.As tréguas aconteciam para que cada exército, entre outras coisas, retirasse seus mortos e feridos. Não foram raras as vezes em que escutamos os feridos, até pouco tempo inimigos mortais, praticamente deitados um ao lado do outro, implorando por suas mães na língua natal:“Mami...”, “Muti...”, “Mami...”, “Muti...”.
Agora, o ruído dos combates era menor, ou menos aterrorizante. A luta se fazia com metralhadoras, granadas, fuzis...
Depois de 15 dias, durante a trégua do dia, os americanos exigiram que os alemães, que, aliás, pertenciam a uma unidade SS, se rendessem. Como não o fizeram, nós, os civis, fomos intimados a sair de imediato, para que o combate continuasse até morrerem todos os combatentes, de um lado ou de outro. Empilhamos em cima de uma carreta alguns pertences. Minha mãe, Paul , eu e o cachorro iniciamos, com outras famílias, uma marcha pelas estradas em direção ao leste, ainda sob ocupação alemã, sem realmente saber para onde estávamos indo — ou por quê.
De início, ao sair de casa, ficamos muito surpresos ao constatar que, depois de tantos dias de combate, a cidade não havia sido realmente destruída. Muitos muros tinham caído, muitos telhados estavam inutilizados, janelas espatifadas, árvores derrubadas, mas nada comparável ao que o furor dos estrondos nos havia sugerido.
No entanto, à medida que nos afastávamos da cidade, sentimos um cheiro medonho. Um cheiro de morte, vindo da igreja. Quando a contornamos, nos deparamos com um cenário que viria a se repetir ao longo da marcha: centenas de vacas mortas, todas deitadas de costas, as patas esticadas para o ar e os corpos entumecidos e apodrecidos, que se enchiam feito bolas prestes a explodir.As macieiras estavam todas azul, em vez de introduzir uma certa esperança de dias melhores, ao contrário, imprimia uma atmosfera ainda mais desolada a esse quadro de destruição.
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