Por Zé Miguel Wisnik
Tão perto e tão longe: é desse lugar que Dominguinhos me ressoa, sempre. Ele está no coração da canção brasileira, na voz dos maiores cancionistas, seus parceiros, na voz das grandes intérpretes, sempre na posição soberana de herdeiro declarado de Luiz Gonzaga
Ouvi Dominguinhos de perto, pela primeira vez, quando participei do Festival da Globo, acho que no ano de 2000. Nos bastidores, entre ensaios, passagens de som e o programa ao vivo, músicos concorrentes e atrações convidadas improvisavam encontros inesquecíveis e quase secretos, como o de Toninho Horta com Dominguinhos, que passeava com suavidade e fogo pelos teclados da sanfona, como um desses músicos raros que sentimos instantaneamente que bebem direto da fonte da música. O aparato exterior do festival, na tentativa de reeditar a antiga fórmula dos concursos de canções, passava batido pelo lugar mais essencial onde a música popular mostrava que existia, ali tão perto e tão longe de tudo aquilo.
Tão perto e tão longe: é desse lugar que Dominguinhos me ressoa, sempre. Ele está no coração da canção brasileira, na voz dos maiores cancionistas, seus parceiros, na voz das grandes intérpretes, nas suas tantas participações instrumentais e nos seus discos, sempre na posição soberana de herdeiro declarado de Luiz Gonzaga, que percebeu de imediato que aquele menino era o único entre todos. Mas essa condição ele nunca ocupou com estrépito, nem buscou, como se o destino natural do seu reinado fosse outro. Embalado pelo resfolego da sanfona com que a música nordestina traz o tempo para junto do corpo, o império de Dominguinhos é o da melodia, ali onde o som instrumental está dizendo misteriosamente que quer ser canção.
Conhecemos tratados de harmonia, análises que esquadrinham os ritmos e as mais complexas arquiteturas musicais. Mas ninguém é capaz de explicar o poder de uma melodia. Quanto mais uma como a de “Eu só quero um xodó”, com letra de Anastácia, que extrai dos acordes aparentemente triviais e das cadências mais simples um efeito arrebatador, evocativo, imediato e profundo. Assim também “De volta pro aconchego” e o “Lamento sertanejo”, cujas palavras latentes Nando Cordel e Gil souberam ouvir, e o “Xote da navegação”, no qual Chico Buarque viajou no próprio enigma do tempo.
A sabedoria melódica de Dominguinhos é uma espécie de conhecimento dos atalhos da música e da vida, um senso iluminado da medida áurea entre as tensões que se acumulam e o momento e o modo com que elas podem repousar. Simples assim, sofisticado assim, inexplicável assim. Como ele era um instrumentista dos maiores, e ao mesmo tempo um melodista límpido e essencial, as melodias brotam cristalinas dos improvisos, tanto quando ele compõe como quando contracanta com as canções de outros, enquanto instrumentista.
Um outro encontro com ele, bem mais recente e impactante pra mim, retrata bem isso. Mariana de Moraes convidou-o para tocar no disco dela, em “Assum branco”, música minha de inspiração gonzaguiana, trazendo a canção de volta, com o fole e a zabumba, do “debaixo do barro do chão”. No final da gravação, maravilhados todos nós diante dele, Dominguinhos disse que queria deixar registrada uma música para que eu letrasse. O que escuto sem parar, desde então, nesse solo extasiante, são sete minutos de uma sequência onde se podem distinguir nitidamente não uma, mas quatro canções, como numa espécie de suíte inesperada. Comentei isso com ele, como quem buscasse entender a sua intenção, e a resposta, misteriosa, foi a de que a música modulava e continuava, sugerindo que as quatro canções são uma só, nascidas do mesmo fôlego. Mais que isso: parecem compostas de maneira orgânica e inteira, embora os sinais claros são os de que foi um improviso inacreditavelmente inspirado, que ele tratava como naturalíssimo. Os amigos músicos que pedi para ouvirem comigo não são capazes de decidir se é uma composição pronta ou um improviso, simplesmente porque, num caso ou noutro, a música bebe diretamente da fonte da música.
Não foi muito tempo depois que Dominguinhos adoeceu e passou meses não consciente, mas sensitivo, como se cumprisse ainda o seu destino de estar assim tão perto e tão longe. Eu fiquei, pobre amador, com essa imensa dádiva e essa imensa dívida. Nos últimos tempos eu vinha mergulhado nelas. Como diz um amigo meu, Deus deu a uns a pureza, e a outros a tarefa de se purificar.
Compartilho aqui, então, a letra da primeira das canções: “Procurar por você/ procurar entender / de onde chega você na lembrança/ quando a roseira balança/ e de onde a luz não alcança/ vem/ um sopro de flor/ um calor de calar na alma/ uma calma por existir você/ e a saudade que não quer esquecer.// Se essa paz encontrar um colo/ e se água molhar meus olhos/ vou ficar/ vou estar com você.// Os verões, as canções/ revoadas de sonhos que vão/ (vão e vem)./ O inverno será incapaz de roubar esse bem.// Eu não sei se existe um lugar / só não sinto o tempo passar / se é pra ter / desejar / esperar / encontrar você”.
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